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A CASA E O MUNDO

ENTREVISTA

ELIZABETH RAIMUNDO DOS SANTOS

Publicado por A CASA em 12 de Janeiro de 2014
Por Ivan Vieira

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“O registro como Patrimônio Cultural Brasileiro permitiu que o país inteiro tivesse conhecimento sobre o trabalho que fazemos aqui”
 
Elizabeth Raimundo dos Santos é presidente da Associação para o Desenvolvimento de Renda de Divina Pastora


Quando e como você aprendeu o ofício de trabalhar com a renda irlandesa?
Aprendi quando tinha oito anos de idade. Quem me ensinou esse ofício foi a Dona Marlene.

A Dona Marlene era sua parente?
Não, não era. Naquela época as mães gostavam que os filhos aprendessem o ofício da renda irlandesa.  Assim, minha mãe me colocou com essa senhora, chamada dona Marlene, para que ela me ensinasse o ofício.

Quais são as etapas do processo técnico para a confecção de peças artesanais com renda irlandesa?
A primeira etapa é fazer o desenho. Depois, alinhamos e colocamos esse desenho num papel forte, tipo papel madeira. Após isso, fazemos os ilhoses, que são umas rodinhas, e os colocamos nesse papel, pregando e alinhavando o cordão em cima do desenho. Depois de tudo alinhavado, começamos o processo de arremate, de unir. Por fim, começamos a fazer os tipos de ponto, que estão escritos em cada desenho.

Uma rendeira faz todo esse processo sozinha ou existe uma divisão do trabalho?
A única coisa que a rendeira não faz é o desenho, mas todo o processo de colocar no papel, de fazer os ilhós, de alinhavar e de fazer os tipos de ponto é feito por uma pessoa só.

E quanto tempo demora, em média, para produzir uma peça utilizando a técnica da renda irlandesa?
Depende do tamanho que for a costura. Para fazer uma peça, normalmente gastamos de quinze a trinta dias, mas existem algumas peças que podem levar até 120 dias para ficarem prontas. Isso vai depender muito do tamanho.

Qual é a origem da renda irlandesa em Divina Pastora?
Escuto desde pequena que a renda irlandesa foi trazida para Divina Pastora através de algumas freiras, que vieram de outro país. Elas chegaram aqui e ensinaram o ofício para as senhoras de Divina Pastora. Depois que elas foram embora, as pessoas que aprenderam o ofício passaram esse aprendizado para toda a comunidade.

Você sabe quanto isso aconteceu?
De acordo com a pesquisa feita pelo IPHAN, essas freiras chegaram aqui em Sergipe no século XIX.

Qual foi a importância da criação da ASDEREN (Associação para o Desenvolvimento de Renda de Divina Pastora)?
A criação dessa associação foi muito importante para a comunidade local. Entre os anos de 1998 e 1999, a esposa do presidente Fernando Henrique Cardoso, a senhora Ruth Cardoso, criou uma ação de resgate do artesanato brasileiro que estava se acabando. Assim, foi enviado para Divina Pastora um senhor chamado Arantes, Antônio Arantes. Ele chegou aqui e começou a fazer reuniões com todas as rendeiras de Divina Pastora. Primeiro, foi feita uma pesquisa para saber quantas rendeiras tinham. Depois, ele se reuniu com todas as rendeiras e começou a desenvolver um processo de estudo sobre a nossa renda, vendo o que ficava mais caro, o que ficava mais barato, o que dava dinheiro mais rápido e o que era melhor para fazer com que renda irlandesa não se acabasse.
Assim, depois de tudo isso, foi fundada, em dezembro 2000, a nossa associação. E logo depois, em 2006, nós fizemos a construção do nosso próprio prédio. Essa criação foi muito importante porque, até então, as rendeiras de Divina Pastora não tinham sede, não tinham onde se reunir. Antes, nós fazíamos reuniões até mesmo em praças ou debaixo de árvores, mas hoje nós temos uma sede, ou seja, um espaço físico que pertence somente à associação. Hoje nós também passamos a ter estatuto, atas, etc. Só com esses documentos é possível ter uma associação mesmo, com seu prédio, com seus móveis, com tudo isso.

Quais foram os impactos que a ASDEREN trouxe na vida das artesãs?
Acho que o principal impacto trazido foi à melhora da condição de vida, com o aumento da renda das artesãs. Com a ASDEREN a produção da renda irlandesa melhorou, então as artesãs passaram a ser mais recompensadas pelo trabalho que realizam. Em Divina Pastora nós temos muitas pessoas pobres, então, para as artesãs, a renda se tornou um meio para conquistar aquele dinheirinho. Não é muito dinheiro, mas o que elas recebem vem de bom grado.

