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A CASA E O MUNDO

ENTREVISTA

GERCINA MARIA DE OLIVEIRA E MARIA DE JESUS SOARES

Publicado por A CASA em 15 de Novembro de 2013
Por Daniel Douek

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“Quem trabalha com o artesanato nunca está com as suas mãos vazias”

Gercina Maria de Oliveira e Maria de Jesus Soares são artesãs do Polo Veredas, Minas Gerais


Como vocês aprenderam o ofício de trabalhar com fiação e tecelagem? Quem ensinou vocês? Em que momento da vida isso aconteceu?

Gercina Maria de Oliveira: Comecei a aprender o ofício de tecelagem quando tinha sete anos de idade. Na época minha avó ainda era viva, então aprendi a tecer com ela e com a minha mãe. Ao ver o serviço delas com o algodão fiquei com muita vontade de fazer aquele trabalho. Eu sou da tribo indígena de Caeté, onde a maioria das pessoas viviam do algodão. Todas as roupas, sapatos e demais utensílios eram feitos de algodão. Até o agasalho, que nós chamamos de “blusa de frio”, também era feito de algodão. Dessa forma, vendo aquele trabalho, eu já cresci com uma grande vontade de aprender a fiar e tecer.
Eu, desde criança, sempre fui muito atraída pela cor vermelha. Num determinado dia, falei para a minha mãe: “Mãe, eu queria um vestido vermelho”. Ela disse: “Então, você vai aprender a fiar o algodão, vai fazer o pano, vai vender e depois, com o dinheiro da venda, vai na loja e compra o pano vermelho que você quer”. E eu, como era muito pequena e ainda não conseguia dar conta de tecer tudo, perguntei: “A senhora tece para mim?”. Assim, ela falou: “Teço sim”. Desse modo, eu aprendi a fiar a linha e ela teceu três metros de pano. Depois disso, ela vendeu o pano para um homem que deu mil réis. Eu não me lembro bem se foi exatamente essa quantia, mas sei que o dinheiro estava em réis. Assim, ela foi com esse dinheiro lá no Bonfim e comprou o pano para fazer o vestido vermelho. Eu aproveitei e comprei uma sandalinha vermelha também.
Para mim, não existe coisa melhor do que tecer e fiar. Eu ainda me recordo que o vestido e o sapato vermelho saíram da roda de fiar que eu tenho até hoje. Essa roda já existe há muito tempo. Era da minha avó, que tecia e fiava para a gente. Foi a minha avó que me ensinou a pegar o cisco do algodão, a cardar e a fiar. Com isso, cresci trabalhando nesse ofício e me tornei dona de mim mesma. Nunca deixei o meu trabalho com o algodão.
Depois que casei só fiz uma calça de algodão para o meu marido. Ele gostava de pano feito ou “pano fino”, como se diz. Como ele gostava do pano fino, eu sempre comprava na loja esse tipo tecido, mas nunca deixei a minha tradição. Sempre conservei a minha tradição do trabalho com o algodão, porque através dele é que eu sou presidenta do artesanato há vários anos. Não tenho esse cargo por mim, mas sim para assegurar o serviço das minhas companheiras que não tiveram a mesma oportunidade que eu tive. Além disso, gosto muito de ajudar as pessoas. Dedicando, de corpo e alma, o meu serviço ao artesanato, vejo que isso se torna um meio de ajudar muita gente.
Em Sagarana as pessoas dizem que eu estou no lugar errado, que não posso ficar aqui, no artesanato. Eles falavam que eu devia ficar na escola, onde eu trabalhava de ajudante de serviços gerais, mas eu respondia “Eu tenho o meu serviço lá, mas outras pessoas que estão aqui não têm. Elas não tiveram a oportunidade que eu tive. Ficando aqui, com o artesanato, eu posso ajudá-las a ter o próprio serviço, porque nenhum prefeito ou governador dá conta de empregar todas as pessoas”. Através do algodão, quantas pessoas já não subiram na vida? Lá em Sagarana mesmo muitos já construíram casas boas, na cerâmica, através da renda obtida com o algodão. Já tivemos companheiras que pagaram a faculdade do filho, em Brasília, por meio do serviço do artesanato. Então, por que eu ajudo as pessoas? Porque é onde eu posso, direta ou indiretamente, contribuir positivamente na vida delas. Se precisar ensinar um filho a tingir, urdir ou tecer, eu ensino, porque eu sei fazer o trabalho com o artesanato do algodão desde o plantio até a roupa pronta. Sei cortar, costurar e vestir também, porque já vesti muito. Já vesti muito algodão e até hoje eu tenho a minha roupa de algodão em casa. Não trouxe para vocês verem, mas eu tenho lá e posso mostrar.
Além disso, o artesanato sempre foi uma atividade que me ajudou a complementar a renda da família. Não vou dizer que dá para viver só do artesanato, ou seja, não dá para manter uma casa com todas as suas despesas, mas esse trabalho ajuda muito na situação financeira familiar de cada um. Quem trabalha com o artesanato nunca está com as suas mãos vazias. Sempre tem um dinheirinho.

