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Figura 1: Imagem do desfile Turista Aprendiz do estilista Ronaldo Fraga. Fotos: Acervo da AMAP.

ARTIGO

OS CAMINHOS DA ATIVIDADE ARTESANAL: BORDADOS DE PASSIRA E O RECENTE CONTATO COM A MODA NACIONAL

Publicado por A CASA em 11 de Março de 2014
Por Maria Silvia Barros de Held e Ana Julia Melo Almeida

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The paths of craft activity: Passira embroidery and its recent contact with the national fashion

Resumo

O presente trabalho busca compreender as transformações pelas quais o artesanato brasileiro vem passando ao longo do tempo, especialmente em sua aproximação com a moda nacional. Para isso, utiliza-se como escopo o caso das bordadeiras de Passira (PE), que desenvolveram produtos em conjunto com o estilista mineiro Ronaldo Fraga. Percebeu-se que o artesanato passa a ser buscado como referência e é inserido no mercado de moda, que faz uso do prestígio histórico e popular das práticas artesanais para solidificar o que seria uma síntese da identidade brasileira.

Palavras Chave: artesanato; bordado e moda.


Abstract

This paper aims to understand the transfiguration which the Brazilian handicraft has undergone alongside the time, especially on its approach to national fashion. For this purpose, this work analyses the case of Passira (PE) embroiders, who have developed products with the designer Ronaldo Fraga. It was noticed that the craft has being sought as a reference and it is inserted into the fashion market, which uses the historical and popular prestige of the craft to consolidate what would be a synthesis of Brazilian identity.

Keywords: handicraft; embroidery and fashion design.


1. Percurso metodológico

A escolha pela temática “Artesanato e Moda” deu-se pela minha curiosidade e proximidade com as duas áreas em questão. Durante a graduação no curso de Design de Moda da Universidade Federal do Ceará (UFC), elegi como objeto de análise o universo das rendeiras cearenses, mais especificamente das artesãs de renda de bilros da Prainha, Aquiraz – CE.  Passei seis meses observando os processos produtivos e criativos desse artesanato; compilei depoimentos, dialoguei com as artesãs a respeito do significado do saber-fazer em suas vidas e, por fim, busquei compreender a inserção do produto artesanal na moda brasileira.
Iniciei o mestrado com o intuito de ampliar meu repertório teórico para melhor assimilar a relação entre artesanato e moda nacional. Assim, priorizei um estudo que abordasse os processos criativos e produtivos que norteiam cada uma das atividades e a forma como elas se relacionam e se transformam.
Na tentativa de compreender esse encontro, utilizo como escopo para a pesquisa a ligação das artesãs da comunidade de Passira (agreste pernambucano) com a moda brasileira, por meio do trabalho que elas realizaram em parceria com o estilista Ronaldo Fraga.
Entende-se que um diálogo entre o estilista e as bordadeiras vem sendo construído ao longo dos últimos anos. Dessa forma, percebeu-se a importância de relatar essa experiência e observar como os dois campos se expressam, se relacionam e transformam algumas de suas práticas intrínsecas por ter como finalidade uma produção material criada em conjunto.
Com o intuito de trazer uma contribuição efetiva para o presente estudo, acreditei ser pertinente entrevistar diretamente as artesãs envolvidas, com o objetivo de apreender e compreender as transformações que elas vêm passando ao longo desse processo de aproximação, assim como o seu produto artesanal.
Em janeiro de 2012, comecei o meu trabalho de campo com as bordadeiras de Passira. Passei uma semana na cidade, tempo em que consegui colher depoimentos e conhecer a rotina de criação e produção das bordadeiras da Associação de Mulheres Artesãs de Passira (AMAP).
Pouco depois de me instalar na cidade, na manhã do dia dois de janeiro, percorri as principais ruas de Passira. Percebi como a presença do bordado nas casas e nas lojas é constante e faz parte da vida dos moradores do município.
Durante a semana que passei na cidade, gravei os relatos de cinco artesãs, fiz anotações e fotografei os produtos e o ato de fazer o bordado. Além disso, colhi material de acervo e demais documentos necessários ao andamento deste trabalho, como os “riscos” desenvolvidos por elas. Todo esse processo foi realizado com o consentimento e a ajuda das bordadeiras, sempre solícitas e acolhedoras.
A pesquisa é ancorada no método etnográfico. Clifford Geertz (2011:7) esclarece que fazer etnografia não é apenas descrever os sujeitos e os objetos estudados, é necessário construir uma leitura e interpretá-la. Ainda a respeito disso, o autor complementa que:

O que o etnógrafo enfrenta (...) é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. (Geertz, 2011:7).

