ENTREVISTA
RAUL LODY
Publicado por A CASA em 6 de Junho de 2014
Por
Ivan Vieira

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“O que se consagra como erudito nasce nas artes populares”
Raul Lody é pesquisador, antropólogo e autor do livro Barro e Balaio - Dicionário do Artesanato Popular Brasileiro.
Você é curador e idealizador do Museu de Gastronomia Baiana e curador da Fundação Gilberto Freire (Recife), da Fundação Pierre Verger (Salvador) e do Centro Cultural Dragão do Mar (Fortaleza). Além disso, também é antropólogo, museólogo e atua como pesquisador no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. De onde vem seu interesse pela arte e cultura popular e como se desenvolveu sua trajetória nessa área?
O meu interesse pela arte e cultura começou a surgir a partir das inúmeras viagens que eu fiz e pelos meus pais terem me introduzido a cultura. Durante a minha infância e adolescência tive o privilégio de poder viajar e ir para cidades bacanas, como Ouro Preto, Salvador, Recife, Paraty e outros lugares. Então, sempre tive uma possibilidade de estar em diversos lugares, de ter a curiosidade de ver, saber, perguntar, comprar e de visitar oficinas de artesanato. E de ir aos mercados e trazer objetos da arte popular também. Sem o intuito, acabei reunindo uma pequena coleção pessoal.
Viajei muito também em época de festas. Assim, já conheci a festa do Bonfim, de São João, a Cavalhada (em Alagoas) e muitas outras. E tudo isso, para uma criança pré-adolescente ou um adolescente, é muito forte – até mais do que se eu fosse para a Disneylândia, talvez – porque toda essa experiência proporcionou um processo educativo muito rico. Com isso, fui criando curiosidades, interesses e adotei o hábito de sempre ir aos museus. Os museus, para mim, sempre foram lugares bons e divertidos. Não era só um espaço para aprender, mas para se divertir também. Havia sempre uma coisa muito prazerosa no meu contato com a cultura. Além disso, sempre agregava depois da visita ao museu um sorvete, um cachorro-quente (risos).
Então, acho que essas possibilidades despertaram em mim um interesse e um desejo pela arte e cultura. E aí, comecei a atuar nessa área e já estou há 45 anos. Acho que gostei (risos).
Grande parte da sua produção bibliográfica se refere a assuntos sobre arte e cultura popular do Nordeste brasileiro. Quais as características, valores e manifestações populares que despertam o seu interesse por essa região do país?
Acredito que o interesse pela região Nordeste se desenvolveu também por causa das rotas de viagens. Eu e meus pais íamos muito á Bahia, Pernambuco, Ceará e Maranhão. A diversidade, a pujança e a riqueza do Nordeste, então, me encantaram desde a infância e adolescência. E isso foi mobilizando o meu imaginário, criando curiosidades, interesses e vontades de saber mais.
Em suma, uma boa parte dos meus trabalhos tem uma concentração no Nordeste, mas a minha preocupação também sempre foi ampliar esse olhar. Mesmo sabendo que o Brasil é um continente, com dimensões territoriais absurdas, comecei a conhecer outros lugares também. Já participei de projetos bacanas no Pantanal e em Belém. Teve uma época que fiz coisas muito boas no Amapá também, por exemplo.
E, o que considero um diferencial a meu favor também são as inúmeras horas de trabalho de campo que eu já realizei. Até hoje eu continuo fazendo uma quantidade absurda de viagens. E continuo aprendendo muito. Essa curiosidade é que move a gente. Essa vontade de querer saber e de ter prazer durante esse aprendizado. Assim, a gente cria uma energia que vai te mobilizando a fazer e conhecer várias coisas.
Você já participou da elaboração dos catálogos da Sala do Artista Popular (SAP), que se relacionam com a questão da etnografia. Qual a importância da pesquisa etnográfica como metodologia para a compreensão e promoção do artesanato e da arte popular?
