ENTREVISTA
MAYUMI ITO
Publicado por A CASA em 3 de Abril de 2014
Por
Ivan Vieira

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"A peça reflete toda a somatória da disciplina, da perseverança, da fé e da criação do artesão"
Mayumi Ito é idealizadora da marca amaria.
Você nasceu no Espírito Santo, mas mudou-se para São Paulo quando era criança, onde estudou Arquitetura na Universidade Presbiteriana Mackenzie de 1979 a 1984. Depois, viveu durante quinze anos no Japão atuando na área do design e da moda. Conte-nos um pouco dessa trajetória. Como e por que você traçou esse caminho?
Em 1986 recebi uma bolsa-trabalho num projeto realizado pela Câmara de Comercio do Japão em São Paulo. Eles promoveram um concurso para recrutar especialistas de diversas áreas para trabalhar na Seibu Department Store de Tóquio. Fui contratada como arquiteta e direcionada para Studio Casa de Seibu Yurakucho.
Na Seibu fui contratada como arquiteta – por causa da minha formação e para a concessão do visto – mas, eu queria estudar moda porque eu já trabalhava nessa área. Quando fui agraciada no concurso para Tóquio já havia o desejo de estudar e trabalhar na área de moda. Fiz arquitetura principalmente por causa da moda, porque não existia faculdade de moda na ocasião. Então, fui para lá e estudei modelagem e moulage no Amiko Fashions, onde participei de um workshop regular ministrado pelo Prof. Junnichi Ono do Pratt Institute of New York e de um aperfeiçoamento na escola Cork Room e Hathor.
Durante seis meses trabalhei no departamento de arquitetura, o que foi muito bom para entender a rotina numa empresa japonesa. E, depois de seis meses, fui transferida para o departamento de moda, o Seed-Seibu de Shibuya, onde permaneci como costume designer e curadora de novos talentos até 1990.
Nos quatro anos que fiquei na Seibu Department Store fui privilegiada com maravilhosos encontros de pessoas que influenciaram minha vida pessoal e profissional. Um desses encontros foi com o Sr. Sori Yanagi, diretor do museu The Japan Folk Crafts Museum ou Min Gei Kan, em Tóquio. O pai dele, Sr. Sotetsu Yanagi, foi o idealizador e fundador desse museu, que tem como conceito a valorização do craft e do utensílio utilizado no cotidiano das pessoas.
Quando conheci esse museu fiquei impactada com a arquitetura, o acervo-têxtil, o vestuário, a tapeçaria, a cestaria, a cerâmica, a madeira, o desenho e a pintura daquelas peças, porque todos os objetos eram utensílios do dia a dia de vários artesãos de regiões rurais do Japão. Tudo aquilo era exposto como peças de arte e design. Assim, a filosofia e o pensamento do Sr. Sotetsu Yanagi me fez refletir sobre alguns valores e caminhos.
E o filho dele também, o Sori Yanagi, que fez o Butterfly Chair (conhecida mundialmente) também seguiu a filosofia do funcional e do simples, mesmo recorrendo a recurso industrial. Os protótipos eram feitos manualmente, testados incansavelmente até a satisfação plena em suas mãos.
Ao longo desse meu trabalho de quatro anos, fui encontrando muitos designers e artesãos que perpetuavam a técnica tradicional e o trabalho artesanal. Por exemplo, o Sr. Junichi Arai, fundador da NUNO, que fazia parceria com pequenas indústrias têxteis de produção semi-industrial e que desenvolveu tecidos para o Issey Miyake.
Assim, quando eu conheci a forma de olhar desses designers e artesãos – de recuperar a técnica semimorta, a técnica em extinção, ou a técnica tradicional – comecei a me lembrar do passado, da minha infância, das peças trazidas pela minha mãe do Japão. Ela nasceu na província de Nagano, com pais que comercializavam tecidos de quimono (gofukuya). Eu e meus irmãos crescemos com roupas costuradas, crochetadas, bordadas e tingidas por ela. Assim, pouco a pouco, o tecido, a textura, a cor e o fazer manual foram, naturalmente, fazendo parte da minha rotina.
Quando eu fui para o Japão e me encontrei com essas pessoas, houve uma sintonia. A cada encontro com artesãos japoneses fui me apaixonando cada vez mais pelas peças hand made. Assim, comecei a focar o meu trabalho no hand made, no feito à mão.