O trabalho de campo acaba por aproximar o pesquisador de seu objeto de estudo. Ele se engaja com pessoas e suas coisas em uma variedade de maneiras, muito além do fato de estar em contato com elas e escrever sobre elas. As dificuldades e inquietações enfrentadas no ato da pesquisa de campo são capazes de ditar novos rumos para o estudo, traçar novas proposições de abordagens teóricas, conduzir o pesquisador a um novo olhar sobre o que é estudado.
O texto construído é permeado por falas das artesãs, obtidas por meio de suas oralidades. Acerca desses trabalhos que envolvem essa forma de coletar material, Meihy (2010:180) afirma que a produção de textos com a utilização de fontes orais implica alterações na “forma usual de pesquisa”.

No lugar de “métodos científicos” precisos, de hipóteses previamente supostas, instalou-se a surpresa da descoberta contida em diálogos gravados e em subjetivos recônditos. Resultado: em vez de trajetos metodologicamente enunciados, repontam experiências. Trajetos e experiências, termos diversos, epistemologicamente definidos, sendo que a experiência é consagradora da suscetibilidade humana, sensível e sujeita aos desvios de percurso comuns a oralidade.” (Meihy, 2010:180).

A observação e o material registrado serviram de suporte para a interpretação e para a construção de um discurso coerente com todas as partes envolvidas na pesquisa (pesquisador, atores e objetos estudados) mediada pelas experimentações vivenciadas.
Geertz (2011:11) explica que os textos antropológicos são de cunho interpretativo de segunda e terceira mão; apenas um nativo é que fará uma interpretação de primeira mão, pois é a sua cultura. Os textos são construídos, modelados, são ficções[1].
Com o intuito de trazer um pouco mais de claridade para a discussão, complemento as palavras do autor acima com as de Roy Wagner (2010:40); este, em seu livro A invenção da cultura, argumenta que o pesquisador em campo “inventa”[2]  o seu próprio entendimento a partir das suas experiências, por meio do uso de analogias que são provenientes de sua própria cultura.
Para finalizar o percurso metodológico vivenciado por esta pesquisadora, cita-se as palavras de José Carlos Sebe Bom Meihy por acreditar que elas sintetizam muito bem o objetivo da presente pesquisa e esclarecem a abordagem adotada.

Na era da globalização três alvos correlatos se portam como objetivo na mira de pensadores comprometidos com o papel do conhecimento na transformação social: identidade, comunidade e memória. [...] Não mais cabe apenas supor continuidades, nem se admite o “culturalismo puro” como objetivo do conhecimento. Saber demanda alterar rumos, indicar caminhos de transformações, compromissos. (MEIHY,2010:179).

