Você possui graduação em Educação Artística
pela UNESP, mestrado em Artes Visuais e doutorado em Antropologia Cultural,
ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além disso, trabalha como
pesquisadora e diretora do Museu Casa do Pontal, o maior museu de arte popular
do Brasil. De onde vem o seu interesse pela arte e cultura popular e como se
desenvolveu sua trajetória nessa área?
Primeiro tenho
que fazer uma observação sobre a minha formação. Sou de uma das primeiras turmas
que se formaram em Educação Artística no Brasil. E estudei numa fundação
educacional que se tornou posteriormente UNESP. Mas, na verdade, não fiz o
curso de Educação Artística. Pois quando estava no término do curso chamado “Desenho
e Plástica”, que correspondia a quatro anos de formação, foi oferecido aos
alunos a possibilidade de sair com a titulação de Educação Artística. Lembro-me
que na época, se eu ficasse até o final do ano, teria esse diploma; se ficasse
mais alguns meses, teria o diploma do curso que eu fiz realmente. Mas, quando
isso aconteceu já estava completamente apaixonada por teatro e havia sido
selecionada pela Escola de Teatro Martins Pena, no Rio de Janeiro, que vivia um
momento ímpar em sua estória, com muitos professores estrangeiros e a direção
do Amir Haddad e do Klaus Vianna. Preferi optar pelo diploma em Educação
Artística, pois me liberaria mais rapidamente. Mais tarde vim a cursar várias
disciplinas na Escola de Belas Artes na UFRJ.
Desse modo, fiz
a Escola de Teatro e, em seguida, fiz parte da primeira Escola de Dança profissionalizante
para atores, fora dos padrões do balé clássico, e criada por Klaus Vianna.
Tínhamos aulas de musica, de anatomia, de mímica e pantomima, além de várias
técnicas corporais, diariamente das 18 às 22 horas. Foi um período intenso em
minha vida. Quando nasceu meu primeiro filho, em meados de 1979, resolvi deixar
as artes corporais e comecei a me interessar por cinema. Fiquei cerca de vinte
anos nessa área e me profissionalizei como roteirista e diretora de
documentários, entre os quais: Arquive-se; Terra Queimada de Sangue; Atobá; Parteiras,
a magia da Sobrevivência; Por que Cesárea? Hoje a escrita também é parte
importante de meu trabalho. Então, fiz uma carreira multidisciplinar em artes, tive
a oportunidade de trabalhar com a cultura em muitas das suas vertentes, seja
como artista, em alguns momentos, seja como técnica ou critica, em outros.
Também fui professora de artes, dei aulas na rede pública, no primeiro grau,
segundo, na universidade e na pós-graduação. A arte popular chegou à minha vida
pelo caminho dos afetos. Jamais imaginei que ela um dia se tornaria parte de
minha vida profissional.
Sempre fui muito
ligada nos fazeres artesanais, nas brincadeiras que as festas coletivas, que
hoje chamamos de “festas populares” ou “festas de rua”, propiciavam. Na
infância morei em fazendas de café e em cidades pequenas onde puder ver e viver
o prazer do contato próximo e a autonomia possibilitada às crianças. Embora de
família citadina fui formada numa relação direta com o mundo rural. Além disso,
meus pais mudavam com frequência de cidade e de estado, e até os 16 anos acabei
morando em São Paulo, Santos, Bauru e Marília. No Paraná, vivi em Londrina,
Maringá, Arapongas e Igaraçu. No Mato Grosso, morei em Campo Grande. E ainda morei
em Brasília, onde conclui o primeiro grau. Hoje minha família de origem vive em
Santa Catarina e eu estou no Rio de Janeiro desde 1976. Acho que isso favoreceu
minha abertura para a percepção da diferença.