Já dá para contribuir com a renda da família, não é?
Sim, com certeza.

Como você se tornou presidente da associação?
Na fundação, em 2000, a associação tinha outra presidente, que se chamava Maria Clara. Depois de dois anos houve uma eleição e a Maria Clara falou que não queria mais pelejar com pessoas que não eram agradecidas pelo trabalho que estava sendo desenvolvido. Foi aí que eu entrei e estou até hoje, porque as meninas fazem questão de não me tirar. Eu faço reunião para decidir quem será a nova presidente, mas sempre quem fica sou eu, só sobra pra mim [risos]. Assim, estou na presidência desde 2002. Estou cansada, viu? [risos].

E como presidente, quais são suas principais tarefas dentro da associação?
Na associação nós temos o presidente, o vice, o secretário, o tesoureiro e outros três membros. Quando as artesãs associadas se reúnem para trabalhar, elas são recompensadas, elas ganham dinheiro através da venda dos produtos que são feitos, mas quem trabalha na associação não recebe nada. Nós fazemos o trabalho sem receber uma recompensa. E aí sobra tudo para mim, tudo. Faço compras para associação de matéria-prima, como linha, lasse e tecido; recebo e envio as encomendas por Sedex; faço os pagamentos e etc. Tenho que fazer tudo isso.

Tudo fica concentrado em você?
Sim, o que é um erro.

Mas, na sua opinião, por que as pessoas não se interessam em trabalhar na associação?
Elas não se interessam porque o trabalho não é remunerado. Ninguém quer trabalhar de graça.

Mesmo com todas essas tarefas, você continua produzindo? Dá tempo de conciliar as tarefas como presidente da associação e o trabalho com a renda?
Eu ainda trabalho com a renda. Dá tempo sim. Não consigo produzir muitos objetos, mas continuo fazendo as minhas peças quando tenho algum tempo livre. Agora mesmo, em janeiro, nós vamos participar de uma feira aqui em Sergipe, então já estou me organizando para produzir algo. Pretendo vender os produtos aqui da associação e de algumas rendeiras, levando o máximo possível.

O que uma artesã deve fazer para integrar a Associação para o Desenvolvimento de Renda de Divina Pastora?
Ela precisa saber como se faz o ofício. É necessário que a renda irlandesa seja bem feita. Caso a pessoa ainda não tenha essa habilidade, ela deve primeiro aprender, para depois se associar. Afinal, o processo para se tornar uma associada é difícil, porque a renda irlandesa não se aprende da noite para o dia. Você leva tempo e sempre aparece coisa nova para a gente aprender.

Atualmente, qual é o número de artesãs que fazem parte da ASDEREN?
Hoje em dia nós temos, mais ou menos, sessenta mulheres associadas. Ás vezes esse número diminui um pouco, porque algumas mulheres resolvem fazer a renda irlandesa por conta própria, de forma independente.

Em geral, essas rendeiras são profissionais, trabalhando apenas com o artesanato, ou elas têm outros trabalhos, deixando a produção de rendas para as horas livres?
A maioria trabalha somente com a renda, mas existem artesãs que possuem o seu trabalho e fazem a renda irlandesa quando estão com um tempo mais livre. Mas, no geral, ninguém deixa de fazer a renda irlandesa porque trabalha.

E como se dá a relação da associação com os clientes? O cliente compra direto da associação ou compra direto da artesã?
Os clientes compram direto da ASDEREN. O processo é o seguinte: a artesã, que é associada, faz a sua peça e a vende para a associação; depois, nós pagamos o trabalho da rendeira e revendemos o produto. Entretanto, quem é independente, ou seja, não está ligado a associação, vende os seus produtos diretamente para o cliente.

O município de Divina Pastora é muito marcado pela religiosidade do seu povo, sendo considerado como um “Santuário de Pagamento de Promessas”, graças à devoção a Nossa Senhora. Para você, a religiosidade do município influencia, de alguma forma, o trabalho das artesãs com a renda irlandesa?
Não. Porque na peregrinação, quando o povo vem pagar promessa, nós quase não vendemos renda irlandesa. Nós sempre temos pedidos o ano todo, fazendo entregas ou produzindo para a própria associação, mas nesse dia de peregrinação nós não vendemos renda. Na minha opinião, isso ocorre porque a renda irlandesa é o artesanato mais caro do país; quem vem para pagar promessa, vem para rezar e só leva coisas baratinhas, como terço ou outras lembrancinhas.

