COLEÇÕES
ZANINE CALDAS
Publicado por A CASA em 24 de Janeiro de 2005
Por
Luís Antonio Magnani

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ZANINE CALDAS
José Zanine Caldas nasceu em Belmonte / Bahia em 1918.
Foi paisagista, construtor de maquetes, escultor, moveleiro e arquiteto honoris causa. Por seu talento incomum foi reconhecido como “Mestre da Madeira” pela elite intelectual e artística, tendo sido professor no Brasil e no exterior. Seu trabalho promoveu a integração da experiência artesanal tradicional brasileira e do movimento moderno de forma singular.
Viveu e produziu intensamente, contribuindo com sua habilidade para que a alma brasileira pudesse ser percebida mais nitidamente.
Zanine morreu em dezembro de 2001 em Vitória – Espírito Santo.
Poderíamos dizer que, embora a arquitetura tenha um peso predominante no conjunto do seu trabalho, os móveis industrializados de madeira compensada e os móveis artesanais de troncos, que são os objetos desta exposição, configuram um capítulo com vida própria, estreitamente vinculado a momentos que marcaram páginas importantes da história do design brasileiro.
“HOMO FABER”
Como Homem do Fazer, José Zanine Caldas deixou um grande legado, entre outros segmentos, no de móveis domésticos.
Zanine começou a ser conhecido como maquetista no início dos anos 40, criando modelos tridimensionais para edificações, empregando a madeira como material básico na construção das maquetes. Tradicionalmente, se usava o gesso para esse trabalho.
Mais tarde, ao buscar novos materiais para a confecção das maquetes, encontrou a madeira compensada, que, além da construção dos modelos, abriu-lhe as portas para a criação dos seus, posteriormente famosos, móveis industrializados.
O compensado foi uma invenção da indústria para a estandardização da madeira. Com a madeira laminada – “desenrolada” em fatias finas - e colada em camadas alternando a direção dos veios, foi possível a obtenção de grandes chapas de espessuras variadas.
Zanine conheceu o compensado em visitas ao Instituto de Pesquisas Tecnológicas – IPT – em São Paulo, onde, naquele período, estavam sendo desenvolvidos estudos para sua aplicação na fabricação de barcos e de componentes de pequenos aviões.
Ele, além de incorporá-lo em suas maquetes, teve então a idéia de usá-lo para a construção de móveis, que poderiam ser, segundo suas próprias palavras, “bem mais baratos e bastante resistentes”.
A partir dessa idéia nasceu a “Fábrica de Móveis Artísticos Z”, que foi concretizada em São José dos Campos, cidade para a qual se transferiu num período em que necessitou dos bons ares daquela estância para um tratamento de saúde. Alí, em sociedade com empresários locais, desenhou, construiu e comercializou seus móveis até o início dos anos 50 quando se desligou da empresa. A fábrica ainda persistiu, sem sua presença, até 1961.
Zanine desenhou um grande número de modelos de cadeiras, sofás, poltronas, mesas de centro, mesas de jantar, escrivaninhas, bancos e outras peças, criados especialmente a partir de chapas planas de madeira compensada. Sua produção, alavancada por investimentos em propaganda nas revistas de grande circulação do período, caiu no gosto dos consumidores.
As linhas sinuosas aproveitavam as propriedades físicas e dimensões expandidas do compensado, cunhando formas sintonizadas com a iconografia moderna já florescente na Europa e Estados Unidos e também no Brasil, através, principalmente, dos arquitetos que vinham explorando as possibilidades plásticas do concreto armado.
REINVENTAR
Para Zanine a construção de móveis foi um desdobramento natural de sua atividade modelística, na qual se lançava ao fazer e refazer, solucionando detalhes, muitas vezes, no momento de sua construção. Sua tendência natural era de botar a mão na massa e criar as soluções através da experimentação.
Mesmo em se tratando de produção industrial, no caso dos móveis “Z”, onde ele representava a energia da criação e liberdade, o espaço para as “variações” parece ter sido preservado, tendo que confrontar as tendências de racionalização da visão mais empresarial dos sócios. Certamente, para a mente de Zanine, as repetições eram por demais tediosas.
Observando modelos variados produzidos pela empresa, podemos perceber pequenas mudanças entre peças da mesma linha, que podem ter surgido tanto pela busca da forma ideal como pela adequação às necessidades de maior aproveitamento das chapas de compensado. Os próprios compensados - sua matéria prima - mostravam uma variedade de espessuras e camadas, revelando as experimentações também presentes na fabricação destes produtos.
MODERNISTAS
Os bons ventos do modernismo trouxeram consigo uma nova linguagem formal que moldou os objetos do cotidiano, o mobiliário das residências, a pintura, o desenho gráfico e os outros ramos da produção artística internacional. Também a arquitetura brasileira, a partir da década de 30, vinha mostrando uma nova face, em São Paulo, com o trabalho feito pelos arquitetos Gregori Warchavchik, Flávio de Carvalho e Rino Levi. Era uma nova arquitetura sintonizada com o mundo moderno e suas mudanças na cultura e nos costumes.
Este movimento, mais tarde ganhou corpo e expressão com os investimentos públicos em obras civis e atingiu notabilidade principalmente através do trabalho de arquitetos cariocas como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, ilustres participantes de uma geração que ajudou a consolidar internacionalmente a imagem brasileira da modernidade.
Zanine viveu neste contexto transitando pelos escritórios destes e de muitos outros arquitetos, criando para eles suas maquetes e participando diretamente desta efervescência.
