ENTREVISTA
NANCI TAKEYAMA
Publicado por A CASA em 6 de Maio de 2014
Por
Ivan Vieira

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“O Ocidente apresenta uma ruptura grande entre a forma tradicional e o design contemporâneo, mas, no Oriente, essa ligação ainda é muito presente”
Nanci Takeyama é pesquisadora e professora da Universidade Tecnológica
de Nanyang, em Singapura, e fundadora e diretora do grupo design for.
Você se formou em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), fez mestrado em Design na Universidade de Kyushu e doutorado em Teoria do Design pela Universidade de Design de Kobe, no Japão. Atualmente, você trabalha como professora e pesquisadora na Universidade Tecnológica de Nanyang, em Singapura. Conte-nos um pouco dessa trajetória. Como e por que você traçou esse caminho?
No fim, acho que a arquitetura continua sendo a raiz de tudo o que eu fiz até o momento. Na FAU, a forma de ensino era em relação à metodologia, do pensamento até a materialização da mensagem. Lá, aprendi como pensar em várias mídias e como transmitir uma mensagem.
Inicialmente, quando vim para a Ásia, fiquei morando no Japão. No Japão existe uma relação muito forte entre a forma e a história da forma – a antropologia da forma. No Ocidente se fala que o design surge a partir da Bauhaus, mas, na Ásia, a relação entre as formas tradicionais e as formas contemporâneas ainda existem no dia a dia. E o Japão é um país pioneiro em estudar a origem das formas. Os japoneses tentam aplicar essas formas tradicionais de uma maneira contemporânea. Em minha opinião, isso é o que faz com que o design do Japão tenha uma identidade tão forte no mundo.
Depois que eu fui para o Japão e encontrei essa conexão, comecei a me interessar pela antropologia da forma. Hoje, além de ser pesquisadora, dou aula de design gráfico na Nanyang Technological University, de Singapura.
O que levou você a sair do Brasil, ir para o Japão e depois viver em outros lugares do mundo?
Quando terminei o curso de arquitetura recebi uma bolsa para ir estudar no Japão. Eu já tinha bastante interesse pelo país porque minha família é de imigrantes japoneses. Então, chegando lá, me encantei com as raízes da cultura japonesa.
Fiquei morando no Japão durante treze anos, aproximadamente. Depois, por razões pessoais, fui morar nos Estados Unidos, onde terminei meu doutorado. Quando terminei o curso de pós-graduação, o primeiro emprego que me ofereceram foi em Dubai. A oferta era para trabalhar numa universidade fundada pelo Sheikh Zayed, que acreditava que o futuro do país está na mão das mulheres. Gostei muito da ideia e, assim, fui trabalhar nessa universidade.
Durante a sua trajetória, você desenvolveu um projeto de intercâmbio e trocas culturais, onde um grupo de estudantes norte-americanos do Maryland Institute College of Art (MICA) viajou para Dubai a fim de realizar um encontro intercultural com estudantes da Zayed University. Um dos produtos desse projeto foi um artigo intitulado “Design can change the world”. Como isso é possível? Qual foi a importância e os resultados obtidos com a criação desse projeto?
Quando fui morar no Oriente Médio, acabei percebendo quais eram os estereótipos que o resto do mundo tinha em relação aos habitantes daquela região. Em minha opinião, os Estados Unidos ainda é um país que amplia um mercado de tendências e propaga esses pensamentos pelo mundo. Então, a ideia desse projeto que você mencionou era promover o intercâmbio entre os alunos e elaborar projetos e mensagens que quebrassem os estereótipos e veiculassem essas informações para o resto do mundo.
Inclusive, na época que as alunas americanas vieram, tinha ocorrido um incidente lá nos EUA: um homem de barbas longas, polígamo e que teve relações sexuais com menores tinha sido preso. Então, no projeto, a nossa intenção era falar “na sua opinião, qual é a origem dessa pessoa que foi presa?”. Na verdade, esse homem era um mórmon mas, se ninguém tivesse dado a descrição, o mundo inteiro teria pensado que ele era um árabe. Nos Estados Unidos as pessoas acabam colocando rótulos em alguns indivíduos sem nem mesmo saber quem eles são. É claro que esse homem agiu contra a lei. Esse cara foi preso. Mas, num crime, há uma nuvem de suspeita em relação às pessoas de origem árabe.
Então, de certa forma, esse intercâmbio precisou ser entre Dubai (representando o Oriente Médio) e os Estados Unidos já que, depois do ato terrorista do dia 11 de setembro de 2001 (principalmente), esses dois grupos são colocados como polos opostos.