E com você, Maria Soares, como foi todo esse aprendizado? Como tudo se desenvolveu?

Maria de Jesus Soares: A minha novela é quase igual à dela. Eu aprendi o ofício com a minha mãe quando tinha dez anos de idade. Na casa do meu pai moravam quatro homens e todos vestiam roupa de algodão. Era calça, camisa, etc. E quando uma moça ia se casar o enxoval dela, da toalha à fronha, era todo feito de algodão. Nessas ocasiões minha mãe falava: “Gente, vamos fazer um mutirão para a comadre, porque a filha dela vai casar. É preciso fazer o enxoval dessa menina”. Assim, o enxoval era todo de algodão. Tudo, tudo. E na casa da minha mãe, onde moravam quatro homens, tudo também era feito de algodão. Eu mesma ia para a escola com roupa de algodão. E minha mãe, que era muito caprichosa, gostava de fazer uns tecidos mais diferentes. Ela cortava aquelas palhas de milho, deixava-as bem pequena e fazia a miada. Depois, ela enrolava a palha de milho de forma bem apertada, colava um cordãozinho e colocava na tinta para tingir. Tingia de azul ou de vermelho, deixando o pano matrizado. Depois, ela tecia o pano e fazia alguns vestidos. Aquilo, para nós, era a melhor coisa que existia. Nós íamos para as festas com essas roupas. Desse jeito, eu sempre utilizei muitas coisas de algodão. Até hoje eu tenho em casa, do meu enxoval, uma toalha de algodão. Antigamente não se usava essas toalhas que existe hoje em dia. Tudo o que nós usávamos era de algodão.

Gercina Maria de Oliveira: Eu ainda tenho uma banda da coberta que me embrulhou quando eu era pequena. Eu tenho 67 anos e ainda tenho uma banda da coberta.

Maria de Jesus Soares: E naquela época o povo dava muito valor a esses objetos feitos de algodão, afinal, muitos viviam disso. Entretanto, depois de um tempo, isso aí acabou, morreu. Todo muito encostou e foi mexer com outras coisas. Porém, com a ajuda do SEBRAE e da Luciana, as coisas começaram a mudar. Tudo começou a se levantar de novo para nós. Foi uma benção porque em Riachinho quase todo mundo não tinha trabalho, mas agora todo mundo têm o seu servicinho. Todos pegam seu algodão e levam para casa para fiar (só tecelão que não tem muito). No geral, tudo isso foi uma mão na roda. Nós sempre agradecemos primeiramente a Deus e depois ao SEBRAE e a Luciana. Foi a Luciana que puxou tudo para nós.

Gercina Maria de Oliveira:
A Luciana veio através do projeto da Dona Ruth, o Artesanato Solidário (ArteSol). A Luciana chegou em Sagarana no dia 10 de julho de 2002. O ArteSol é um programa criado pela Dona Ruth e que a Luciana abraçou e ajudou a expandir na nossa região.
Essa iniciativa foi muito importante porque, com a evolução do pano fino, o povo foi deixando a profissão de trabalhar com o algodão de lado. Desse jeito, a tradição também ia morrendo junto. Entretanto, com essa iniciativa, elas vieram e resgataram o trabalho e a antiga tradição, impedindo que ela acabasse. Na minha opinião, foi muito importante cultivar essa cultura antiga porque ela estava acabando. Desse modo, esse programa foi uma benção para nós porque ele veio para resgatar a nossa cultura, trazendo e colocando todos os valores no seu devido lugar. Hoje nós não estamos vestindo a roupa feita de algodão, mas ele é muito adotado em diversas repartições e lugares. Um fator positivo do algodão também é que as roupas produzidas com ele são antialérgicas. Assim, todo mundo pode usar na cama, no sofá ou em outros lugares. Desse jeito, esse era mais um motivo para não deixar acabar a tradição, não é? Afinal, essa cultura já enfeitou o nosso país por muitos anos.
Em relação à produção, nós realizávamos alguns mutirões quando era necessária uma grande quantidade de linha para fazer muito pano. Então, fazíamos um mutirão, mas outros faziam treição. Muitas pessoas confundem “treição” com “traição”. Traição, Ave Maria, é coisa da vida. Mas treição, por exemplo, você sabe quando o cachorro morre de treição? Ele chega caladinho e emboca. Com a treição que a gente faz é a mesma coisa. Quando resolvemos fazer um mutirão nós nos juntamos e fazemos vários quilos de linha e a dona da casa sabe que nós vamos fazer isso no domicílio dela. Já na treição a dona da casa não sabe.