Sempre fui curiosa para o desvendamento de “outros” mundos. Meu trabalho
de conclusão de curso, na universidade, teve como tema as cavalhadas. No interior
do estado de São Paulo havia diversas cavalhadas, e devido a minha proximidade
com a Comissão de Folclore de Bauru, acabei sendo júri de alguns concursos,
inclusive de carnaval. Eu sempre vibrei com a riqueza, a abundância e a
criatividade presentes nestas festas. Além disso, os rituais da Igreja católica
também nos davam a possibilidade de vivenciar plasticamente – sem nenhuma
pompa, com toda a liberdade que criar em conjunto permite - a feitura dos
tapetes para as procissões e outras nas quais o elemento lúdico era
fundamental. Então, minha aproximação vem de um gostar pela experiência, um
gostar que nasce do vivido.
Quando cheguei ao
Rio, conheci o Guy, com
quem dividi desde as escolas de teatro e dança, até o cinema, e que se tornou
meu marido. Por coincidência, o pai dele, Jacques
Van De Beuque, tinha uma coleção de arte popular. Quando eu o conheci, a
coleção já era visitável e estava no bairro do Recreio, no final da Barra da
Tijuca. Ele comprou um sitio, fez uma primeira adaptação do espaço para receber
a coleção, que já era bastante requisitada e visitada, e desde então, disponibilizou
esse lugar ao público. O nome “Casa do Pontal” era o obvio, porque indicava a
região onde este espaço estava plantado.
A história da
passagem deste acervo do espaço privado para o público ganha impulso em 1976,
quando o Jacques promove uma grande exposição no Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro (MAM Rio). Embora já tivesse
feito outras mostras do acervo, essa exposição teve um impacto muito forte e,
de certa forma, acompanhava o movimento de renovação dos museus
norte-americanos que ocorria na época. A partir da década de 1970 esse
movimento crítico ganhou visibilidade e passou-se a pensar estas instituições,
não mais como espaços dedicados exclusivamente à memória das elites, mas também
como lugares aberto a outras visões da arte, da história e da memória.
Quando Jacques
faz a exposição no MAM-Rio, ele já tinha mais de 2000 obras no acervo. Mesmo
sem patrocínio, a mostra teve um numero recorde de visitantes. Se você der uma
olhada nos jornais da época, verá que ele ganhou vários prêmios importantes,
como o da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) e o prêmio Estácio de Sá, principal comenda do estado do Rio
de Janeiro. Todas essas premiações vinham acompanhadas de uma fala recorrente: essa
coleção deve se tornar pública! Então, Jacques Van de Beuque diz que recebeu
isso como uma missão: o acervo deveria se tornar público. Assim, ele aproveita
a casinha que tinha acabado de comprar no Pontal, faz uma primeira obra visando
adaptá-la, transfere parte do mobiliário expositivo usado no MAM para lá e passa
a receber interessados. Logo após a sua
inauguração, pessoas do meio intelectual, mais ligadas à vida internacional da
cidade do Rio de Janeiro, começam a frequentá-lo e a se encantar com o que veem.
Profissionalmente
vou encontrar este empreendimento já na década de 1990. Em meados do mestrado
em antropologia visual (EBA/UFRJ), fui contratada para prestar uma consultoria
em antropologia ligada à realização da Década Mundial do Artesanato, da Unesco,
e isso me levou a conhecer muitas comunidades produtoras de artesanato tanto no
Rio de Janeiro quanto em Minas Gerais. Desde o início, talvez devido à minha
formação acadêmica, fui capturada pela riqueza deste universo, que eu conhecera
quando criança e que agora retornava a partir de outro enquadre. Orientada pela
etnógrafa Berta Ribeiro (no início) e, depois, pela antropóloga Maria Laura
Cavalcanti, que vinha de anos de experiência na Coordenação Nacional de
Folclore e Cultura Popular – CNFCP, fui sendo conquistada pelas
particularidades deste campo de estudos.
O que é o Museu Casa do Pontal?