2. A moda brasileira e o artesanato popular

A partir do momento em que o mercado de moda consolida-se no Brasil, a indústria têxtil e os criadores nacionais começam a se organizar para buscar uma unidade de expressão que favoreça o produto interno brasileiro no mercado internacional.
Para fazer frente à produção estrangeira, começou-se a buscar e a criar uma imagem para o país. Os estudos do que seria a “brasilidade” incorporaram-se aos bens e serviços que seriam oferecidos no mercado estrangeiro. Não era mais adequado imitar as grandes semanas de moda mundiais, mas sim criar uma moda com características próprias. Conhecer e definir o Brasil, transmitindo para os produtos as peculiaridades da cultura brasileira, seria uma vantagem nessa tarefa de inclusão do produto interno no mercado internacional.
Débora Krischke Leitão (2009:160) reflete a respeito das representações de Brasil e brasilidades na moda nacional. A pesquisadora afirma que a produção cultural elaborada pelo mundo da moda brasileira é caracterizada pela inserção de temáticas nacionais, por meio de referências ao Brasil e às identidades brasileiras.
Arantes (2006:14) fala que as “coisas populares” são utilizadas pelas sociedades para expressar e reafirmar a identidade da nação como um todo, ou seja, os repertórios da cultura popular passam a ser absorvidos e representados como fundamentos da cultura nacional.
A respeito disso, Leite (2005:27) afirma que parte do que hoje representa as chamadas tradições culturais no Brasil não é obrigatoriamente genuína, mas ganhou essa significação “à medida que esferas oficiais da cultura a reconheceram como expressivas de uma ideia de nação”.
O aumento da visibilidade de práticas artesanais na produção de moda nacional é também devido ao crescimento do número de adeptos do consumo consciente, corrente que se iniciou no mercado global e que objetiva estimular, entre outras coisas, “o uso de materiais naturais e sustentáveis em conjunto com o design contemporâneo para manter técnicas antigas e artesanatos tradicionais” (Udale, 2009:38). 
Segundo a mesma autora (Ibidem:36), as “habilidades manuais dão aos tecidos qualidade e individualidade, e podem agregar valor a um produto como consequência do tempo e da habilidade necessários para criá-lo”. Assim, essas práticas garantem aos produtos o pertencimento ao comércio justo, pautado no consumo consciente e ético.
Partindo destas observações, o artesanato popular é empregado pela moda brasileira em uma tentativa de nacionalizar e de identificar a produção desse setor no Brasil.

3. Artesanato: bem cultural e mercadoria

O artesanato, além de ser uma atividade produtiva, é também uma forma de expressão cultural de quem o produz. O artesão é produtor de tais objetos, imprimindo sua história, sua técnica e seu repertório cultural.
Os produtos confeccionados trazem o contexto social e cultural de seus agentes, ou seja, o objeto em uma versão material de sua cultura. Para teorizar acerca desses objetos, há o estudo da cultura material, que entende as práticas e os artefatos como descrito acima.
Para Denis (1998:22), é preciso entender o papel dos artefatos em uma sociedade onde o consumo de mercadorias constitui um fenômeno de grande importância social e cultural. O mesmo autor (Ibidem:31) afirma que “os artefatos existem no tempo e no espaço e vão, portanto, perdendo sentidos antigos e adquirindo novos à medida que mudam de contexto”.
Os artefatos expressam, desse modo, ações e relações com seus produtores. Em outras palavras, são as redes de interações, compostas pelos produtores, que dão aos objetos significados que ultrapassam o seu uso utilitário. 
Leite (2005:41) afirma que não é possível compreender o artesanato dissociado do contexto social de seus agentes produtores e entendê-lo como tal implica considerá-lo produto e processo. As relações sociais entre produto e produtor incidem sobre esses objetos, investindo os artefatos de significados alheios a sua natureza técnica. Outro autor que se debruça sobre o tema do objeto em seu contexto social é Appadurai.
Para o estudioso (2008:15), as coisas, assim como as pessoas, são possuidoras de uma vida social, ou seja, os objetos materiais são portadores e produtores de valores na sociedade. Seus significados estão inscritos em suas formas, seus usos, suas trajetórias – o produto relaciona-se com o contexto cultural em que foi criado e com a forma de inserção social de seus agentes.
Em síntese, essa característica de expressar as práticas sociais e o repertório cultural de um grupo dá a essa classe de objetos um valor de destaque em relação a outros produtos no mercado. Nesse contexto, pode-se associar ao produto artesanal uma mercadoria com significativo valor de troca.
Para Kopytoff (2008:89), “a produção de mercadorias é também um processo cognitivo e cultural”. Elas devem ser produzidas não apenas como coisas materiais, mas produtos culturais que sinalizam determinados repertórios de quem os fazem.
O valor da mercadoria passa, então, a ser determinado pelas relações sociais que ocorrem no seu processo de produção e pelos significados gerados. Além disso, “outra forma de singularizar objetos é por meio da mercantilização restrita, pela qual algumas coisas são confinadas a uma esfera muito restrita de troca” (Ibidem:101). Entende-se que os produtos artesanais estão inseridos nessa categoria de coisas.
Para Canclini (2008:22), os produtos artesanais na modernidade mantêm funções tradicionais e desenvolvem outras, ao atrair consumidores que encontram nesses bens signos de distinção, referências personalizadas que os industriais não oferecem.
Ao serem inseridos na sociedade de consumo como um bem distinto, os produtos artesanais possuem signos específicos, ressaltados pelo mercado com a intenção de promovê-los e, desse modo, destacá-los dos outros produtos.
Considerando todos os aspectos salientados até o momento, não há como compreender o produto resultante da interação entre as bordadeiras de Passira (PE) e a moda nacional sem apreender os significados dessa atividade para as próprias artesãs, bem como o contexto social em que esses produtos estão inseridos. Isso é o que esta pesquisa abordará no próximo tópico.