Paralelamente ao trabalho de moda – nas áreas têxtil e fashion – eu também fazia ilustração na Magazine World e trabalhava com design gráfico, mas sempre tendo como foco principal o “feito à mão”, participando anualmente da mostra Hand Made Calender sobre papel artesanal japonês, o washi.
Com o trabalho de costume design nesses três anos e meio, fui percebendo que um objeto feito à mão era uma coisa caríssima, raríssima e quase inacessível dentro do Japão. Ao me desligar da Seibu, montei uma empresa de consultoria – a Pivot Design Ltd., que atuava na área da moda, têxtil, desenvolvimento de coleção, design gráfico e ilustração. Através desse trabalho, comecei a perceber que o hand made era feito só na China, na Indonésia, na Tailândia, nos países asiáticos vizinhos. Tudo que era feito lá fora era importado para o Japão. Isso me deixou um questionamento muito grande: por que uma peça feita à mão era tão cara dentro do Japão? É porque as pessoas não queriam mais ensinar o trabalho manual. Elas não queriam ficar naquele trabalho. As pessoas modernas querem uma coisa mais rápida, industrializada e tecnológica, high tech. Assim, fui percebendo que o hand made tinha um valor muito forte, porque ali havia uma identidade, uma pessoa; ali você enxergava o calor humano e podia rever a tradição. E foi um pouco por aí que comecei a me enveredar nessa área. Fortaleceu em mim o desejo de transmitir esses valores de alguma forma.
Em 1992 eu voltei ao Brasil para fazer a cobertura da Eco 92. Vim como ilustradora, com jornalistas japoneses pela revista chamada Asahi Journal, que é da linha do The Asahi Shimbun. Quando cheguei, fiquei chocada com o Rio de Janeiro porque o evento estava muito maquiado. A cidade do Rio tinha sido transformada. Tinha saído do Brasil em 1986 e fiquei seis anos sem voltar, por isso houve esse choque. O Brasil não é mais aquele Brasil que eu conhecia. E, aí, fiquei com vontade de voltar, de começar a fazer uma ponte entre Brasil e Japão.
Em 1994, comecei um projeto chamado 1+1, que buscava promover o intercâmbio Brasil-Japão entre designers da área de moda, design gráfico e outros profissionais que trabalhassem com as mãos. O objetivo era: para cada tema e projeto, montar um estilo de apresentação, de exposição, workshop, palestra e viagem de pesquisa entre os designers de lá e cá para a troca de experiência, informação técnica, conhecimento e valor. Esse projeto contou com o apoio da Embaixada do Brasil em Tóquio, Varig, Fundação Japão, Banco América do Sul, SESC, Centro Cultural Rubem Valentim e houve parceria com o ISA – Instituto Socioambiental (via Beto Ricardo), com a loja Manufacta (do Renato Imbroisi), com o Atelier Luiz Paulo Baravelli, com os consultores Luciana e Eber da Comunidade Solidária, com o MASP (via Luiz Hossaka) e inúmeros parceiros do Japão.
Nessa época, prestava serviço de estamparia para NUNO. Falei para a diretora na ocasião, a Reiko Sudo, “Reiko, será que eu posso apresentar seus tecidos em São Paulo?”. Esse tecido era semi-industrial, porque envolvia um trabalho mecânico e uma intervenção manual. Havia ali uma simbiose entre manual e industrial.
Conheci o Renato Imbroisi em 1994. Participei da confecção do figurino e cenografia de uma peça teatral no Centro Cultural São Paulo e uma parte do cenário foi feito com um tecido dele. Na ocasião, eu falei pra ele: “Renato, vamos começar a fazer uma ponte Brasil-Japão? Eu te apresento aos meus amigos japoneses em forma de palestra, workshop, mostras, e os brasileiros irão para o Japão. Vamos fazer essa ponte?”. Inicialmente veio a NUNO na loja do Renato Imbroisi e depois o Renato foi para o Japão.
Em resumo, do Japão vieram: NUNO (design têxtil, moda e acessório), Hisako Sekijima (cestaria com fibra vegetal), Keiko e Tetsuji Nakagawara (moda e design têxtil) e Naoaki Sakamoto (papel artesanal). E do Brasil, foram para o Japão: Hisako Kawakami (tingimento natural), Raimundo (pinturas em tururi), Liana Bloisi (art wear), Nido Campolongo (papel reciclado) Moinho Brasil (papel artesanal) e Renato Imbroisi (design têxtil e acessório de fibras).