Antes de atuar na SAP, entrei na Funarte em 1979, logo após ela ter sido criada. Na época, a Funarte foi o grande órgão cultural instituído ainda dentro do cenário da Revolução de 1964. E essa instituição entra numa espécie de porta onde tudo era muito novo. Mas, além disso, havia muito apoio público de recursos para essa ação também. Haviam recursos – não tesouros – e eu entrei para implantar um projeto de arte popular, que chamava “Projeto Artesanato Brasileiro”. Esse projeto gerou quatro livros de arte e um acervo de milhares de fotografias e de coleções de objetos. Era um projeto que abria caminho para a questão do acervo, documentação e divulgação. E isso em 1979-1980 era o máximo. Hoje é o banal, mas em 1980, era “o seguinte”, ”o bicho”.
Além disso, cada um desses livros tiveram oito ou nove edições, afinal, era uma coisa muito nova no mercado também. E ao finalizar essa série, nós falamos “puxa, temos que agora entrar em ações de intervenção”. Assim, nós pensamos em ações não só sobre o conhecimento fundamental, mas sobre ações que unissem a cultura ao desenvolvimento. A Sala do Artista Popular é um segmento natural desse projeto. Ela chega com ações específicas a muitos lugares. E as primeiras rotas nascem de pesquisas anteriores. Com esse projeto, que foi bem bacana, fomos a muitos lugares do Brasil, estabelecendo relações com muitos locais, como prefeitura, secretaria, associação de artesãos, lojas, atravessadores, compradores, e tudo o que você pode imaginar desse mercado da arte popular e do artesanato.
E as exposições, que eram inicialmente apresentadas no Rio de Janeiro, depois passaram a ser realizadas também nas cidades de origem dessas pesquisas, o que é muito legal também. Então, sobre a atuação da SAP, acho que foi um trabalho que eu não chamaria de contínuo, mas consequente das primeiras ações pensadas pela Funarte. E toda a pesquisa etnográfica realizada por essas instituições foi de extrema importância para compreendermos e divulgarmos a arte e a cultura.
Em alguns dos seus textos você trata da questão da religiosidade. Para você, há alguma ligação entre religião e artesanato? Existem pontos de ligação entre essas áreas?
Essa relação se dá numa parcela dessa produção. Você tem santeiros, tem artesãos que fazem objetos temáticos religiosos – não só da igreja católica, mas de outros segmentos. Tem os ferreiros, que fazem os ferros de orixás. Tem outros artesãos que fazem indumentárias, que trabalham com blusas, comparando a costa, costureiras, bordadeiras, rendeiras. Tem um momento no qual essa questão da religiosidade engloba algumas produções, não exclusivamente feitas para isso, mas que são absorvidas pela propriedade e pela necessidade de usar aquele tipo de pano ou aquele tipo de objeto, por exemplo. E outros que são feitos exclusivamente por motivos religiosos.
Nessa área, tenho visto uma grande produção e uma grande mão de obra. Um exemplo disso é no Rio de Janeiro, onde tem um mercado num bairro bem popular que os cariocas chamam de Mercadão de Madureira. São três andares com centenas de lojas só de artesanatos religiosos e afros. É sensacional. É um grande museu vivo dessa produção. E, se tem muita gente produzindo, é porque tem muita gente consumindo. Assim, a gente vê que o artesanato religioso não é só um fenômeno da Bahia ou de uma região específica do país. É um fenômeno nacional. Tem em todo o Brasil.
Em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), você coordenou o Projeto de Registro de Patrimônio Imaterial dos Ofícios das Baianas de Acarajé. De modo geral, qual é a importância da concessão desses registros? Como eles podem contribuir para o desenvolvimento das comunidades e para o reconhecimento da identidade cultural brasileira?
A questão do patrimônio imaterial é uma coisa muito nova. É dos anos 2000 para cá. E é muito interessante esse projeto do ofício das baianas do acarajé para entendermos o que está por trás dessa produção. Se você for buscar o que é o acarajé, vai ver que é muito simples: é um feijão fradinho que você mói, tempera com sal e com cebola, faz uma massa e frita no dendê. É isso. Mas tem muita coisa para isso ou sobre isso. Esse oficio, por exemplo, é geralmente exercido por uma mulher. E essa mulher usa uma roupa que é tradicional. Então, para manter o ofício, não é só realizar a receita. É preciso ter o tabuleiro. Então, nós estabelecemos, dentro da tradição, o que é um tabuleiro. Assim, tem que ter acarajé, abará, cocada branca e cocada preta. Poderão ter outras coisas também, mas isso é o básico. Por quê? Nós fizemos consultas estatísticas em Salvador e na Grande Salvador e vimos que há mais de duas mil mulheres com um tabuleiro semelhante a esse. E isso é o que a gente sabe, é o que está registrado. Deve ter muito mais.