4. Os bordados de Passira

4.1 Passira

Quem chega a Passira pela rodovia estadual PE-095, logo percebe que por lá se borda muito. Há, nessa estrada, um Centro Cultural e Comercial do Bordado. Do outro lado, é possível avistar o centro da cidade. Basta caminhar um pouco pela Rua da Matriz, principal via de Passira, que encontramos em muitas casas e no comércio local a presença do bordado. Foi essa prática que deu fama para o lugar, um produto artesanal destacado pela sua beleza e qualidade, próprios de lá.
O município de Passira fica localizado no agreste pernambucano, a cerca de 100km da capital do Estado, Recife. Com uma população de pouco mais de 28 mil pessoas, segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cidade é conhecida como terra do bordado manual e do milho.
As principais festas que figuram no calendário turístico oficial da cidade são a Festa do Milho e a Feira do Bordado Manual. A primeira teve início em 2005, já que Passira é uma das principais produtoras de milho do Estado. Já a segunda, faz parte da tradição artesanal da cidade, tendo início em 1986.

4.2 Associação das Mulheres Artesãs de Passira

A Associação das Mulheres Artesãs de Passira (AMAP) iniciou seus trabalhos em 2008, quando as artesãs sentiram a necessidade de se reunir em torno de um grupo para “estimular, congregar e encontrar soluções para problemas socioeconômicos dos associados, promover o intercâmbio de experiências profissionais, representar a classe junto aos órgãos governamentais e privados”, segundo consta de seu estatuto, promulgado em 2010.
Segundo relato das próprias artesãs, antes de surgir a AMAP, as bordadeiras realizavam suas peças em casa e se reuniam esporadicamente para falar sobre o trabalho, encontrar soluções para suas dúvidas e pesquisar se haveria alguma feira ou espaço para exibir seus produtos. Dessas reuniões surgiu a vontade de se organizar em torno de uma associação e possuir um espaço próprio para estimular a prática do bordado.

4.3 Os bordados manuais de Passira

O bordado manual é uma forma de criar desenhos em um tecido, utilizando para este fim agulhas e linhas, de maneira que os fios sejam manuseados até conceber o desenho desejado. O bordado feito à mão tende a ser mais caro que o elaborado à máquina, devido à paciência e ao tempo dedicado a sua feitura.
O bordado e o mundo feminino estão intimamente ligados. Simioni (2010:4) destaca o bordado como uma arte eminentemente feminina. Segundo a autora, essa atividade se desenvolveu ao longo do tempo, atrelando-se à figura feminina e ao trabalho manual. Os bordados são artefatos da cultura material por meio dos quais as identidades femininas se expressam, ressaltando a graça, o encanto e a circunstância na qual o sexo feminino permaneceu no espaço doméstico.

Gêneros outrora valorizados, como a tapeçaria e o bordado, centrais durante a Idade Média, passaram, ao longo da Idade Moderna, a comportar duas cargas simbólicas negativas: a do trabalho “feminino”, logo inferior, e a do trabalho manual, a cada dia mais desqualificado. (Simioni, 2010:5).