Nessas ocasiões, os brasileiros eram recepcionados no Salão de Exposição da Embaixada do Brasil em Tóquio. Isso era feito, principalmente, para fortalecer o cunho artístico e cultural do projeto. Sempre desejei que essa iniciativa tivesse uma conotação menos comercial. O objetivo era dar ênfase no design e artesanato inseridos na cultura e identidade brasileira através de materiais, valores e soluções criativas.
Os designers japoneses enalteciam o material da natureza, o reaproveitamento e o uso consciente. Um exemplo singular foi o encontro do designer de papel artesanal, Naoaki Sakamoto, com os índios Ticuna, em Amazonas (indicação do ISA). O papel feito por essa aldeia é a entrecasca de uma árvore chamada tururi. A demonstração do processo de elaboração do papel teve início com a derrubada dessa árvore, de crescimento lento (semelhante ao pau- brasil). Somente a entrecasca do tronco maior era aproveitada como ‘papel’. Sendo assim, o descarte de troncos e galhos foi utilizado para a manufatura de papel artesanal japonês pelos Ticuna, sob orientação do Sakamoto. A pintura e o tingimento do papel foram feitos com pigmentos colhidos no entorno da aldeia, como urucum e jenipapo. Os pincéis foram feitos a partir de fibras de açaí. Assim, ocorreu um aproveitamento total do que eles estavam jogando fora. Durante esse processo, o índio e artista Ticuna foi para o Japão, em Tóquio, na Embaixada do Brasil, onde fez uma exposição e workshop, explicando todo o processo e a cultura indígena. O resultado dessa troca entre o Naoaki Sakamoto e os índios Ticuna resultou numa exposição e palestra em Brasília no Centro Cultural Rubem Valentim e exposição no Sesc Vila Mariana.
Em seguida teve o intercâmbio do trançado e cestaria em diversas fibras vegetais. Veio a artista japonesa, a Hisako Sekijima, que fez uma palestra no MASP e um workshop no ateliê do artista plástico Paulo Baravelli.
E o projeto continuou: um Brasil, um Japão. Intercalando. Em seguida, trouxemos um casal de japoneses da área têxtil, Keiko e Tetsuji Nakagawara. Eles são cultivadores de casulo na província de Yamanashi e continuam com tecelagem manual e tingimento natural até hoje. Na ocasião, eles expuseram suas peças no salão da Fundação Japão e, em seguida, participaram de uma itinerância pelo Brasil através da Comunidade Solidária, o projeto da dona Ruth Cardoso que hoje se chama ArteSol. Esse foi o projeto que nos acolheu e possibilitou a viagem pelo Brasil, começando pelo interior de São Paulo e subindo até o Nordeste, passando por Bahia, Alagoas até chegar a Pernambuco. Junto com a Comunidade Solidária nós conhecemos o semiárido, os sertões, as partes mais pobres do Brasil, onde as Comunidades Solidárias se basearam. O casal de japoneses ficou impressionado e eu também, pois não conhecia o semiárido, uma região que sofre com escassez de materiais, de educação, de infraestrutura. Por outro lado, ficamos encantados com a criatividade no uso de escasso material para a produção de cestos, tapetes, bolsas e rendas; além do encantamento com as baianas no Dia de Iemanjá, apresentação de Maracatu Rural e a gastronomia de cada região. Senti a infinita criatividade dos brasileiros no trabalho manual.
A herança familiar de perpetuar fazeres, ritmos e costumes é importante. A viagem toda me impressionou enormemente. Isso foi um fator decisivo para o meu retorno ao Brasil e ao meu envolvimento com as comunidades da zona rural e artesãos.
Quando que ocorreu esse projeto?
O projeto começou em 1994 e terminou em 2001. Foram seis anos de Projeto 1+1; seis anos de idas e vindas de uma rica experiência entre duas culturas e pessoas intensas, apaixonadas pelo ofício do fazer. Em 2001 eu voltei definitivamente para o Brasil.