Maria de Jesus Soares: Não. Não pode saber.

Gercina Maria de Oliveira: Às vezes essa pessoa é pobrezinha e não tem como pagar. Às vezes ela não tem como dar comida. Portanto, a treição é feita assim: eu convido as pessoas, mas bem caladinha para a dona da casa não saber. Então, a treição acaba sendo um segredo.

Maria de Jesus Soares: A gente faz muita treição quando alguém vai casar, para ajudar a mãe da moça. Todo mundo se reúne para ir lá e fazer o serviço para ela.

Gercina Maria de Oliveira: E tem que levar comida também, porque às vezes a pessoa não tem. Assim, essa é a treição. Já no mutirão nós chamamos todo mundo e nos reunimos para fiar. E quando fica tarde a gente faz uma noite dançante, que é para pagar o dia de trabalho.

Maria de Jesus Soares: Pagar, para nós, é o forró.

Gercina Maria de Oliveira: Já na treição não tem festa, não. A pessoa que vai receber a treição não está em condições de fazer festa, mas como a gente queria prestar um ato solidário à pessoa, nós vamos lá e “damos uma mão”, fazendo o serviço e não cobrando nada.

Maria de Jesus Soares: Teve um caso desses com uma moça de Brasília que casou lá em Riacho Fundo. Ela queria um casamento da roça, com carro de boi, de cavalo. Ela pediu ajuda para a nossa associação, pedindo para fazermos uma treição para a mãe dela. Aí, nós fomos. Foi uma festa muito bonita. Todas as mulheres estavam com pano amarrado na cabeça, usando sandálias. Tudo do jeito que era antigamente. Todas as fiandeiras chegaram lá na festa cantando. O povo achou bom demais. Tinha muita gente e foi muito bonito. Tiveram muitas coisas da época antiga que ninguém hoje conhece mais.

Gercina Maria de Oliveira: Antiga tradição.

Maria de Jesus Soares: É. Que ninguém mais sabe.

Gercina Maria de Oliveira: Pois é. A gente fala mas eles não sabem o que é não, porque hoje a televisão e o computador mudaram o mundo. Se você fala uma coisa dessas para a pessoa mais nova, ela custa a entender.

Maria de Jesus Soares: Tem vezes que eles nem acreditam no sofrimento da gente, no modo como a gente foi criado...

Gercina Maria de Oliveira: Mas a gente não sofreu não. Aquilo não era sofrimento. Aquilo era trabalho, era a rotina da vida. Tudo isso era bom demais naquele tempo.
Maria de Jesus Soares: Hoje a gente pensa que tudo aquilo dá trabalho, mas para nós, naquele tempo, tudo era bom demais.

Gercina Maria de Oliveira: Era diversão.

Maria de Jesus Soares: Diversão, não é? Mas hoje é trabalho, porque ninguém mais soca o arroz no pilão. Na nossa época nós tínhamos que lavar a roupa no córrego. Tinha que por a bacia de roupa na cabeça para ir ao córrego. Hoje, quem faz isso? Agora as pessoas já ganham o arroz “catado”. Nós não usávamos sabão em pó ou outros produtos de limpeza. Sabe o que nós passávamos para clarear a roupa? Folha de mamão, porque não tinha sabão em pó. Não tinha nada disso. Se eu contar isso para os meus meninos, eles ainda riem de mim. E eles falam que a vida hoje ainda é difícil.

Gercina Maria de Oliveira: Por isso que eu falo para você que eles não sabem nada dessa tradição antiga.

Maria de Jesus Soares: De vez em quando a gente tem que chamar a atenção deles e contar como as coisas eram, para que eles vejam como tudo funcionava antigamente. Hoje está bom demais para se viver. Antes era muito difícil.

Vocês falaram rapidamente da questão da música, que vocês chegaram ao casamento cantando, por exemplo. Hoje, a música ainda está presente no momento em que vocês estão produzindo? Se sim, o que se canta?

Maria de Jesus Soares: Nós cantamos aquelas músicas velhas, da época que tínhamos oito, dez anos. É gambá, barriana, etc. Quando nos reunimos no mutirão nós cantamos essas músicas. Isso é muito bom e também nos ajuda a reunir as amigas. Na última sexta-feira do mês nós sempre nos reunimos para bater papo e lembrar daquele tempo antigo. Para mim, isso é uma grande benção.

Qual é o local onde vocês produzem?