Não aparece ninguém para comprar?
Se aparece, pergunta o preço, mas não compra porque acha caro.

No dia 28 de janeiro de 2009, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), registrou o modo de fazer Renda Irlandesa da cidade da Divina Pastora como Patrimônio Cultural Brasileiro no Livro de Registro dos Saberes. Qual foi a importância desse registro?
Para nós, da comunidade, esse registro foi algo além do esperado. Foi muito surpreendente. O Registro como Patrimônio Cultural Brasileiro permitiu que nossas peças fossem mais divulgadas e que o país inteiro tivesse conhecimento sobre o trabalho que fazemos aqui. Tivemos um aumento no número de pedidos e encomendas, possibilitando que tenhamos trabalho o ano todo. Portanto, esse registro foi ótimo não só para associação, mas para todas as rendeiras que moram aqui em Divina Pastora.

De onde partiu a ação que culminou com o registro da renda irlandesa como Patrimônio Imaterial?
Esse processo aconteceu através de uma senhora, muito católica, que trabalhava no IPHAN. Ela sempre vinha aqui na cidade para visitar a igreja de Divina Pastora, que estava em processo de registro para se tornar um patrimônio histórico. Como ela gostava muito da renda irlandesa e já conhecia o nosso trabalho há muitos anos, ela sempre dizia que um dia a renda irlandesa também teria o seu próprio registro como patrimônio cultural do Brasil. Assim, ela começou a fazer o processo de pesquisa necessário para efetivar esse registro. No fim, acabou dando tudo certo.

Quando esse processo ocorreu?
Desde 1998, 1999 ela já vinha para a cidade e sempre comentava “um dia essa renda irlandesa vai ser patrimônio cultural. Eu vou começar esse processo”. Assim, depois de um tempo, eles começaram a fazer muita pesquisa. Se não me engano, o trabalho de pesquisa demorou uns quatro ou cinco anos, porque eles investigaram tudo direitinho. Foi um processo bem longo.

Você disse que logo após da concessão do registro, houve um aumento nas vendas e na procura dos produtos. Com isso, vocês estão participando de mais feiras?
Sim, participamos de várias feiras. Já estivemos quase no país inteiro, levando o nosso trabalho com a renda irlandesa. Já fomos para São Paulo várias vezes, inclusive. E todos os anos nós participamos da feira do SEBRAE, aqui em Sergipe.

O próprio SEBRAE que leva vocês para as feiras?
Nossa cidade fica bem perto de Aracajú. Então, compramos o estande, a prefeitura reserva e nós vamos expor na feira de Sergipe. Mas o SEBRAE nos auxilia nessas feiras também. Quando eles não levam a rendeira junto, pelo menos levam o artesanato do estado de Sergipe. Então, em todas as feiras que o SEBRAE participa, a renda irlandesa está junto. Em qualquer estado do país.

Vocês vendem para todo o Brasil e já venderam até para o exterior, não é?
Isso. Tem uma senhora, que vive há muitos anos na Argentina, que passou por aqui, em Divina Pastora, e levou a renda irlandesa para lá. Teve uma moça também dos Estados Unidos. Eu organizava todos os pedidos que ela queria, enviava para São Paulo, e de lá ela mandava os produtos para os Estados Unidos, para uma loja que ela tem. Assim, nosso conhecimento já chegou em lugares bem distantes.

A comunidade de Divina Pastora também consome as rendas?
Não. Eu mesma sou rendeira há muitos anos e não tenho nenhuma peça. Vendo tudo. Quem aparece e gosta, a gente vende.

Em 2013, a renda irlandesa da Divina Pastora recebeu o Selo de Indicação Geográfica do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI)...
Isso, pelo Sebrae.

Como esse selo contribui para a produção local das artesãs?
Esse selo veio para valorizar ainda mais o nosso trabalho. Com ele, toda artesã precisa fazer a renda irlandesa com qualidade. Dessa maneira, a rendeira precisa se aperfeiçoar para receber o selo. Se não tiver qualidade, não tem o selo. Como essas peças que tem o selo ficam viajando pelas feiras, todo mundo fica sabendo que nosso trabalho é de qualidade. Isso valorizou muito.

Todas as artesãs que participam da associação recebem este selo?
Sim. Todas as peças feitas para a associação recebem o selo. Algumas rendeiras da cidade, não associadas, também têm direito de receber o selo, mas só recebe o selo aquele trabalho feito com qualidade.