Com a minha experiência de estilista, trabalhando com a estamparia, trabalhando com a parte do design têxtil, a quem eu poderia servir? O que eu poderia fazer? Assim, o Renato Imbroisi me chamou para ser consultora do Sebrae para o desenvolvimento de coleção de roupas, mas sentia a necessidade de permanência maior para perceber as sutilezas de artesãos e a revelação lenta de quereres e saberes. Queria me aprofundar e fazer um trabalho a partir do zero. Queria sentir qual era a necessidade e fazer uma troca, mas não uma troca momentânea, temporal. Queria conhecer de forma mais profunda uma região e as pessoas que estavam ali. Com o tempo você vai descobrindo as pessoas, as coisas, enfim. Estava em busca dessa oportunidade.
Fui para o Rio Grande do Sul, para a Semana de Arte Têxtil (organizada pela Rita Webster), e havia uma palestrante que era de Muzambinho, da tecelagem manual Via Roça. Durante o tour pela serra gaúcha, essa palestrante e eu dividimos o mesmo quarto e conversamos bastante.
Como eu sempre apreciei coisas artesanais estava com uma toalha centenária de tear manual dentro da minha bolsa, que eu tinha comprado na Benedito Calixto. Mostrei a toalha para ela e disse que queria fazer roupas com esse tipo de tecido. Ao olhar aquela toalha centenária, ela disse que poderia confeccionar na sua tecelagem e me convidou para conhecer Muzambinho. Aceitei o convite dela, fiquei uma semana na empresa têxtil dela e adorei. Em Muzambinho, no passado, havia produção de algodão, artesãos que cardavam, fiavam, tingiam, teciam e costuravam à mão suas roupas, mantas, cortinas e outros itens da casa. Foi emocionante quando soube dessa história, o que me motivou a mudança para essa cidade. Quando me mudei para lá não havia mais nada disso. Se houve uma história, por que não rever essa história?
Passei seis meses envolvida com essa tecelagem, onde começamos a implantação de textura têxtil com os fios finíssimos de seda, de algodão e o tingimento natural. A especialista de tingimento natural, Hisako Kawakami, esteve em Muzambinho e passou seu conhecimento aos funcionários da tecelagem. A primeira mostra de roupas amaria , com esses tecidos especiais, aconteceu em A CASA, a convite da Renata Mellão. Desde então o museu do objeto brasileiro tem cedido espaço para o lançamento da coleção amaria, como forma de apoio ao projeto.
A primeira coleção foi um sucesso, mas a decepção veio em seguida com término da produção desse especial tecido, pois os tecelões não conseguiram manusear os finíssimos fios, afinal, eles estavam acostumados com tapetes, com cortinas, com jogos americanos, que têm os fios grossos.
Como eu já estava em Muzambinho, pensei “O que é que nós podemos fazer sem a tecelagem?”. Então, comecei a pesquisar todas as costureiras, todos os trabalhos manuais. Pesquisei renda, tricô, crochê, etc. Fiz um diagnóstico de mercado em relação à confecção de roupas. Assim, começamos a estruturar uma equipe de costureiras e de bordadeiras voltadas para a moda. A questão era verificar o que é possível fazer dentro da moda numa cidade de interior onde as pessoas nunca tiveram a oportunidade de fazer um curso.
Elas são autodidatas. E, então, a gente começou o processo da base. Quando eu percebia que elas estavam tranquilas com a questão da modelagem, eu levava uma professora para dar aula de modelagem. Quando eu percebia que estava faltando uma técnica de costura, chamava uma veterana para fazer um aperfeiçoamento. Logo, as costureiras, bordadeiras, rendeiras e crocheteiras fizeram parte da equipe amaria com assistência regular de especialistas nas técnicas necessárias.
Como você disse, os trabalhos desenvolvidos junto a amaria são marcados por objetos que integram os conceitos de sustentabilidade econômica e social. No tingimento dos tecidos, por exemplo, utilizam-se galhos, folhas, sementes e borra do pó de café. Quais são os seus objetivos e qual a importância desse tipo de produção?
Muzambinho é uma região cafeicultora. Quando fui morar lá, percebi que a maioria das pessoas trabalhava na colheita de café, inclusive as artesãs. Quando chegava a época da colheita, todos paravam o serviço secundário (como o artesanato), porque o principal era a colheita de café. A maioria ia para a roça, para a zona rural fazer a colheita. E eu percebi que haviam materiais que eles jogavam fora. Quando você faz uma colheita de café, há descarte significativo de galhos, folhas, sementes. Aquilo que fica no chão é um importante material para o tingimento.