Maria de Jesus Soares: A tecelagem é dentro da associação mesmo. Já os fios as pessoas levam para fazer em casa.

Gercina Maria de Oliveira: As pessoas fiam em casa e levam a linha para a associação.

Somente mulheres fazem esse trabalho?

Gercina Maria de Oliveira: O trabalho com o algodão normalmente é feito só por mulheres, mas temos homens também que cuidam de outras partes. Têm artesãos que trabalham com o buriti e com a madeira na fabricação de violas e caixinhas. Lá em Sagarana eles também trabalham com bambu, fazendo cadeiras, estantes e mesas.

Maria de Jesus Soares: Tem muita coisa bonita, só que em Riachinho ainda não temos isso.

Na região de Veredas existem cinco associações de artesãs que fazem o trabalho de fiação e tecelagem dos produtos. As associações são: “Tecelagem das Veredas”, em Sagarana; “Tecendo o Sertão de Minas”, em Riachinho; “Cores do Cerrado”, em Uruana de Minas; “Casa das Artes”, em Bonfinópolis de Minas; e “Fio Ação”, em Natalândia. Como funciona a divisão do trabalho entre as diferentes associações?

Gercina Maria de Oliveira: Toda essa divisão é possível porque nós trabalhamos em rede. Temos cinco núcleos que trabalham com apenas um objetivo. Temos o costume de chamar esse processo de “simbiose”. Quando vendemos um produto, nele tem a mão de obra da fiadeira, da tingideira, da tecelã e da pessoa que fez o acabamento. Então, quando a peça é vendida, todo mundo acaba sendo beneficiado. O trabalho em rede é assim: uma coisa depende da outra e, no fim, todos saem beneficiados. Quando o círculo de produção se fecha, todo mundo se beneficia com a peça que foi feita. Desse modo, as fiadeiras, as tecelãs e as tingideiras possuem a parte delas de mão de obra no produto, assim como quem faz o acabamento e quem borda. E quando vende o produto, todo mundo é beneficiado. Por isso, são cinco núcleos que trabalham ligados através do trabalho em rede. As tingideiras tingem por cinco núcleos. Os cinco núcleos fiam para elas tingirem. Todo mundo que borda faz os bordados naqueles panos que já passaram por muitas mãos. Então, fechando isso, a rede está pronta. Eu dei um nó, você deu outro, e todo mundo acaba sendo beneficiado por causa de apenas um produto.

Maria de Jesus Soares: Pois é. Assim todo mundo tem serviço, não é?

Gercina Maria de Oliveira: Eu sei tingir, mas eu não faço muito isso porque se eu ficar tingindo, acabo atrapalhando o outro lado.

Maria de Jesus Soares: Pois é. Por isso mesmo que deixamos tarefas para os outros, a fim de ajudar todo mundo.

Gercina Maria de Oliveira: Porque se cada uma de nós for tingir, as tingideiras ficam sem serviço.

Maria de Jesus Soares: Por isso que o processo funciona assim. Nós dividimos o trabalho para que cada um faça a sua parte e nada fique concentrado.

Gercina Maria de Oliveira: E quando as tecelãs precisam de muitos produtos ao mesmo tempo, nós dividimos toda a cadeia produtiva nos cinco núcleos.
Maria de Jesus Soares: É. Sempre quando eles fazem pedidos nós já dividimos o trabalho, porque uma associação só não dá conta.

Gercina Maria de Oliveira: Sim. E também, se não houvesse essa divisão, não existiriam tantas vantagens porque passaria a ser um trabalho individual, e não em rede. Se for em rede, todo mundo trabalha junto. Vamos dividir as tarefas para todos ganharem e receberem. Afinal, a nossa intenção é ajudar a todos.

Devido à divisão de trabalho que existe entre as associações, como funciona a comercialização dos produtos?

Gercina Maria de Oliveira: Quem trabalha com a comercialização é a Taís. Nós (as artesãs das associações) trabalhamos com a produção e a Taís com a comercialização. Para vender os produtos nós temos a Central Veredas, que é um centro onde é vendida todas as mercadorias. Eles são os responsáveis por toda a comercialização e as vendas são feitas em diversos pontos. Isso é possível através da parceria com o SEBRAE, com a Fundação Banco do Brasil e com outras instituições que apoiam o nosso projeto. Através de todas essas parcerias o nosso produto é feito e vendido pela Central Veredas.

Perfeito. Nós ouvimos muitas vezes de artesãos que uma das maiores dificuldades de trabalho é justamente a comercialização. Gostaria de saber se para vocês a comercialização é de fato uma dificuldade.