O projeto também tratou de como que a mídia, hoje em dia, influencia as pessoas de uma maneira que elas acabam enxergando os outros de forma distorcida – não olhando as pessoas como elas realmente são. Mesmo que com a internet as pessoas tenham mais acesso a informações sobre o mundo, elas continuam criando estereótipos e odiando culturas que elas não entendem o que são ou o que representam.
Você, em parceria com a Universidade Tecnológica de Nanyang, fundou o “design for”, uma organização sem fins lucrativos que fornece uma plataforma aberta para colaborações em projetos de design social. Como surgiu esse projeto? Quais são os principais objetivos dessa iniciativa?
Esse projeto começou, na verdade, junto com um aluno que queria fazer um projeto social. Ele era um aluno ainda da graduação que havia ganhado uma bolsa por ser um dos melhores alunos da universidade.
Na época, eu tinha acabado de voltar de uma viagem que havia feito à cidade de Da Nang, no Vietnã. Da Nang, durante a guerra com os Estados Unidos, foi utilizada como uma base militar e, por conta disso, muitos habitantes daquela região foram afetados pelo Agente Laranja – até hoje existem algumas pessoas que adquiriram deficiências físicas por causa desse agente. E, nessa cidade, acabei conhecendo uma loja que vendia produtos artesanais para turistas.
Quando fui naquela loja, queria ajudar de alguma maneira. Pensei em comprar alguma coisa, mas não consegui porque os produtos não eram atrativos e eu não queria dar nenhuma esmola. Queria ajudar, mas não podia comprar uma peça simplesmente para depois deixar a coisa jogada de lado.
Porém, no fim da minha viagem, comecei a pensar que eu podia ajudar aqueles artesãos através do meu trabalho como designer. Pensei que poderia trabalhar junto com aquela comunidade para tornar seus produtos visualmente mais atrativos.
Portanto, quando voltei para Singapura, propus ao grupo do Vietnã, que se chama Reaching Out, em fazer um projeto de colaboração. Fizemos o redesenho da marca deles e o redesenho de alguns produtos. Essa associação começou a trabalhar há dez anos e hoje eles empregam uma média de 300 deficientes físicos por todo o Vietnã. O fundador dessa organização é deficiente físico também e muito determinado com os seus objetivos.
Com tudo isso que ocorreu, ficamos totalmente inspirados e procuramos desenvolver outras iniciativas. Outros alunos também se interessaram por esse ramo do design que trabalha para o bem comum e, assim, acabamos criando o “design for”.
Depois de realizarmos o projeto no Vietnã, resolvemos trabalhar em Laos: um dos países mais pobres do mundo, mas que tem um artesanato riquíssimo baseado na tecelagem. Em Laos, nós procuramos ajudar os artesãos a entrarem em contato com o mercado internacional para que as vendas pudessem ser ampliadas. Uma das vertentes do nosso projeto, portanto, é mostrar para essas pessoas que, na verdade, o artesanato que eles produzem tem um padrão internacional e pode ser vendido nas melhores lojas de departamento do exterior.
Em Laos, as práticas artesanais estão desaparecendo muito rapidamente. Se pessoas como nós não começarem a trabalhar com essas comunidades, o artesanato deles não deve sobreviver por mais uma geração. A cultura de toda a região do Sudeste Asiático, de modo geral, está mudando muito rapidamente.
Recentemente, como você mencionou, o “design for” desempenhou um projeto com comunidades de Laos. O resultado dessa iniciativa, exposto no Asian Civilisations Museum, foi apresentado em três diferentes seções: Re-crafting the Past, Crafting for a Cause e Crafting Community. Qual é o significado e o objetivo de cada uma dessas categorias?
Na verdade, essa exposição já fazia parte dos objetivos do projeto. No início, nós começamos a pesquisar o sentido da forma, buscando a representação entre a ligação das raízes antropológicas da forma e os motivos. Em Laos, a maioria dos sentidos é um motivo baseado na serpente cósmica, que tem uma ligação com a espiritualidade dos laosianos.
Assim, a primeira parte do projeto – o Re-crafting the Past – foi tentar estudar e entender esse símbolo que é recorrente nos tecidos que eles produzem. Pesquisamos o significado do símbolo da serpente cósmica. Depois, com o Crafting for a Cause, nós aplicamos o significado do sentido nos produtos. Por fim, com o Craft Community, nós promovemos workshops para disseminar o sentido que a gente pesquisou, ensinando pessoas a fazerem produtos artesanais que usam a tecelagem. Essa terceira parte foi realizada com uma contribuição do Museu da Civilização Asiática. Portanto, a metodologia desse projeto em Laos é encontrar o sentido, aplicar esse sentido e depois dividir o significado com outras pessoas.