Conheci uma doceira, a Santa Maria. Ela fazia doces no tacho e no fogão à lenha. Um dia eu perguntei para ela: “Santa Maria, você que faz doces no tacho. Dá para você fazer um caldo com tudo o que o seu marido joga fora da colheita? Dá pra fazer um líquido para tentarmos tingir um fio de algodão?”. Ela disse “Vamos tentar”. E a história começou assim. Como haviam materiais em abundância, resolvemos aproveitar. Desde então os fios tingidos com café e outros pigmentos vegetais fazem parte da coleção amaria.
O que é que acontece ali em Muzambinho? Eu fico em silêncio e observando. Percebo que existem materiais sendo desperdiçados. Será que a gente pode aproveitar? Então, o processo é um pouco isso, tanto de materiais, de técnicas, como de artesãos. Às vezes tem um artesão maravilhoso que faz uma coisa inusitada, mas será que aquele trabalho, com aquela tecnologia artesanal, caberia bem num têxtil? É esse tipo de reflexão que a gente acaba fazendo
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É saber aproveitar o que está em volta.
Exatamente. Então, por isso que acabamos usando o café. Mas todo mundo cansa de tons bege e marrom mais escuro. As pessoas querem novas cores.
E, aí, a Santa, que já está no tacho há três anos, começou buscar outras cores. Na casa dela tem um cajueiro, romanzeira, urucum, açafrão, etc. E ela começou a experimentar, com ajuda da Hisako Kawakami, que esteve no ateliê dela e ministrou um curso. Assim, ela foi colhendo o que tinha no quintal para produzir novos tons. A semente deixada pela especialista japonesa fez brotar raízes no solo de Muzambinho. A paixão da Santa pelo tingimento foi imediata. Ela até parou com a produção de doces.
Recuperamos também técnicas adormecidas, como frivolite, renda turca e patchwork; aproveitamos todo o tecido pós modelagem e corte para elaboração de novas texturas. As pessoas aparecem, temas pipocam, oportunidades surgem. Assim, vamos abraçando cada situação para crescimento e desenvolvimento de cada participante da equipe Muzambinho. O fator primordial é a produção de peças que encantam as consumidoras, pois são elas as mantenedoras desse projeto e apoiadoras de cada artesã que faz parte de amaria.
Muitas vezes elas trazem dificuldades. Citarei um exemplo maravilhoso, que me deixa emocionada e que me faz ver que tudo valeu à pena. Tinha uma costureira que estava com uma autoestima muito baixa devido às condições familiares. Depois de oito anos, ela se transformou. Ela abriu o próprio ateliê, tem uma marca própria e está constituindo uma equipe com novas costureiras. Disse que continua com a equipe da amaria porque se vê reciclando a cada coleção. Isso é maravilhoso.
Sim. Você vê como o seu trabalho causa uma mudança na vida da pessoa.
Pois é.
Como você enxerga a parceria entre designers e comunidades de artesãos?
Enxergo essa relação como algo muito particular. Cada caso é um caso. O que a artesã está precisando? O que é que ela está buscando? Às vezes ela nem percebe isso. E o designer também não percebe, não conhece a capacidade e o talento escondido do artesão. Então, vejo essa parceria artesão e designer uma sintonia sutil de dedicação, compreensão mútua, troca de conhecimento e abertura para novas situações. Essa relação é um processo delicado e que requer investimento de tempo e dinheiro para obtenção de resultados satisfatórios em longo prazo. Comercialmente, esse relacionamento é muito difícil, mas a importância está exatamente nessa dificuldade. É necessário encontrar o equilíbrio, respeitar o estágio e valorizar a escala individual para o brotamento da criação e da produção.
O relacionamento entre o designer e o artesão precisa ser construído com paciência e persistência. Cada um deve se preocupar em entender o outro. E, a partir do momento que você começa a entender uma artesã, você não pode generalizar. Cada artesã é única. Encontrar um ponto de equilíbrio para ambos é quase magia. De repente, com uma artesã eu faço um trabalho, mas com outra eu sigo um processo totalmente diferente. Isso ocorre porque a história dela é diferente, a tradição dela é diferente, a família dela é diferente, a base dela é diferente, a educação dela é diferente. Um dos motivos da coleção amaria ter predominância de peças únicas é possibilitar a liberdade de criação de cada artesã. Acredito que dessa forma ela terá opções maiores de se descobrir, despertar desejo e experimentar. Cada artesã tem a sua cor. Portanto, as peças são coloridas.