E como é essa roupa? Porque muitas botam seu shortinho de lycra, põem uma saia, uma camiseta, bota um paninho e tudo bem. Está meio vestida. Certas atividades tem um traje, uma roupa. Então, nós fizemos várias oficinas de bordado para chamar essas mulheres. Chamamos bordadeiras de Salvador para ensinar a fazer bainha aberta, enfiar pontas com miçangas e outras coisas. Tivemos muitas turmas. Não atendeu todo mundo, evidentemente, mas foi um início, foi uma tentativa. Construímos um memorial também, onde existe uma exposição que se chama “Memorial das Baianas de Acarajé”, que é um espaço para contar um pouco a história do que nós fizemos.
Tem muita coisa colada e agregada a essa ação da patrimonialização que, após ganhar seu diploma e todos baterem palmas, precisa ser preservada. Por quê? Porque tem uma metodologia, tem uma legislação, que é a salvaguarda. A salvaguarda é um conjunto de ações para preservar aquilo que estamos registrando. Mas como fazer isso se não podemos isolar o fenômeno numa vitrine?
Nesse ponto, a gente tinha mais perguntas do que respostas. Então, começamos ações para que primeiro as mulheres se organizassem como associação e, futuramente, como sindicato. Quer dizer, para o ofício continuar, tem que ter uma organização, uma voz de conjunto, uma fala única que represente o grupo. Afinal, essa fala é economicamente poderosa. Fizemos uma estatística e vimos que a cifra que o oficio levanta por ano é de centenas de milhões, mais ou menos. Assim, a atividade gera um volume muito grande.
No geral, é isso. Fiz a minha missão, entreguei algumas coisas e elas me procuraram até hoje. Eu não nego estar junto, mas a gente já deu o desmame. Agora que elas estão desmamadas, tem que andar, não é? E elas estão lutando, estão buscando, estão atuantes. Mesmo com todos os conflitos que possam existir dentro de qualquer associação, a coisa está andando.
Quando um bem material é tombado, algumas medidas são tomadas para impedir que ele seja destruído ou modificado. Entretanto, o tombamento de um bem imaterial segue outros parâmetros.
Exatamente. E esses registros têm um calendário de validação. Então, de dez em dez anos, existe toda uma política de dossiê de validação, para ver se aquele fato continua vivo, o que é que ele perdeu, o que é que ele ganhou, o que é que mudou. Não é uma blitz para saber o que é certo ou errado, absolutamente. É para saber se o fato continua e como ele continua. E pelo registro ser muito novo, a gente está construindo e aprendendo com a própria construção. Não existe uma expertise ainda. Ela está sendo feita agora com essas ações. Não é uma coisa tão tradicional como o registro do patrimônio material, que já existe há décadas. Estamos desenvolvendo metodologias mas, mesmo assim, continuamos aprendendo e criando novos recursos.
Se compreendermos os bens imateriais como algo dinâmico, que se transforma com o tempo, é importante que o registro garanta certa fluidez. Sendo assim, na sua opinião, há o risco do registro/tombamento impedir que o saber tenha essa flexibilidade? Como podemos lidar com a relação tradição x mudança?
Olha, é muito mais fácil o bem desaparecer ou se transformar. Cada fato cultural possui as suas características, os seus contextos e as suas marcas. E não há um elemento de validação que diga se o fato está mais próximo ou mais distante de um determinado ponto. Não existe uma fita métrica medindo isso. Mas, eu acho que existe uma sensibilidade natural que apresenta a dinamicidade desses fenômenos. Assim, certos elementos daquele bem devem permanecer, pois são hereditários. Não é? Por exemplo, a Semana Santa. Se você inovar alguma coisa nessas ocasiões tradicionais – ao invés do roxo e coisa e tal, usar cor de rosa, verde limão – vai criar algum impacto. As pessoas vão dizer: “Pô, mas não é roxo?” Quer dizer, existem certos elementos que já são consensuais da cultura e não são cores aleatórias, ou seja, existem significados que já estão enraizados.