Apesar de ter completado somente o curso primário, sua passagem pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a convivência e cooperação com profissionais de primeiro escalão, sua incrível habilidade como artesão e artista e o talento incomum para observar, intuir e aprender como havia feito desde sua juventude no sul da Bahia, propiciaram a Zanine a oportunidade de reunir conhecimentos vindos de uma variedade de fontes e integrar estas experiências. Com o tempo, foi construindo uma extensa obra, múltipla, brasileira e universal.
“MÓVEIS-DENÚNCIA”
No final dos anos 60, depois de seu período de industrial moveleiro, professor da Faculdade de Arquitetura de Brasília e construtor de um conjunto significativo de casas sofisticadas no Rio de Janeiro, ele volta às origens, retornando à Bahia e fixando-se em Nova Viçosa, buscando construir ali, em companhia do artista plástico Franz Krajcberg, uma espécie de comunidade alternativa para onde procuraram atrair amigos intelectuais e artistas.
Nesta região, ao lado dos cenários inspiradores, estavam em curso grandes derrubadas florestais.
Zanine reaparece então utilizando troncos recolhidos das áreas de devastação, com os quais procurava chamar a atenção contra as práticas de destruição sistemática das florestas que vinham transformando de maneira brutal o perfil natural da região. Dizia ele: “Lá em Nova Viçosa eu faço uma denúncia, dou um testemunho: ao ver aquelas madeiras imensas serem queimadas e jogadas fora, eu pego a madeira bruta e transformo em móvel, nas dimensões naturais”.
Seus móveis procuravam impregnar os ambientes com esse alerta. Zanine estruturava com décadas de antecedência o futuro discurso dos ecologistas.
Estes móveis feitos com troncos secionados, às vezes lavrados à formão ou enxó, incorporaram o fazer caboclo com o qual conviveu durante sua juventude, o saber depurado nas construções das canoas, das gamelas, das colheres de pau, dos encaixes do madeirame das construções. Neste momento, no entanto, estas técnicas já estavam sendo guiadas por um olhar bastante sofisticado e uma atitude inovadora.
Ao criar mesas a partir de seções de troncos com suas raízes voltadas para cima e coroadas por tampos de cristal através dos quais elas se faziam admirar, ele expôs sua metáfora:
Desencravar nossas raízes culturais, recriá-las e mostrá-las ao mundo através da vitrine da modernidade. Através de sua obra, Zanine fala de um Brasil vivo, pulsante, sensual e promissor.
Com o trabalho nestas peças, embora dissonando de setores da intelectualidade então mergulhados no racionalismo, Zanine conquistou muitos admiradores e acabou demarcando uma área importante no contorno de sua obra.
A FÁBRICA E O FORMÃO
Estes dois momentos da obra de Zanine apresentam um contraponto interessante de ser observado: De um lado, o Zanine jovem, atuando no grande centro urbano, busca responder às suas inquietações, dentro de uma visão do modo de produção industrial, seriado, para um grande público, em sintonia com a tecnologia e com desenho de inspiração moderna. Constrói uma obra que se consolida enquanto a fábrica funciona e praticamente termina quando, por ocasião de desentendimentos com os sócios, se retira da sociedade. Com o incêndio que posteriormente destrói a fábrica, este ciclo se fecha.
De outro lado, nos anos 70, ao se estabelecer em Nova Viçosa em sua comunidade “proto-ecológica”, reassume sua ligação com as técnicas caboclas e reinterpreta as tradições artesanais regionais, ou seja, o artista tem os materiais, as ferramentas e o ambiente propício para sua criação, porém sua linguagem estética não pertence mais ao círculo da tradição popular repetitiva. Alça vôo a partir de sua base pragmática e integra o velho e o novo apontando novas direções.
Aí a inspiração modernista se mistura à sua incrível inventividade. Com uma notável liberdade Zanine trabalha as formas, a matéria e os potenciais da madeira. As sutilezas de suas soluções arrancam o peso das toras fazendo-as, às vezes, “flutuar”. Surge aí um paralelo com o mote recorrente dos arquitetos modernistas, de buscar soluções sofisticadas para dar leveza às construções e o intrincado jogo de cheios e vazios, musicando o pesado concreto.
Nos móveis artesanais não buscou, em primeiro plano, as formas rapidamente reconhecidas como “modernas” como em toda sua produção de móveis industriais, mas exaltou nos troncos, galhos e raízes a própria “vocação” latente em sua constituição estrutural e formal.
Nasceram daí móveis onde a rusticidade e a sofisticação são apenas partes de uma atitude que se completa, num primeiro momento, com seu discurso político-ecológico. Depois, já valorizados como objetos “em si”, caíram no gosto de sua clientela e passaram a ser coadjuvantes de sua arquitetura, ocupando espaços nobres de suas residências de estruturas arrojadas. Ganharam status de ícones do design algumas de suas mais famosas criações como a “conversadeira”, as poltronas cônicas, sofás e outras peças.
Com o tempo e com todas as mudanças que lhe sobrevieram, já com ímpeto atenuado pela idade e pela doença, Zanine nunca abandonou este viés de sua produção. Estes móveis artesanais, ao contrário dos Móveis “Z”, continuaram a ser feitos quase até seu falecimento, na oficina que possuía ao lado de sua casa, em Vila Velha – Espírito Santo.
A obra de Zanine se estendeu para muito além de sua produção de móveis, no entanto, a observação deste segmento mostra etapas importantes do seu caminho de desenvolvimento enquanto artista, arquiteto e ser humano.
Zanine é uma referência do desenho de móvel brasileiro e como tal freqüentou exposições pelo mundo afora e ainda define tendências dentro de nossa produção contemporânea.