As peças representam o que cada artesão está expondo.
Exatamente. E, cada vez mais, quero deixá-las autorais, artistas, criadoras. Lá na frente, quero que elas assinem as mini coleções: amaria por Lena, amaria por Luzia e assim por diante. Esse seria meu sonho. Seria ideal uma loja em Muzambinho para que as artesãs tenham oportunidade de expor seus produtos e se sintam parte da cidade com a sua criação. Já estou trabalhando com a Associação Comercial de Muzambinho para a viabilização desse projeto.
Atualmente, elas vendem as peças em quais locais? Na região?
As costureiras têm seu próprio atelier, onde atendem suas clientes. Uma cliente vai falando para a outra. E, eu falo para elas: “Não há problema ser uma coisa passo a passo”. Às vezes é demorado? É. Porém, é melhor ser uma coisa demorada, mas concreta, bem embasada.
As artesãs também participam da Feira de Artesanato e Gastronomia que acontece aos sábados. A visibilidade do projeto tem acontecido com participação em feiras, mostras, exposições e encontros desse segmento. E também, quando surgem as oportunidades, nós sempre participamos das mostras que acontecem aqui em São Paulo. Ainda não há possibilidade de trazê-las. Os custos com transporte e hotéis são altos.
Mesmo sem a equipe da amaria, as artesãs se manteriam porque elas costuram para outras pessoas. Cada uma é um MEI (micro empreendedor individual). Então, elas são MEI, eu sou MEI e nós fazemos parcerias. Nos dois primeiros anos elas eram funcionárias. Esse sistema de funcionalismo não deu certo. Com o MEI, ficou muito legal, porque cada uma é autônoma, autoral, livre. E fica muito interessante, porque, dependendo do esforço dela, o projeto pode crescer ou não.
Desde o início, quais foram as principais dificuldades enfrentadas na realização do seu trabalho?
Como eu falei, no início, quando nós fomos para a tecelagem, o objetivo maior era o tingimento natural do fio e tecelagem manual. Mas, seis meses depois, não deu certo, porque os tecelões tinham dificuldades em trabalhar com a textura fina. Depois de dez anos e vários experimentos com fios de algodão, planejamos retomar os finos fios de seda para conseguirmos tecido delicado em tingimento natural.
A dificuldade muitas vezes é o próprio artesão não estar acostumado a um processo mais detalhado, mais minucioso. Muitos preferem fazer aquela mesma coisa que já dura anos. E o que acontece? Há dez anos atrás, a tecelagem estava com uma boa produção. Hoje, cada vez menos, porque não houve mudança no desenho, não houve diferenciação do material. E o mercado está buscando coisas diferentes. A inovação, busca de informação, troca de experiências com outros profissionais, a pesquisa de fornecedores e das necessidades do consumidor é de extrema importância. Buscar inovação no crescimento individual, coletivo e profissional é tarefa que requer força de vontade, estudo, persistência e paixão pelo que faz. Então, com a crise, eles são praticamente obrigados a buscar o novo. Sinto que a dificuldade é uma coisa que está dentro do humano mesmo. É a parte mais difícil.
O difícil é o artesão se abrir para o novo. No nosso trabalho, com as artesãs, há muita viagem de pesquisa para São Paulo e outros lugares, feiras. Apresento novas situações, porque dali pode surgir um insight. O mais desafiador é a abertura de mente do ser humano. Inclusive a minha também. A mudança começa na gente para depois acontecer nos outros.
As pessoas falam “Mas como é que você consegue morar em Muzambinho depois de ficar 15 anos em Tóquio?”. Para mim, não há diferença. Sinto dificuldade das pessoas de Muzambinho pelo novo e diferente.
Sinto um pouco de dificuldade em Muzambinho. Elas têm receio do novo. Tem receio de uma coisa diferente. Então, tenho que ser cuidadosa com a aproximação. Preciso ver como é que eu vou começar um relacionamento. Assim, percebi que o bom relacionamento nem sempre é verbal. O importante é captar a mensagem que a outra pessoa está emanando ‘telepaticamente’. Muitas artesãs tinham dificuldade na aproximação e no diálogo, mas o trabalho manual amenizava essa distancia. Tudo isso é um processo delicado, mas vale a pena. Sinto-me dadivosa nessa troca muito gostosa com as mulheres de Muzambinho.