Então, eu acho que, pelo significado, o acarajé é aquilo. Se eu coloco farinha, se eu coloco trigo, se eu coloco miolo de pão, é outra coisa. Deixa de ser acarajé. Eu acabei de comer agora um falafel tradicional. Se não for com o grão de bico, com aquelas coisas, não é falafel. É outra coisa. Então, eu acho que é por aí. Certos princípios você mantém, porque senão o fato se transforma em outra coisa. Dentro da identidade, existe uma variedade, não tenho a menor dúvida. Existem parâmetros da identidade.
É como se tivesse um centro que é imutável e algumas camadas externas que representam as mudanças?
Isso, mas existe sempre uma âncora, um elemento que vai te dar um referencial. Se não, você perde aquilo. Isso quem determinou não fomos nós. Foi a própria tradição cultural. A cultura é que estabeleceu essa identidade que é aceita e é preservada pelas populações. Então, a gente toma isso como uma referência.
Você é autor de inúmeros textos sobre alimentação. Dentre as principais obras, podemos destacar os livros "Culinária Caprina", "Brasil Bom de Boca" e "Vocabulário do Açúcar - Histórias, cultura e gastronomia da cana sacarina no Brasil". Sendo assim, seu nome é muito associado à Antropologia da Alimentação, uma área que, segundo Lévi-Strauss, considera que “os alimentos também servem para pensar”. Na sua opinião, como os alimentos podem auxiliar na compreensão dos elementos culturais de uma sociedade?
Na minha opinião, eu faço uma única coisa. Seja na área da arte popular, do artesanato, nas ações patrimoniais, ou nas pesquisas e estudos sobre a alimentação, o que eu procuro estudar são as chamadas “tecnologias tradicionais”.
Então, inventando uma história, se eu conheço uma panela que tem uma propriedade de cocção especial; ou um homem que tem que acender uma fogueira porque o fogo é um elemento masculino; ou, ainda, que uma mulher lava e cozinha porque a água é um elemento feminino; eu já tenho um texto fantástico sobre aquele objeto, sobre aquela comida ou sobre aquele fenômeno. E eu não vou desassociar essas partes. Fragmentamos a realidade para tentar entendê-la, mas, na verdade, ela é totalmente misturada. É um belo milk-shake, mesmo. Então, acho que essa forma nossa de interpretação cartesiana, bem ocidental e bem classificatória é uma metodologia muito clássica para entender algo que está colado e misturado.
Então, num primeiro momento, a gente descola algumas coisas, mas só para olhar um pouco melhor, para não perder os detalhes. Mas depois, colamos tudo novamente, porque as partes fragmentadas não simbolizam nada. E isso se dá com a comida, com o artesanato, porque é o mesmo processo, o mesmo logos, o mesmo conhecimento, o mesmo foco dessas realizações. A comida do dia a dia, a comida da festa, o artesanato cotidiano, o artesanato da festa. O mundo masculino, o mundo feminino. Se é do homem, se é da mulher. O que a gente tem são hominizações da sociedade que te dão esses papéis, não só de gênero, mas gêneros aliados a saberes. Então, geralmente, o trabalho de madeira é masculino e trabalho de fios é feminino. Lógico, eu posso ter mulher carpinteira e homem tecelão. Óbvio. Mas existem certos princípios históricos e econômicos que, se buscarmos desde a época das corporações de ofício da Idade Média, eles atribuem uma determinada divisão social entre os gêneros.
Dentro da área acadêmica, existem alguns estudiosos que dizem que o atual processo de globalização pode colocar em risco a preservação e manutenção de culturas tradicionais. Entretanto, alguns antropólogos - como Marshall Sahlins, por exemplo - dizem que o desenvolvimento dessa integração global é acompanhada por um aumento das diferenciações locais, em que comunidades tradicionais passam por um processo criativo de geração de uma nova auto-identidade, o que impede que esse grupo passe por um procedimento de “deculturação”. Na sua opinião, é possível situar a sociedade brasileira da atualidade em algum ponto desse debate?