Os bordados manuais de Passira passaram de geração a geração; são exemplos de um trabalho minucioso das bordadeiras da região.  Ao indagar as artesãs sobre a origem do bordado na cidade, é comum ouvirmos que o “bordado surgiu com Passira”.
Segundo Vieira (2006:21), a origem do bordado data de tempos remotos. “Em 1964 o acho arqueológico de um caçador “Cro-Magnon”, datado de cerca de 30.000 AC revelou-se o primeiro registro fossilizado de um pano bordado com pontos à mão”.
O cristianismo teve um papel importante na disseminação do bordado ao redor do mundo. Vieira (2006: 22) afirma que essa doutrina “encarregou-se de divulgar a arte em todo o lado e os conventos femininos foram centros de relevância no incentivo da tradição de bordar”.
 É difícil apontarmos o início desse tipo de artesanato no Brasil, mas pode-se afirmar, a partir do que nos diz a história da colonização brasileira, que o bordado, assim como a renda, foi trazido por mulheres estrangeiras e imediatamente assimilado pela população local.
Durante a primeira etapa da pesquisa, buscou-se encontrar referências de como as artesãs aprenderam a fazer o bordado e de como ele chegou até Passira. As bordadeiras relatam constantemente a figura de Antônia[3], que era uma das mais antigas do município.
A artesã Maria Lúcia Firmino afirmou que Dona Antônia havia estudado em um convento em Recife e teria aprendido muitos pontos diferentes por lá. “A mãe dela, na época, levou ela para um convento porque ela queria ser freira, aí ela passou um tempo lá em Recife”[4].
Maria Lúcia relata ainda como aprendeu dois pontos específicos: a “bainha aberta” e a “bainha oito”, bastante praticados em Passira.

“Tinha uma senhora [Antônia], ela morreu quase com cem anos. Ela estudou em colégio de freira em Recife quando era nova. Aí ela fazia esse ponto aqui, esses dois [bainha aberta e bainha oito]. Aí as bordadeiras começaram a se aproximar dela e perguntavam: Que coisa linda, como é que faz? Aí ela dizia: Venham que eu ensino. Aí a gente sentava assim perto, ela sentava numa cadeirinha de balanço. Sentava três, quatro, cinco meninas e ela ensinava. Eu aprendi com ela e já ensinei para várias pessoas, vai passando de uma para a outra e a cidade toda aprendeu. Eu sei que começou por ela.” [5] (Maria Lúcia Firmino).

As artesãs desconfiam que o bordado de Passira seja proveniente de Portugal, e chegou ao Brasil junto com os colonizadores. Acerca disso, a artesã Maria Lúcia Firmino comenta o porquê de sua desconfiança:

“Eu acho que deve ter vindo alguma coisa de Portugal porque eu fui uma vez, no ano de 2000, em Cuba. Eu ganhei uma passagem para visitar Cuba, uma pessoa da Unesco [...] tava querendo ajudar lá. Aí ela encontrou o trabalho de Passira, ela disse que encontrou em Paris. Aí ela foi em Fortaleza e veio em Pernambuco também, ela queria dois representantes que trabalhassem com artesanato para fazer uma oficina lá em Cuba. Uma colega minha (de uma associação de Olinda) me indicou e eu fui. (...)Eu fiquei lá uns vinte dias e encontrei com duas pessoas de Portugal, foi aí que eu imaginei, era uma jovem e uma senhora mais idosa. Quando elas viram, elas falaram: Ai que coisa linda! Meu Deus, não poder ser uma coisa dessa! Aí eu disse: Por quê? Aí ela disse: Porque tinham portuguesas que faziam isso do mesmo jeito que vocês fazem, esse estilo, esses pontos. (...) Ela ficou muito encantada porque ela disse que as pessoas mais antigas de lá faziam muito. Ela ficou surpreendida quando soube que tinham cidades em Pernambuco que faziam. É por isso que eu digo que podem ter sido os portugueses (...) eu acho que teve uma contribuição daquele povo.” [6]

5. Os caminhos da atividade artesanal nos dias de hoje

Com o objetivo de relatar as transformações que vêm ocorrendo nas práticas artesanais atualmente, parte-se do encontro das bordadeiras de Passira com a moda brasileira. As artesãs participaram do projeto “Pernambuco com Design” que objetivava, entre outras coisas, promover o artesanato do Estado por meio de oficinas de capacitação com estilistas renomados e divulgar os frutos dessa parceria em eventos de moda nacional.
Ao longo de um ano, as bordadeiras executaram peças elaboradas em parceria com o estilista. Além de “Turista Aprendiz”, a coleção seguinte do criador mineiro também contou com os bordados de Passira. “Athos Bulcão” se inspirava na obra do artista, morto em 2008.