Gercina Maria de Oliveira: Sim. A comercialização é mesmo uma dificuldade. Para nós, fazer o produto não é tão complicado. O difícil é vender para o dinheiro chegar. Entretanto, com a Central, as coisas ficaram mais fáceis. A Central facilitou a comercialização porque todo mundo que produz pode levar o seu produto diretamente para lá que eles vendem. A Central vende e exporta por todos os cantos.

Da maneira que vocês estavam contando, há muitos anos, quando vocês aprenderam esse ofício, vocês não falaram de venda, mas disseram que faziam o artesanato para dentro de casa, para os enxovais, para a família etc.

Gercina Maria de Oliveira:
Sim, a produção ficava mais para dentro de casa mesmo.

Maria de Jesus Soares: É, quase não sobrava para vender. A gente não comprava nada em loja, então tudo era feito nas nossas casas.

Gercina Maria de Oliveira: Era feito e consumido na própria casa.

E hoje, se produz mais para a venda ou ainda se faz mais peças para consumo próprio?

Maria de Jesus Soares: Eu tenho ainda alguns produtos em casa, mas a grande parte do que eu faço é para a venda mesmo.

Gercina Maria de Oliveira: Sim. Hoje as peças são mais para a venda, mas ainda tem algumas coisas que ficam com a gente.

Maria de Jesus Soares: Eu ainda tenho porque eu gosto muito e nunca vou deixar de gostar. Eu tenho cortina, tapete...

Gercina Maria de Oliveira: Eu tenho roupa de algodão, que é diferente das que vocês costumam usar aqui. Nós levamos muito mais tempo para produzir e o processo é bem mais complexo, mas o trabalho é maravilhoso. É muito gostoso de se fazer.

E qual é a diferença dos produtos que vocês faziam antigamente (na época da infância) em comparação as peças que vocês fazem hoje? Houve alguma mudança ou a produção é semelhante?

Gercina Maria de Oliveira: Mudou totalmente. Hoje as peças são padronizadas. A linha já vem com um padrão e é classificada em fina, média, grossa, extragrossa ou extrafina. De toda a região, eu sou a única que fia a linha extrafina.
Maria de Jesus Soares: A extrafina é para fazer...

Gercina Maria de Oliveira: Pano de camisa. A extrafina que eu tenho lá em casa é só para fazer roupa mesmo, porque ela é muito fina – parece um fio de cabelo.

Maria de Jesus Soares: E também, no tempo que produzíamos apenas para o consumo próprio, nós não sabíamos fazer alguns tipos de manta e xale. Mas a Delmira foi lá e deu um curso para nós, assim aprendemos a fazer.

Gercina Maria de Oliveira: Antes também não tinha o pano vazado, mas hoje já tem. Entretanto, veio uma coisa e sumiu a outra. Veio pano vazado e sumiu o desenho.
Maria de Jesus Soares: Mas aquele com o desenho era muito bonito. Se chama repasso e eu faço até hoje.

Mas vocês fazem tecelagem com figuras?

Gercina Maria de Oliveira: Sim. Tecelagem com figuras, com desenho no tecido.

Maria de Jesus Soares: Com o repasso você vai riscando conforme está lá no desenho. E no CTC eu vou olhando o repasso e o transferindo ao liço. Não é, Dona Gercina? Você vai pisando e sai tudo direitinho.

Gercina Maria de Oliveira: Todas as flores vão saindo no tecido. Você coloca a pé na pisadeira, ela abre o liço, você joga a linha e ela vai formando o seu próprio desenho. Vai formando as flores no tecido.

Maria de Jesus Soares: É muito interessante.

Gercina Maria de Oliveira: O pé e as mãos trabalham para formar as flores, o desenho, o passarinho... tudo.

Maria de Jesus Soares: Eu tenho muito repasso em casa, só que não dá para tecer porque lá não tem o liço de quatro folhas.

Gercina Maria de Oliveira: Então vamos fazer o liço de quatro folhas, menina. Eu sei fazer o liço.

Maria de Jesus Soares: Você sabe fazer? O tapete feito no liço de repasso fica bonito demais.

Gercina Maria de Oliveira: Fica. Fica muito lindo. Vamos pedir para o Virgílio fazer as réguas.

O que é “liço”?

Gercina Maria de Oliveira: Liços são umas reguinhas que você coloca no tear que ficam levando e trazendo as linhas para cima.

Então é uma tradição que vocês deixaram de fazer?

Gercina Maria de Oliveira: Sim. Essa aí morreu.

Mas não deixa morrer, Dona Gercina. Resgata os liços.

Gercina Maria de Oliveira: Nós fazemos, mas tem que ter os liços.

Maria de Jesus Soares: Isso, liços de quatro folhas. Precisamos disso para fazer o repasso. Lá para nós o repasso morreu. Não usamos mais.