Na minha opinião, a busca pelo artesanato teve um salto fantástico nesses últimos 20 anos. Assim como acontece com os movimentos do slow food, por exemplo, algumas pessoas passaram a ter uma atitude mais reflexiva e de apreciação lenta sobre um determinado objeto ou comida.
Assim, ao mesmo tempo em que alguns itens podem ser banalizados devido ao fenômeno das trocas e relações globais, eles se tornam necessários porque existe um mercado consumidor para isso. O artesanato é valorizado nesse sentido, por causa da sua forma de criação, por ser individual, por ser feito manualmente, etc. E, ao mesmo tempo em que a globalização transforma tudo com uma velocidade muito rápida, muitos movimentos crescem.
No geral, eu vejo o ressurgimento de um mercado de artesanato, não só no Brasil, mas em outros países também. Nós temos importado, por exemplo, muitas coisas da Índia e da Indonésia. Encontramos essas peças lindas no mercado em lojas tipo Tok & Stok e outros. Outro país que desenvolveu muito essa área do artesanato também é o México, através da Fonart – Fondo Nacional para el Fomento de las Artesanías – que fez um trabalho magnífico com a arte popular mexicana, incentivando e dando um mercado.
E, acompanhado desse fenômeno, existe também a questão da história que está por trás da produção de cada objeto artesanal. Sobre isso, eu tenho uma história muito interessante que me contaram: uma família foi a Tóquio numa loja muito importante de arte tradicional do Japão e acham duas cuias brancas; uma custa $1 e a outra custa $100. Por que uma custa $1 e a outra custa $100? A que custa $100 é da família tal, que faz essa cuia há não sei quantos séculos, usa o processo x, tem um determinado know-how, etc. Ou seja, a história que está colada no processo produtivo agrega valor ao produto.
De forma geral, vejo que há uma volta ao artesanato. Esse mercado vem crescendo nos últimos anos.
Por que isso acontece?
Porque há uma necessidade de humanização das coisas. Há uma necessidade de referência. Eu percebo que as pessoas estão buscando o artesanato como uma forma de expressão de arte. E elas procuram arte popular, primeiro, para dizer que possuem algo artístico. Acho que é bem legal. Não sou contra não. “Ah, eu tenho arte popular em casa”. Que bom! Show de bola! Esse também é um processo social bacana porque, se eu tenho arte popular em casa, tenho algo especial em casa. Eu acho isso muito positivo e é algo que vem crescendo, gerando novos mercados. Hoje, para ter uma ideia, uma escultura de barro do Vitalino pode custar R$50 mil ou mais. Então, já há um mercado – que eu não chamaria de consagrado, mas que está se desenvolvendo. Se quisermos, já seria possível fazer bons leilões com arte popular.
Eu, particularmente, tenho uma paixão especial por utilitários. Adoro cestos, cuias, potes, jarros. É a minha viagem. Acho belas as soluções estéticas e funcionais. São coisas belíssimas, magníficas. E são múltiplos: o cara faz 20, 30, 40.
O que os leitores irão encontrar em seu livro Barro e Balaio - Dicionário do Artesanato Popular Brasileiro?
Barro e Balaio é o meu segundo dicionário. O primeiro dicionário que eu fiz foi sobre a arte sacra de matriz africana, que é temático e tem mais de 1500 verbetes que falam sobre instrumentos musicais, utensílios, indumentárias. Só de instrumentos musicais, são mais de 300 verbetes.
Nesse sentido, Barro e Balaio é uma reunião de muitas coisas soltas que eu tinha o desejo de descrever. Quando estou muito assoberbado, com muitos problemas, eu paro tudo e vou para o computador para fazer um texto. Isso me ajuda muito a ter algo reflexivo e prazeroso naquele momento. Agora mesmo, por exemplo, estou fazendo um texto (que eu comecei no avião) sobre o sabor vermelho. Estou escrevendo sobre pimentas e durante o voo, vieram alguns insights. Isso, para mim, é muito divertido. Então, Barro e Balaio é um pouco disso. Ele nasce de um processo divertido, de sentido prazeroso, reunindo muitas coisas que estavam em fichas, coisas que estavam soltas. Estava muito agoniado com o material parado no meu arquivo. Assim, tinha que liberar aquele conteúdo, de algum modo.