Para atender às exigências e atingir os objetivos propostos pelo estilista, as bordadeiras tiveram de elaborar uma nova forma de bordar. Eram tecidos diferentes dos que estavam habituadas, formas que não faziam parte de seu repertório e tamanhos de bordados específicos.
Em meio a esse desafio, as bordadeiras criaram um novo ponto, que elas chamam de “doidinho”. Sobre isso, a artesã Maria Lúcia Firmino relata:

“Foi um quebra-cabeças para a gente descobrir. Depois, com muito tempo trabalhado, a gente começou a dar pontos seguidos de maneira diferente. A gente chama ele de doidinho porque não é para fazer seguido. A gente faz grande, pequeno, alternado.” Depoimento dado a esta autora no dia 03/01/2012.

O surgimento desse ponto é a partida para que esta pesquisa analise as transformações e os caminhos da prática artesanal nos dias atuais. Assim, os processos artesanais modificam-se pelos seus próprios agentes e pelos contextos sociais ao qual pertencem.
Atualmente, as técnicas da atividade artesanal em muito se assemelham com a estrutura das corporações de ofício do século XVIII, compostas por mestres e aprendizes, como salienta Porto Alegre (1994:26).
Por mais que ocorra essa associação - o que confere ao artesanato uma impressão de prática do passado - e ele utilize técnicas tradicionais, essa atividade se modifica e se reestrutura ao longo do tempo.
Canclini (1983:51) afirma que os produtos artesanais se reconfiguram nos dias de hoje devido às transformações de significado das culturas populares segundo as dimensões correlacionadas que o artesanato abrange, isto é, enquanto processos sociais, culturais e econômicos contemporâneos.
Em outras palavras, é por meio dessas transformações que as tradições populares se reconfiguram; e por mais que algumas formas de produção pareçam persistir, há outros fatores que se redimensionam, refletindo a própria mudança histórica da sociedade.
Hall (2009:248-249) esclarece que a cultura popular não é algo puro e inerte, mas um “terreno sobre o qual as transformações são operadas”. Ou seja, as culturas populares seriam conduzidas muito mais por meio das associações de elementos e atores sociais do que por meio do caráter de persistência em forma de vida e técnicas tradicionais. Seriam essas transformações que permitiriam a existência e continuidade dessas manifestações culturais.
Mendes (2011:80), em seu estudo com as louceiras do Córrego de Areia (localizado em Limoeiro do Norte, CE), relata que apesar dos princípios das atividades artesanais continuarem os mesmos, a tradição e a modernidade se fazem presente, coexistem, “uma vez que as práticas artesanais não são arcaicas nem estão fechadas”.
Assim, os processos artesanais, bem como os da cultura como um todo, modificam-se pelos seus próprios agentes e pelos contextos sociais ao qual pertencem. Para Santos (1983:20), “as culturas movem-se não apenas pelo que existe, mas também pelas possibilidades e projetos que podem vir a existir”. Vidal e Lopes da Silva (1992:290), em sua pesquisa acerca da arte indígena, abordam a atividade artesanal como algo dinâmico, em constante reformulação. Por meio do que já está estabelecido, do que é convencional, a tradição, ao introduzir “novos sentidos e novos símbolos”, se recria. Esse processo dá “à cultura sua vitalidade e força”.

6. Considerações finais

O artesanato, como suposto elemento genuinamente nacional, passa a ser buscado como referência e é inserido no mercado de moda, que faz uso do prestígio histórico e popular das práticas artesanais para solidificar o que seria uma síntese da identidade brasileira.
Considerando que a cultura popular e a cultura de moda[7] estão em contextos diferentes, penso que devemos indagar o que é modificado e gerado por essa interação. As relações estabelecidas entre culturas diferentes é denominada por Canclini (2008:XIX) como “processos de hibridação”. O mesmo autor sintetiza o desafio das políticas culturais atuais, que pode ser estendido para o objeto desta pesquisa:

Talvez o tema central das políticas culturais seja, hoje, como construir sociedades com projetos democráticos compartilhados por todos sem que igualem todos, em que a desagregação se eleve a diversidade, e as desigualdades (entre classes, etnias ou grupos) se reduzam a diferenças. (2008:157).