O Museu Casa do
Pontal já passou por muitas fases. É uma iniciativa que já dura 30 anos - até
mais, se você considerar o período em que o projeto era apenas dar visibilidade
à coleção. Quando passei a atuar, a Casa do Pontal era uma coleção aberta a
visitas agendadas e Jacques era, simultaneamente, artista e uma espécie de mecenas.
Ele também era o único que conhecia as estórias que estavam por trás dos
objetos e embora adorasse conta-las não tinha nenhuma preocupação com seu
registro. Era um colecionador sistemático, mas seu interesse principal estava
posto nas relações com os artistas e na catalogação espacial e plástica do
acervo. Ele queria que o público experimentasse um sentimento parecido ao que
ele experimentara ao ver pela primeira vez uma modelagem de Mestre Vitalino. Como
era profissional de design de
exposições comerciais, JVB foi desenvolvendo uma narrativa visual que o auxiliasse
a destacar as qualidades formais dos objetos. Durante muito tempo, chama a
atenção o reduzido número de pessoas e iniciativas no Brasil que trabalhavam a
favor da valorização da produção plástica popular. Sempre houve um foco maior
no artesanato, entendido como criação coletiva e gerador de renda. Por muitas
razões e pelo preconceito com as coisas do povo, o Brasil e os brasileiros demoraram
a perceber a existência de outras especificidades presentes neste vasto campo,
sobretudo a emergência de autores. A existência de obras originais, que vão
compor o conjunto da “arte popular”, reivindicava outro olhar, e, sobretudo, um
olhar inovador em relação às representações da vida cotidiana, com seus
momentos ordinários e extraordinários.
Uma segunda fase
do Museu Casa do Pontal é assinalada com a entrada do Guy e minha na sua
coordenação. Jacques fica impossibilitado de trabalhar e, com isso, o museu que
era inteiramente sustentado por ele passa a necessitar de outros financiadores.
Tanto Guy quanto eu éramos professores, além de artistas. E víamos com muita
clareza a vocação daquele acervo para ser usufruído pela escola. Então, um dos primeiros
projetos que fizemos foi o projeto educacional.
Sabíamos que o acervo pedia outra abordagem, diferente da que predomina
na época. Essa fase é marcada pela entrada de vários e importantes
colaboradores, tanto na museologia (com André Ângulo e Sérgio Santos) quanto na
área educacional, com a vinda da musicista Luna Messina e da atriz e arte
educadora Juliana Prado. Foi quando entendemos que a abordagem deveria ser mais
criativa, incluindo performances e arte educadores performáticos. Mas este
pensamento nasceu também da experiência e do contato com a prática destas
talentosas profissionais. Juliana vai encorpar este setor, idealizar novas
abordagens metodológicas, assumindo sua coordenação, junto com uma equipe por
ela formada. Em 1997 já vínhamos implementando novas ferramentas de gestão
cultural e realizamos o nosso primeiro planejamento estratégico. Tivemos a
sorte de contar com grandes nomes da área, que se dedicaram a pensar o museu
como colaboradores voluntários. Aliás, sem estes colaboradores teria sido
impossível levar este projeto adiante. Posso dizer que, até hoje, o Museu Casa
do Pontal tem como particularidade contar com importantes e voluntárias
adesões. Nesse momento o MCP se fortalece institucionalmente. É quando
desenhamos seu perfil institucional, contando sempre com muitas e variadas
ajudas.
Eu diria que uma
terceira fase começa com o súbito falecimento do Guy durante a montagem de uma
exposição do acervo na Índia, em 2004. Jacques havia falecido em 2000 e sequer
nos havíamos recuperado de sua ausência. Guy era o diretor executivo, e
multitalentoso, atuava tanto na área de exatas quanto na área de humanas. Se eu
me encarregava mais da produção de conteúdos, das pesquisas, das artes, com
certo foco na incorporação das tradições acadêmicas, Guy ousava enquanto gestor
e pensador. Informatizamos inteiramente o acervo, criamos um banco de dados
sofisticado que mal ficou pronto recebeu um premio internacional. Ele também
entendia o processo da cadeia produtiva da arte e do artesanato populares,
antes mesmo que este conceito alcançasse o senso comum.