Particularizando um pouco mais sobre a sua trajetória, como foi essa passagem do design propriamente dito para o design em sua interação com o artesanato? No Brasil você trabalhou com o designer gráfico Alexandre Wollner, para quem essa interação com o artesanato é indesejável e danosa. Qual a sua posição no que se refere a isso?
Na verdade, o reencontro com essas formas tradicionais do artesanato é uma herança que eu recebi da pesquisa realizada no Japão. O Japão, na minha visão, é um dos únicos países do mundo que mantém essa ligação do artesanato tradicional com as formas do design contemporâneo. Pelo o que eu observo, essa passagem do tradicional para o contemporâneo não é tão brusca no Oriente. Sinto que não existe uma diferença tão grande, na verdade.
Olhando para o próprio sentido da palavra design – que tem como origem a palavra desígnio – vemos que ele representa uma pessoa que age sobre a forma é dá um sentido para ela. E, nas formas tradicionais do Oriente, nós percebemos muito a interação com esse significado específico do design. Quando fazemos alguma pesquisa, nós ainda encontramos esse sentido e significado nas formas tradicionais. Em minha opinião, o Ocidente apresenta uma ruptura grande entre a forma tradicional e o design contemporâneo, mas, no Oriente, essa ligação ainda é muito presente.
Como relacionar as formas mais tradicionais com o moderno é uma coisa que, na minha visão, o “design for” tem feito de uma forma bem sucedida.
Do que você conhece das comunidades artesanais do Brasil e da América Latina, há similitudes em relação à situação em Laos?
Na verdade, o que eu conheço do artesanato do Brasil e da América Latina é que na relação entre os artesãos e os designers, os artesãos trazem os seus conhecimentos e os designers tentam contribuir, de alguma forma, com a atividade que as comunidades realizam. O Brasil, na minha opinião, é um país pioneiro nessa contribuição e nesse trabalho colaborativo entre designers e artesãos – que foi muito bem documentado no livro da Adélia Borges, “Design + Artesanato: o caminho brasileiro”.
No caso de Laos, o trabalho artesanal que eles fazem provém de uma maneira mais natural. Então, a intervenção do designer é, pelo menos da maneira como eu enxergo, de edição. Mas no que se baseia essa edição? É o que a gente acabou fazendo: edição cores, edição de proporções, o conhecimento da técnica de tecelagem, dos pigmentos naturais e das fibras. O conhecimento deles é uma coisa muito profunda e muito antiga. Assim, tentamos respeitar essa cultura o máximo possível. Mesmo quando tentamos aplicar o sentido e o significado ao trabalho que foi criado, tivemos o cuidado de perguntar para várias pessoas se a forma que estávamos modificando o design estava adequada, se ela não desrespeitava os valores culturais que eles tinham.
Talvez eu não tenha um conhecimento tão profundo em relação ao artesanato brasileiro, mas essas técnicas de tecelagem na Ásia existem há centenas de anos, enquanto no Brasil essas técnicas artesanais parecem ser mais recentes. Então, nesse aspecto, a posição do designer aqui em Laos foi muito cuidadosa em tentar o tempo todo respeitar a visão e o trabalho que a comunidade local faz. O que eles fazem é de uma qualidade que nós nunca tínhamos visto antes, na verdade. Por isso, queria de alguma maneira ajudar a preservar esse trabalho.
No Brasil, acho que o artesanato é uma coisa mais contemporânea, mais dinâmica. Em Laos, por exemplo, como a forma de tecelagem tem uma origem muito antiga, para eles mudarem alguma coisa tem muita resistência. Esse aspecto foi uma das coisas mais difíceis de trabalhar. Mas, como eu nunca trabalhei com comunidades do Brasil, também não saberia comparar muito bem.
Como você poderia caracterizar a dimensão espiritual do artesanato, que parece muito presente na tradição oriental?
Na forma do artesanato tradicional da Ásia, os objetos produzidos são todos usados para cumprir uma função no mundo além. Até mesmo os tecidos que eles criam com as serpentes cósmicas, por exemplo, são usados em diferentes tipos de rituais. Então, realmente, nas formas tradicionais – e não nas formas contemporâneas – existe uma relação muito forte com a espiritualidade. O artesanato, em muitos casos, é criado para a relação das pessoas com o além.
No fim de 2013, o seu projeto de pesquisa “From Anthropology to Design – A Heritage Management Project in the New Silk Road” recebeu o Prêmio Wenhui para Inovação Educacional, concedido pelo escritório da UNESCO em Bangkok. De forma geral, como essa premiação contribuiu para o desenvolvimento do seu trabalho?