Sou uma pessoa que publica muito. Texto ideal, livro ideal está para acontecer um dia. Então, tenho coragem de publicar as coisas. Já publiquei coisas ótimas, coisas ruins, coisas médias, coisas boas. Até coisas que eu já publiquei e alguém diz “ai, que legal!”, mas quando eu vou ver, penso “nossa, eu publiquei isso?” (risos).
Então, acho que o Barro e Balaio é isso. Está reunindo um material bem legal, onde eu dei um destaque para o que é nacional. O dicionário, na verdade, está pronto há vários anos e já devia ter saído há um tempo. Mas saiu agora, muito bacana e bem feito em termos editoriais.
O Barro Balaio é uma parte da minha produção e das minhas pesquisas de campo. Peguei algumas dessas referências e fiz alguns aprofundamentos. É muita pretensão você chegar um dia e dizer “eu vou fazer um dicionário sobre o artesanato popular brasileiro, de A à Z”. Então, deu um grande trabalho, evidentemente, mas foi ótimo. Esse já foi feito no computador. O dicionário anterior foi manuscrito. Acho que daqui a pouco tempo a gente nem vai precisar digitar mais. Vai ser só mentalizar que já sai o texto(risos).
Barro e Balaio, então, é a nova criança. Estou trabalhando num outro livro também que já está um pleno processo e estou retomando outros dois que estavam adormecidos. Na verdade, pesquisar e escrever são um pouco a minha gasolina, a minha droga, num sentido bom, não é? É o meu “álcool do bem”.
No campo da arte e da cultura, é frequente o debate entre o “popular” e o “erudito”. O seu novo livro se refere ao “Artesanato Popular Brasileiro”. Como você observa os termos expostos por esse debate? Essa diferenciação é algo que, de certa forma, auxiliou no delineamento do seu livro?
Isso é intencional. Por quê? O artesanato é muito interessante porque ele vem de uma organização ocidental cristã que faz parte da nossa sociedade (não podemos nos esquecer disso) e tem dois grandes focos: o artesanato doméstico e o artesanato mecânico. O doméstico é tudo o que você está fazendo em casa. Há umas centenas de anos atrás, se fazia tudo em casa. Se fazia o pano, preparava a massa do trigo, fazia o pão. Se você era agricultor, você fazia as suas ferramentas. E o mecânico era aquele de múltiplos: sapatos, bolsas, cintos, celas e armas para o mercado. Isso foi crescendo até aparecer um fenômeno chamado Revolução Industrial, que dá um corte nos meios e nas regras sociais da produção e começa essa sociedade de múltiplos. Não só mecânico, mas múltiplos. Vai entrando uma produção de múltiplos e de seriações.
E esses conceitos de arte popular vão ganhar espaço nesse momento, porque não havia uma necessidade classificatória antes. Assim, começa a criação dos nichos. Na verdade, acho que eles nem existem, porque há uma comunicação entre as partes. Eu tenho ótimas coisas de artesanato e péssimas coisas de artesanato. Tenho ótimas coisas eruditas e péssimas coisas eruditas. E o artesanato popular teve uma espécie de consagração, porque é aquele mais próximo dos ideais dos ofícios domésticos, fora dessa produção mais seriada, apesar dele também ser seriado. Numa feira de couro, por exemplo, vejo 50 pares de sandálias de couro. Vejo 100 cintos. Quer dizer, é uma produção específica, mas ela é seriada porque tem um nível de repetição. E então começam a entrar teóricos e filósofos, antropólogos, sociólogos, criando seus nichos e tendências. É uma discussão infindável e em aberto ainda. Uns tendem para um lado, outros tendem para o outro.
O que se consagra como erudito nasce nas artes populares. Óbvio. Onde é que os grandes músicos foram pegar os seus elementos? Nas canções populares, nos cânticos, nas festas da colheita, nas festas religiosas. Foram nesses lugares que eles foram pegar seus ritmos, seus cantos. Stravinsky, Beethoven, Villa-Lobos. Béla-Bartók, por exemplo, diz que busca as expressões tradicionais folclóricas. Estou dando um exemplo da música mas, nas artes plásticas, idem.