Foi um período
difícil de muitas perdas pessoais e marcado pela entrada de uma terceira
geração familiar, nossos filhos, Lucas, formado em economia na UFRJ, e, na
época fotógrafo no Jornal do Brasil (mais tarde fará o mestrado em gestão de
museus na COPPE-UFRJ)e que se envolveu firmemente nos trabalhos da instituição
atuando desde então como gestor e coordenador de projetos. E, Moana, que hoje
compõe a área de pesquisa e planejamento (que, depois, veio a fazer ciências
sociais e mestrado em antropologia no IFCS/UFRJ), que dedicou sua dissertação a
estudar uma máscara da festa de bumba-meu-boi que faz parte do acervo. Por coincidência, alguns meses antes da
viagem à Índia, estávamos envolvidos num grupo de trabalho que pensava as
políticas públicas para o setor das culturas populares e tínhamos convidado uma
de suas participantes a trabalhar conosco. A entrada de Joana Ramalho Ortigão
Correa, pós-graduada em gestão cultural (e, posteriormente uma das criadoras do
Museu Vivo do Fandango), somada aos filhos, amigos, conselheiros do museu,
professores universitários da UFF, UFRJ, UNIRIO e aos demais profissionais que já
atuavam no museu na gestão administrativa foi fundamental para que ele se
consolidasse como uma instituição relevante na área museal brasileira. Com
muita capacidade de trabalho e a certeza de que o acervo merecia ser visto e
usufruído, conseguimos inventar um jeito de trabalhar intenso e envolvente e
acho que isso explica um pouco nossa paixão pelo que fazemos.
Qual a atuação e o objetivo da instituição?
O trabalho do
Museu Casa do Pontal soma-se ao de outras instituições que atuam nesse sentido e
está direcionado para a difusão, pesquisa, conservação e guarda da produção
artística escultórica dos participantes das camadas populares. Está focado na preservação
ativa da memória e da produção artística das camadas populares, justamente a
parte da sociedade menos favorecida.
Desde as décadas
40, 50 e 60, pelo menos, nós já tínhamos recortada essa produção que hoje é
denominada por “arte popular”, feita por pessoas que estavam fora da escolaridade,
fora do mundo da escrita. Pessoas que tinham a oralidade como sua principal
forma de expressão e transmissão de conhecimentos. E, justamente por isso,
também estavam de alguma forma livres dos constrangimentos da escrita, dos
conceitos que a escola transmitiu acerca das camadas populares – os quais nem
sempre foram corretos, uma vez que havia a ideia de que a cultura era apenas a
das classes letradas e abastadas. Essa produção que emerge nas margens fará
desta posição marginal sua força. Com o reconhecimento de que as camadas
populares também produziam arte e cultura a história se enriqueceu, porque pode
ser contada de muitas e originais maneiras. No caso do Museu Casa do Pontal a
escrita da história é feita por meio de esculturas e modelagens – pela “arte
popular”.
Portanto, o
grande interesse do Museu Casa do Pontal é guardar e possibilitar que a arte e
a memória das camadas populares permaneçam e retornem para a sociedade. Porque
há muito a aprender com estes indivíduos que olham para o país, para a sua
própria vida e para o que está acontecendo e nos transmitem suas crenças e seu
pensamento a partir da feitura de esculturas e modelagens. Então, o acervo é
uma construção de indivíduos que têm a oralidade como sua principal forma de
comunicação, mas que também trazem outras narrativas a partir do uso de
diferentes linguagens criativas. Com isso, eles nos permitem compreender a
complexidade de suas concepções de vida, de seus costumes, da arte que criam, do
que sonham e de seus vínculos religiosos. Além de nos encantar com os aspectos
propriamente artísticos de sua obra: cores, formas, estilos, soluções plásticas
encontradas e coerência estética.