As relações sociais se modificam ao longo do tempo e, ao relatar as transformações ocorridas na atividade artesanal, torna-se incoerente associar a algo puro e imutável. Afinal, “nada que é cultural pode ser estanque, porque a cultura faz parte da realidade onde a mudança é um aspecto fundamental” (SANTOS, 1983:47).

Referências

APPADURAI, Arjun. Introdução: Mercadorias e a política de valor. In: A vida social das coisas, as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EDUFF, 2008.
ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 2006.
CANCLINI, Nestor García. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
_______________________. Culturas híbridas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
DENIS, Rafael Cardoso. Uma Introdução à História do Design. São Paulo: Editora Edgar Blucher, 2008.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2011.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
KOPYTOFF, Igor. A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo. In: A vida social das coisas, as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EDUFF, 2008.
LEITÃO, Débora Krischke. O Brasil é uma paisagem: moda, nação, identidade e outras invenções. In: Revista Iara – Revista de Moda, Cultura e Arte, v. 2, n° 2, São Paulo, 2009.
LEITE, Rogério Proença. Cultura popular e artesanato: dilemas do preservar e do consumir. In: Olhares Itinerantes: reflexões sobre artesanato e consumo da tradição. São Paulo: Cadernos ArteSol, 2005.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Memória, história oral e história. In: Oralidades – Revista de História Oral, vol. 8, São Paulo, 2010. Disponível em:  http://oralid.vitis.uspnet.usp.br/images/stories/edicoes/08/08_provocacoes.pdf (acessado em 29 de março de 2012).
MENDES, Francisca R. N. Modelando a vida no Córrego de Areia: tradição, saberes e itinerários das louceiras. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2011.
PORTO ALEGRE, Sylvia. Mãos de Mestre: itinerários de arte e tradição. São Paulo: Maltese, 1994.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e Rosana Palazyan. In: Revista Proa, vol.1, n°02, São Paulo, 2010. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/proa/ArtigosII/PDFS/anasimioni.pdf (acessado em 7 de março de 2012).
UDALE, Jenny. Fundamentos de design de moda: tecidos e moda. Porto Alegre: Bookman, 2009.
VIDAL, Lux e SILVA, Aracy Lopes. O sistema de objetos nas sociedades indígenas: arte e cultura material. In: SILVA, Aracy Lopes e GRUPIONI, Luis Doniseti Benzi. A Temática Indígena na Escola. São Paulo/Brasília: MARI (Grupo de Educação Indígena/USP) / MEC / UNESCO, 1995.
VIEIRA, Alberto. Bordado da Madeira. Funchal: Bordal, 2006.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Notas:

[1] Clifford Geertz (2011:11) usa o termo ficções no sentido original de fictício: o texto é construído, modelado pelo pesquisador. Isso não quer dizer que as afirmações contidas nos textos antropológicos sejam falsas, não-factuais ou experimentos do livre pensamento.

[2]O termo “inventar” é utilizado com base nas proposições de Roy Wagner (2010:30). Segundo o autor, deve-se compreender a invenção “como um processo que ocorre de forma objetiva, por meio de observação e aprendizado, e não como uma espécie de livre fantasia”.

[3] Segundo as artesãs da AMAP, a bordadeira Antônia morreu quase aos 100 anos e bordava divinamente bem.

[4]Entrevista cedida no dia 3 de janeiro de 2012.

[5] Idem.

 [6] Entrevista cedida no dia 4 de janeiro de 2012.

 [7] Quando uso o termo “cultura de moda” considero que ele engloba todo um conjunto de regras e convenções coletivamente compartilhado por aqueles que estão inseridos no mercado de moda (estilistas, empresários, publicitários, produtores, fotógrafos, entre outros)