Gercina Maria de Oliveira: Mas se você tiver os repassos no papel a gente faz o liço e você volta a fazer o tecido com flores. Tinham diversos nomes para os tecidos que traziam as flores, como casca de laranja, redemunho, pavão, esteirinha, tampa de cumbuca, etc. Esse de tampa de cumbuca faz uma flor direitinho.

Maria de Jesus Soares: Tem o docinho de leite também, que dá certinho para colocar no jogo americano.

Gercina Maria de Oliveira: Quando a minha mãe morreu eu acabei saindo um pouco da minha rotina, só que nunca deixei a minha roda de lado. Também nunca abandonei as minhas letras, as minhas cantigas que eu faço. Eu canto a minha própria letra, não pego a de ninguém não. Não faço paródia. Eu canto a letra que eu mesmo faço. Até hoje eu ainda tenho uma cantiga assim:

Quando eu fico sem serviço, a tristeza me atormenta.
Há mais de cinquenta anos essa roda me sustenta.
Com ela eu ganho dinheiro, roupa e pão que me alimenta.
E assim eu vou levando a minha vida em marcha lenta.
É um lento esse que não pode parar, não é? Normalmente era um serviço lento mesmo, mas fazia sentido.


Maria de Jesus Soares: Fazia sentido.

Gercina Maria de Oliveira: Fazia sentido. Era muito bom.

Legal. Vai ter que cantar pra gente hoje à noite. Essa aí é muito legal.

Maria de Jesus Soares: Vai ter que cantar e a gente vai acompanhar junto. É melhor cantar junto.

Gercina Maria de Oliveira: Eu faço e canto a minha própria letra.

Muito bom. Achei muito legal.

Maria de Jesus Soares: Nesses mutirões que a gente fazia nós chegávamos
cantando. A minha mãe ia pegando a roda e já começava a cantar. Nós, então, nos acostumamos com isso. Assim, todo mundo chegava aos mutirões cantando.

Vocês se encontram uma vez por mês?

Gercina Maria de Oliveira: É uma festa mensal que acontece na última sexta-feira do mês.

Maria de Jesus Soares: Em Riachinho é na última sexta-feira.

Gercina Maria de Oliveira: E lá em Sagarana é na segunda quinta-feira do mês.

Maria de Jesus Soares: Pois é. Cada um tem o seu dia.

Uma das características dos produtos do Polo Veredas é a variedade e sazonalidade das cores alcançadas com o uso de corantes naturais. Como é o processo de obtenção das cores para a fabricação de produtos tão coloridos? Como que isso começou?

Gercina Maria de Oliveira: O colorido e as cores naturais vêm dos nossos antepassados. Lá nós falamos que essas são as cores do cerrado. Dessa forma, para não agredir a natureza, nós usamos a serragem. Nós vamos à marcenaria e pegamos aquela serragem da madeira. Os marceneiros vão usar a madeira para o que eles precisam e aquele pó da serragem, que eles iriam jogar fora, para nós tem uma grande utilidade no processo de fazer os tecidos coloridos. Assim, nós pegamos a serragem, levamos para os tachos, colocamos para ferver e a cor já começa a soltar ali mesmo. A serragem vai soltando aquela cor. Aí, a gente coa para tirar o bagaço e mergulha as meadas para dar continuidade ao processo de tingimento.

Muito interessante. E esse tingimento sempre foi tradicional?

Gercina Maria de Oliveira: Sim. Sempre foi uma tradição.
Maria de Jesus Soares: Antes o povo cortava o pau e tirava a casca. Hoje não pode mais. O “florestal” não deixa.

Gercina Maria de Oliveira: E se a pessoa souber tingir, a cor não “descola” não. E tem a cor preta também, que é feita na lama.

Maria de Jesus Soares: É, no boizinho e na lama.

Gercina Maria de Oliveira: Boizinho é um pau-terra.

Maria de Jesus Soares: Você pega aqueles boizinhos e soca, faz o chá, coloca dentro do tacho e deixa ferver um pouquinho. Depois,     põe na lama e deixa no sol. O tecido fica bem pretinho.

Gercina Maria de Oliveira: Põe na lama e deixa dormir.

Maria de Jesus Soares: Minha mãe tingia demais.

Gercina Maria de Oliveira: Eu tinjo na lama até hoje.

Tem algum produto para fixar essa cor ou ela se fixa naturalmente?

Gercina Maria de Oliveira: Não. A da lama se fixa naturalmente e não descolora nunca.

Maria de Jesus Soares: É. Não precisa.

Gercina Maria de Oliveira: Antigamente, quando as mulheres ficavam viúvas, elas só vestiam roupas pretas.

Maria de Jesus Soares: Só preto.