Então, acho fundamental que as memórias arcaicas, como o artesanato e outros fazeres, vão se apropriando, pegando, trazendo, mudando, repetindo. Quer dizer, então, que eu uso o termo “popular” no título do livro no sentido mais de compreensão da maioria. Esse nicho de compreensão não me satisfaz totalmente, mas facilita o entendimento. Para mim, bastaria artesanal. Mas, aí, e o fulano que prega o botão em casa? É artesanato. Mas é diferente da rendeira com o bilro. Mas cadê a mulher que faz bainha de calça? Ela não é artesã? É. Literalmente, é. Porém, são coisas bem diferentes. Um não é pior e o outro não é melhor. Esse campo é muito complicado. É um campo minado. Então, quando a gente fala do “popular”, você já cria uma espécie de categoria que te deixa ciente de que aquilo se refere a uma determinada coisa.
Em sua visão, quais as maiores dificuldades enfrentadas pelas comunidades de artesãos e pelos artistas populares hoje?
Acho que é o mercado. Nesse caso, temos que ver os vários níveis da produção, que não é comum a todos os artesãos e artistas. Tem aquele que faz artesanato porque gosta. O cara é agricultor e a onda dele é pegar um toco de pau, um canivete e fazer uma imagem. E ele escolhe se vai vender ou não, se vai dar de presente ou guardar. Já tem o outro que faz as imagens e tem um ateliê, ou vai para um mercado, ou tem produção sazonal, ou tem o ano inteiro, ou vai para a feira. E aí começa a entrar várias ações públicas, privadas, associações, cooperativas, programas, ministérios. É um mercado que muita gente mete a mão. É uma panela que muita gente mexe. Às vezes fica azedo. Às vezes fica bom. Mas eu acho que o grande ponto é a questão social. Acho que o artesão também tem o direito à saneamento, à casa, à comida. Tem direito a ver e ter outras coisas. Por exemplo: se você vai à casa de artesãos bem consagrados, lá não há uma peça de barro, uma peça de madeira feita por eles ou por alguém da comunidade deles. Eles estão com outras coisas. Eles querem bens de consumo. Ou, então, a peça que eles produzem está fora do universo de uso deles.
Acho que o direito aos bens de consumo da sociedade é perfeito. O artesão e/ou artista precisa ter contato, já que muitos se encontram em locais isolados. Você entra na casa e vê uma televisão na sala, onde tudo gira em torno dela. Colocam até um bibelô em cima da televisão: pegam um paninho de renda e colocam em cima da televisão. Tudo ali era a televisão. Assim, o artesão é um cidadão como todos nós. É um trabalhador, antes de qualquer coisa, que vive disso. Tem que viver, tem que ter dinheiro para outras coisas, tem que comer e precisa ter tempo para o lazer. Então, a questão do artesão é social. Muitos conseguiram um avanço – que não é ganhar mais dinheiro, mas ter acesso e ser valorizado pelo seu trabalho, porque as pessoas que fazem essa produção querem o dinheiro, mas elas gostam do reconhecimento, como qualquer artista. Qualquer artista gosta que falem “Oh, que trabalho bacana” ou “Você é quem faz isso? Que legal”. Isso, para o artista, é muito bacana. E os artistas buscam isso também.
Então, tudo se refere a uma questão social. Além disso, existem vários níveis de produção do artesanato: você tem a produção familiar, a produção sazonal, os produtos elaborados nas horas vagas, as peças feitas por encomenda, etc. Sobre esse último nível de produção, temos as doceiras e as boleiras, por exemplo, que para mim, são grandes artesãs. Fico fascinado com o que elas fazem – não com a massa americana, que eu detesto; pasta americana, ou sei lá (risos). Tem doceiras que fazem verdadeiras esculturas com açúcar. Rendas em açúcar. Isso é um tesouro. Eu agora estou com o olho um pouco mais voltado para isso. Estou começando a trabalhar também essa recuperação da confeitaria, enquanto artesanato. Acho que é bem legal.
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