Através da experiência que você obteve no exterior, como você avalia a presença do design brasileiro no cenário internacional e a importância deste em relação ao design de outros países?
Falarei da minha experiência no Japão com os designers brasileiros na ocasião de Projeto 1+1. Hoje a situação deve ser diferente.
Havia impacto visual, material inusitado, ideia inovadora e solução criativa no design brasileiro, porém havia falta de padronização na forma, textura, cor e comprometimento na entrega. Hoje compreendo essa diferença como um valor cultural e a busca de um objetivo distinto. Os japoneses se esmeram no fazer manual, na tentativa de superação mecânica em forma e quantidade. Eles encontram beleza nesse gesto de aprofundamento e esmero; enquanto os brasileiros buscam espontaneidade criativa e uso de material de forma excêntrica para cada peça (que é vista como única). Será que a explicação está na miscigenação racial e cultural?
Gostaria de citar uma experiência interessante da minha pesquisa com artesanato japonês. Dentre dezenas de produtos de diversos artesãos, por que esta ou aquela peça se destacava para mim? Buscava a resposta encontrando-me com o criador da peça. Queria conhecer aquele artesão, designer, tecelão. E percebia que o que me chamava atenção na peça era o coração da pessoa. Se você faz um trabalho com paixão, com vontade, com esmero, o produto vai brilhar. A peça reflete toda uma somatória da disciplina, da perseverança, da fé e da criação do artesão. E o brasileiro tem isso. O coração pulsa através das mãos do artesão e essa energia fica impregnada na peça.
Quando eu levava os produtos do Brasil para o Japão, sabia que, tecnicamente, poderia ser questionável, mas a criação era inusitada, a identidade do artista estava ali, o coração e o suor também estavam ali. Agregado a isso, temos a tecnologia. Está havendo aperfeiçoamento técnico no design brasileiro na busca de soluções inteligentes e criativas. Por isso, acho que o Brasil tem um futuro brilhante pela frente, porque nosso design representa as duas facetas: a razão e a paixão, a tecnologia com produtos feitos à mão.
E as peças dos brasileiros já estão brilhando e pipocando em vários lugares, como Europa e EUA, por exemplo. Os Irmãos Campana são o exemplo máximo disso, do casamento perfeito do hand made com o high tech. É uma mistura da ciência com a arte manual. Eu acho que essa é uma coisa bem interessante.
E para o futuro, quais são as prioridades do seu trabalho nas áreas de moda e design?
Nós somos imprevisíveis. Somos movidos por estações que existem dentro da gente. Cada um tem uma primavera, um verão, um outono e um inverno dentro de si. Então, acredito que as coisas vão acontecendo naturalmente. As situações vão aparecendo.
Quando cheguei em Muzambinho em 2003 me atirei no escuro, porque eu não sabia nem o que iria encontrar. Foi assim quando eu fui para o Japão. Percebi que no desconhecido você tem que zerar, subtrair. Não é você levar a sua escala de medição e o seu equipamento. Na verdade, você tem de deixar tudo e ir de mãos vazias, de mente vazia e se preparar... “Está aqui o papel branco; o que eu vou começar a desenhar?”.
O resultado aparece naturalmente onde há dedicação e amor pelo que se faz. A prioridade é manter essa energia viva dentro de mim. Preciso me conhecer melhor para harmonizar o meu entorno e a relação com toda a equipe amaria. Gostaria de fazer mais oficinas de aperfeiçoamento junto às artesãs de Muzambinho e preparar sempre novos caminhos e oportunidades. Espero que cada membro da equipe esteja em paz consigo mesmo, pois assim estaremos desenvolvendo projetos futuros, de fortalecimento de técnicas tradicionais e disseminá-las entre novos artesãos, principalmente os jovens da cidade. Gostaria muito de estabelecer um ponto comercial para que todas as artesãs pudessem apresentar suas criações dentro da cidade, possibilitando visibilidade para o trabalho de cada uma. Se cuidarmos do processo na sua totalidade, acredito que o resultado será inevitavelmente positivo.