Gercina Maria de Oliveira: Aí, todo o tingimento era feito na lama.

Mas hoje todo mundo usa preto ou são só as viúvas?

Maria de Jesus Soares: Não. Hoje está na moda.

Gercina Maria de Oliveira: Hoje a viúva não usa mais preto, porque o preto virou moda.

Maria de Jesus Soares: Mas, antigamente, viúva só usava preto, não é?

Gercina Maria de Oliveira: Elas diziam que era um símbolo de tristeza.

Maria de Jesus Soares: Mas hoje não. Hoje preto simboliza alegria.

E vocês disseram que não se pode cortar mais as árvores.

Gercina Maria de Oliveira: Sim. Hoje o IEF proíbe.

Existem outras leis ambientais que acabaram interferindo, de alguma maneira, no trabalho que vocês faziam?


Gercina Maria de Oliveira: Tem a tinta artificial, que é a que nós compramos. As tintas do mercado. A gente compra e faz os coloridos, mas assim já não é o natural da nossa antiga tradição.

Maria de Jesus Soares: E esse produto não pode vir mais para cá, para as feiras. Essas peças nós fazemos para vender lá. Nós compramos aquelas latinhas e tingimos para vender por lá mesmo.

Na região?

Maria de Jesus Soares: Isso, porque levar para a feira não pode.

Por que não pode vir para a feira?

Gercina Maria de Oliveira: Porque foge da naturalidade. Vira uma coisa artificial, e o nosso artesanato trabalha com coisa natural.

Sai do posicionamento de vocês, então.

Gercina Maria de Oliveira: Pois é, sai do posicionamento porque a tinta natural é que faz a nossa diferença.

Maria de Jesus Soares: A nossa produção é toda manual. Tudo, tudo. É uma coisa natural mesmo.

Quantas artesãs estão envolvidas com a tecelagem hoje, nos cinco polos?

Gercina Maria de Oliveira: Tecelãs eu não sei, mas artesãs são 180.
Maria de Jesus Soares: Tecelãs eu não sei também.

Vocês estão falando das que bordam, das que fazem...

Gercina Maria de Oliveira: Tudo. Nós estamos falando das 180 mulheres artesãs lá daquela região de Minas Gerais.

Gercina, em setembro de 2013 você participou da exposição “Mulher Artesã Brasileira”, em Nova York, na Sede da Organização das Nações Unidas (ONU). Qual foi a importância dessa participação para a senhora e para o grupo de artesãs?

Gercina Maria de Oliveira: Foi muito bom. Foi um passeio, digamos assim, muito bem aproveitado. Vi muita coisa. Aprendi. Ensinei. Tive contato com pessoas do país inteiro - não só de Minas Gerais, como de todo o Brasil. Vi cada artesã fazendo a sua parte, mostrando o seu ser, a sua cultura, a sua tradição. Esse encontro foi muito importante. E, também, a gente vê a importância do nosso trabalho, já que ele foi muito bem aceito no exterior. Eles até estão pedindo para a gente fazer mais quinze daquela Manta Chenille.
E lá também teve uma apresentação para o embaixador, o Felipe, onde dissemos o que somos, de onde viemos e o que temos. Aí, cada artesã ofereceu um objeto, uma lembrancinha, e eu tinha levado um xale. Quando chegou a minha vez eu falei para ele “Olha, nós trouxemos aqui, da nossa tecelagem, uma peça trabalhada com o algodão. Essa lembrancinha é para a esposa do senhor. O que nós fazemos é isso aqui. Eu trouxe essa lembrancinha e espero que ela use, goste e divulgue o nosso trabalho, afinal também precisamos buscar mercado.”  Depois disso, ele disse “Mas mulher, você fala demais”. Aí eu falei “Mas é assim mesmo”.
E estar lá na ONU foi uma grande satisfação. Foi uma honra muito grande. Eu me senti muito honrada por Deus ter me dado esse chance de ir lá. Eu também falei para o Felipe: “Olha, lá nós temos 180 mulheres que trabalham no artesanato, mas não é só com algodão não. Lá nós temos o trabalho com madeira, com o buriti, temos a extração do baru e ainda a criação de abelhas.” Tudo isso é artesanato e ajuda na renda familiar de todos que moram lá.
Eles ficaram muito maravilhados com aquilo e nós deixamos a manta lá para eles. Acho que vão levar para o museu e imediatamente vão fazer pedidos para ir mais coisa para lá. Eles ficaram de nos ajudar. O embaixador também falou algo muito engraçado: “Que bom que eu sei que vocês estão aqui debaixo das minhas asas. Vocês estão aqui sob os meus domínios”. E eu disse: “Que honra estar debaixo de uma asa dessa”.