O fato de receber um prêmio como esse acaba ajudando muito na divulgação do trabalho. Isso ocorre porque, como o grupo é ainda pequeno e recente (nós o criamos há três anos), o que a gente precisa agora é de visibilidade para pensar quais serão os nossos próximos passos. Só agora é que nós terminamos o primeiro ciclo do projeto, então é importante pensarmos como será o futuro. E, mesmo nas comunidades, quando a gente conversa com as pessoas, é interessante falar da dimensão que esse projeto pode ter na Ásia. Receber um prêmio como esse dá um aval para as pessoas terem uma confiança maior da dimensão e da dedicação que nós temos em relação a esse projeto.
Como já mencionamos, você já viveu e trabalhou no Brasil, Japão, Estados Unidos, Dubai e Singapura. Através dessa grande vivência no exterior, como você avalia a presença do design brasileiro no cenário internacional e a importância deste em relação ao design de outros países?
O Brasil cada vez mais está conseguindo conquistar a sua identidade na área internacional do design. O Brasil, nos últimos 20 anos, conseguiu afirmar cada vez mais a imagem de uma nação que é séria mas que, ao mesmo tempo, também é jovem e descontraída.
Hoje, no cenário internacional, quando nós vemos um objeto brasileiro, já sentimos que aquela peça tem uma identidade muito forte. No plano cultural, cada vez mais o Brasil está conseguindo consolidar as suas qualidades de línguas e de artes. Toda essa riqueza do povo brasileiro está sendo traduzida para o design. Então, eu acho que os brasileiros devem ficar orgulhosos dessa conquista.
Nos últimos anos, vemos que os cursos superiores de design no Brasil vêm abrindo espaço para projetos de extensão universitária que trabalham com produtos e comunidades artesanais – como, por exemplo, o projeto do Design Possível, desenvolvido pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Levando em consideração a sua experiência internacional, como você enxerga a presença do artesanato e do design nas universidades da Ásia?
O Japão é um país que tem sido pioneiro em fazer essa união. Porém, aqui na Ásia, na verdade, existem muitos países que tem um artesanato riquíssimo, mas eles mesmos não conseguem ver essa riqueza. Em Laos, por exemplo, as pessoas não enxergam a dimensão da riqueza e da tradição que eles possuem. Portanto, acho muito importante as universidades darem esse reconhecimento para os artesãos.
Singapura é um dos países mais desenvolvidos do sudeste asiático. Então, os artesãos ficam muito curiosos de saber que existem estudantes de design e de arquitetura que estão indo lá porque reconhecem o valor do trabalho que eles desenvolvem. E, na verdade, uma das razões desse projeto é isso mesmo: ir para as comunidades para eles entenderem a riqueza da tradição que eles possuem e para falar que, na verdade, o desenvolvimento é bom, mas ser desenvolvido também empobrece as pessoas, empobrece o meio ambiente, empobrece muitas coisas. Assim, o caminho do meio é a melhor coisa. Os países aqui em volta tem muita ambição de ficar tecnologicamente desenvolvidos como Singapura. E as pessoas de Singapura, por outro lado, perderam muitos valores sociais, valores da comunidade e do meio ambiente, por causa do desenvolvimento tecnológico. Tentamos trazer essa mensagem também para que os meus alunos entendam que há outros valores – e que não existem, somente, os valores do mundo capitalista. Quando vamos para Laos, vemos que as pessoas de lá têm uma relação com a espiritualidade, com a comunidade e com a natureza. Esses são valores que nós, na maioria das vezes, não temos.
Por fim, o projeto que nós estamos desenvolvendo não tem a intenção de chegar para uma comunidade e dizer “Olha, queremos ajudar em tudo o que vocês precisarem”. Não temos esse objetivo. O que nós queremos é uma troca. O projeto tem que ser benéfico para todas as partes.
Para o futuro, quais são as prioridades do seu trabalho como especialista em design? Quais são os planos?
Estou muito contente que o ramo do design social está se expandindo de forma considerável hoje em dia. A humanidade está numa encruzilhada e eu acho que o design pode ter um papel muito importante nessa situação que nós vivemos hoje. Se os designers começarem a ter consciência de como o consumo e os modos de produção utilizados na atualidade impactam o meio ambiente, podemos mudar rapidamente o caminho da humanidade.
Portanto, em relação ao meu trabalho, gostaria de continuar trabalhando com os alunos, oferecendo essa plataforma para que eles percebam que, sim, cada um tem a oportunidade e a chance de criar um mundo melhor para eles e para as próximas gerações. Quero também continuar conhecendo diferentes culturas, diferentes tradições, diferentes artesanatos e trabalhar juntamente com eles.