Em diversas comunidades de artesãos, os mais jovens já não têm tanto interesse em permanecer no seu local de origem e acabam se mudando para cidades maiores em busca de uma vida diferente. Em Divina Pastora, os mais jovens têm interesse em aprender o ofício? Os saberes estão sendo transmitidos às novas gerações?
Alguns não querem aprender o ofício, mas muitos ainda têm o interesse – e nós procuramos aproveitar esse interesse ao máximo. Então, sempre organizamos cursos para quem quer aprender. Tem curso de desenho - que é o risco - e tem curso da própria renda. E participa muita gente, porque o povo daqui não tem muito dinheiro, assim a renda vem do artesanato mesmo. E, também, o povo daqui não gosta muito de sair pra morar em outros lugares. Tem algumas pessoas que vão embora, trabalham, mas quando tem um tempo livre ainda fazem uma renda em casa, onde quer que esteja morando.

Na sua opinião, então, os saberes estão sendo transmitidos para as novas gerações?
Sim. Por sinal, até na escola nós tivemos um projeto, onde fizemos aulas de artesanato para quase quarenta alunos. Então, a gente está passando os saberes para quem quer, e não é pouca gente. Muitas moças aprendem a renda e vivem dela. Tem muita criança com idade de oito anos, e até pessoas mais velhas, com vinte anos, que se interessam em aprender o ofício. Tem pessoas que chegam de fora, que não sabem fazer a renda, mas tentam aprender. Assim, a gente vai ensinando o ofício.

Qual é o principal diferencial da renda que vocês fazem?
Acho que é o desenho e a forma como a renda irlandesa é feita. Existe a renda renascença, que se parece muito com a renda irlandesa, só que ela é feita com fita, já a nossa renda é feita com cordão. Os pontos são quase os mesmos, mas a renda irlandesa é feita de uma maneira diferente. Quando produzimos a renda irlandesa, tiramos o desenho do papel e fazemos tudo com muita cautela e conservação, tanto que nem precisa lavar a peça depois que ela fica pronta. Já a renascença, que é feita de outro jeito, fica muito suja e tem de ser lavada e colocada vários dias de molho para voltar a ser branca. Então, está aí a diferença. O desenho e a qualidade acabam sendo alguns dos diferenciais.

A produção é feita exclusivamente por mulheres? Existe algum homem que também trabalha com a renda?
Só mulheres, mas apareceu um homem agora. Entretanto, durante toda a minha vida, a renda irlandesa na nossa cidade sempre foi feita somente por mulheres.

Mas homens se envolvem indiretamente, na venda ou na compra de materiais, por exemplo?
Não. Os homens não se envolvem em nada. Não sei o porquê, mas não se envolvem.

Quais são as principais dificuldades enfrentadas por vocês?
Existem muitas dificuldades, principalmente porque têm épocas que a venda cai muito. Então, a dificuldade acaba sendo realizar o pagamento das rendeiras, porque sem venda nós não temos dinheiro. Quando nós não tínhamos o prédio, também era muito difícil conseguirmos um local para nos encontrarmos. Enfrentamos outra dificuldade quando, numa época, um dos materiais que usamos estava escasso. Então, de forma geral, sempre tivemos várias dificuldades, mas, pouco a pouco, elas vão sendo vencidas. Aliás, precisa existir dificuldade para algo ser realmente valorizado.

A comercialização tem melhorado nos últimos anos?
Sim, melhorou. Mas existem algumas dificuldades na venda porque o nosso artesanato é o mais caro do país. Assim, muita gente não tem condições de comprar.

Por que a renda irlandesa é considerada o artesanato mais caro do país?
A matéria-prima torna o produto muito caro, principalmente porque nós usamos materiais de excelente qualidade. O cordão, o tipo de linha, os tecidos e uma série de outras coisas acabam tornando o produto mais caro. O cordão até melhorou de preço agora, porque o IPHAN comprou uma boa quantidade e forneceu o material com um preço menor para a gente. Mas mesmo assim, depois que a gente coloca tudo na ponta do lápis, fica caro.

É muito difícil conseguir esses materiais?
Não é difícil. O principal problema é o preço mesmo.

Quanto custa uma toalha de mesa confeccionada por vocês?
Uma toalha de mesa grande custa R$ 6.000,00.

E qual o produto mais barato?
Os mais baratos são a capinha de celular e o marca texto, que custam R$ 15,00 cada.

Em qual época do ano vocês vendem mais?
A vendagem começa a ser boa principalmente a partir de setembro. Em agosto e setembro nós recebemos as encomendas e entregamos tudo em novembro e dezembro. Então, são nesses meses que gente tem uma boa vendagem. E em janeiro as vendas são boas também, porque a gente participa de feiras.