Como é que você foi escolhida?

Gercina Maria de Oliveira: Foi através de uma seleção. Acredito que o grande responsável foi o SEBRAE. Quem me levou para lá foi o SEBRAE, a ABEXA, a Mão de Minas e o Centro Cape. Graças a Deus, todos se juntaram e fizeram que nem formiga para carregar uma carga grande. Cada uma dessas instituições chegou num lugar e aí começou a seleção. Vieram uns questionários para a gente responder. Fizeram isso no Brasil inteiro. Depois disso, eu fui uma das selecionadas. Fui a oitava selecionada e a segunda a falar. Foi muito bom. Todo mundo, por sua vez, deu aquela mão e assim eu fui selecionada, graças à ajuda de Deus. Nós ficamos lá uma semana e a cada dia tinha uma entrevista. Cada dia a gente falava um pouco sobre o que temos, o que somos e o que fazemos.

Em diversas comunidades de artesãos, os mais jovens já não têm tanto interesse em permanecer no seu local de origem e acabam se mudando para cidades maiores em busca de uma vida diferente. Nas cidades da região de Veredas, os mais jovens têm interesse em aprender o ofício? Os saberes estão sendo transmitidos às novas gerações?

Gercina Maria de Oliveira: Eu digo para você que nós temos poucos aprendizes. Primeiro porque não pode ensinar ninguém a trabalhar quando ainda é pequeno, só pode ensinar quando a pessoa já caiu do galho maduro. Aí, até chegar nesse galho maduro, a pessoa já criou outras coisas na mentalidade e o nosso artesanato acaba perdendo espaço. Hoje os jovens só ficam no computador e na televisão, assim são poucos os que se interessam pelo artesanato. Porém, esses poucos são muito bem vindos. A gente ensina com carinho, com muito amor e com muito apego para que eles não deixem essa tradição cair. Eu, por exemplo, quero que um dia eles falem “Foi a Dona Gercina que me ensinou a fiar, a tecer, que me ensinou a tingir e que me ensinou tudo isso, porque ela sabia e deixou como herança.” Se eu deixar gravado num CD ou num disco, isso pode quebrar e a coisa toda acaba, mas a gente não quer que essa tradição morra. Desde os nossos antepassados e até hoje essa herança já ajudou muita gente. Nossos aprendizes são muito poucos, mas mesmo assim a gente quer deixar essa tradição como herança, passando-a de geração para geração. Esse é o meu desejo.

Maria de Jesus Soares: É como a dona Gercina está falando. Os novos não estão querendo aprender o ofício. Eu tenho cinco filhas e só duas sabem mexer com as linhas. As outras querem ser professoras ou fazer outras coisas. Elas falam “Isso aí não dá nada. Isso aí não dá nada mais não, mãe”.

Gercina Maria de Oliveira: Eu tenho doze filhos. Todos já vestiram a roupa de algodão feita com aquele fio extrafino, quase igual a um fio de cabelo, mas nenhum tem interesse em se profissionalizar nisso.

Maria de Jesus Soares: Ninguém mais quer.

Gercina Maria de Oliveira: Eu ensinei o trabalho a todos os meus filhos. Se precisar fazer uma demonstração, eles sabem, mas nenhum faz igual a mim.

Até os meninos sabem?

Gercina Maria de Oliveira: Sim, até os meninos.

Maria de Jesus Soares: A gente ensina de graça, com todo o carinho. Afinal, não queremos receber nada por isso. Nós só queremos passar o que sabemos para as novas gerações, mas eles vão num dia na associação e dizem: “Ah, é muito trabalhoso. Isso daqui não dá nada não”. Eles não dão valor igual nós damos. Se não der muito dinheiro, eles não querem.

Gercina Maria de Oliveira: E o artesanato também é um serviço que dá uma renda muito lenta.

Maria de Jesus Soares: Pois é. A gente dá valor no serviço, mas eles estão querendo dinheiro. Eles até chegam a ir na associação, mas passam uns dois dias, falam que depois voltam mas não pisam mais o pé lá. A gente ensina de graça, com todo o carinho, e eles ainda não querem.

Vocês falaram que não pode ensinar os jovens quando eles são muito novos?

Maria de Jesus Soares: É, lá não pode. A gente aprendeu o ofício com oito anos, mas se algum menino trabalhar lá com essa idade dá até cadeia, meu filho. Gente nova não pode trabalhar ainda não. Só pode ficar na rua.

Mas vocês não tiveram aquele projeto do Ponto de Cultura?

Gercina Maria de Oliveira: Tivemos, mas a gente trabalha com o comércio justo, por isso mesmo que a gente não pode ter gente nova trabalhando.