Reconhecer a
potência desta contribuição é de uma riqueza enorme. Ocorre um reposicionamento
acerca das normas e dos códigos culturais que nos precederam e sob cuja
vigência atuamos. É uma oportunidade incrível de nos colocarmos questões sobre
o que é a própria tradição e que tipos de tradições estamos cultuando.
Hoje em dia,
ainda penso que as pessoas estão distantes de vir a ter uma compreensão mais
concreta desse universo. As práticas populares, os modos de fazer e viver, as
dinâmicas sociais e do trabalho, as formas de transmissão dos saberes,
permanecem pouco claras. Há mesmo certa tendência depreciativa quando se trata
de olharmos as contribuições culturais das camadas populares – que, aliás, são
muitas e diferentes entre si. Há também uma recorrência em valorizar o que é
lúdico, engraçado, leve, colorido. E estou aqui falando não só de curadores
internacionais, mas também dos nativos, que acham “pitoresca” nossa arte
popular, que decidem que ela deve interessar apenas às crianças pequenas ou
para acentuar o contraste com as artes ditas “conceituais”.
Por isso, o
Museu Casa do Pontal tem como sua principal missão a difusão. Seja por meio de
exposições, das publicações (a exemplo dos livros “O Mundo da Arte Popular
Brasileira”; “Caminhos da Arte Popular, o Vale do Jequitinhonha”; Cadernos de
textos – “Seminários Temáticos de Arte e Cultura Popular” e “Caderno de
Conservação e Restauro de Obras de Arte”) seja por meio de seus projetos
educacionais (e também da publicação do conjunto de Materiais Educativos, “O
que você vai levar?”, produzido por uma equipe do Museu). Atualmente, nós somos
um dos principais destinos escolares no Rio de Janeiro. E o que fazemos?
Atuamos na mediação da relação entre o conhecimento e a experiência de vida que
cada um que chega ao Museu trás, em confronto com essas outras vidas que são
narradas e mostradas. Também trabalhamos com o repertório musical tradicional,
com as musicas de domínio público, com a literatura de cordel e estas
performances agregam novos sentidos á visita ao museu. No geral, portanto, a
função do museu é possibilitar que esta criação seja vista a partir de outros
parâmetros, ampliando suas possibilidades de leitura.
O que é a GVB – Galeria de Arte?
A GVB Galeria de
Arte é o espaço do Museu voltado para a realização de exposições temporárias.
Buscamos apresentar ali projetos que provoquem o pensamento sobre fronteiras e
apropriações na arte. Propostas que visem diálogos e confrontações com as artes
estabelecidas, as vanguardas, o pensamento e a crítica de arte, de forma a
permitir que a criação artística seja pensada e vista por múltiplos ângulos,
considerando suas diferenças e especificidades.
O título da
galeria homenageia Guy Van de Beuque, daí GVB Galeria de Arte. Guy junto comigo
foi o responsável pela modelagem do Museu Casa do Pontal como a instituição que
ele é hoje. Se Jacques criou e manteve este rico acervo, Guy foi adiante e
assumiu a complexidade que a instituição museológica tem na contemporaneidade.
Resolvemos
homenageá-lo também por se tratar de alguém que teve uma trajetória muito rica.
Era uma pessoa que não ficou fechada dentro da vida acadêmica (mesmo sendo
doutor em matemática e filosofia e professor da UFRJ), mas se permitiu
transitar. Acho que a contemporaneidade oferece essa possibilidade do transitar.
Mas, ao mesmo tempo, é lógico que você pode transitar de muitas maneiras
diferentes. Desde transitar superficialmente, como transitar com profundidade.
E o Guy fez esse transito com profundidade.
Uma frase do seu livro “A experiência do nada como princípio do Mundo”
norteia nossas escolhas. Ela diz assim: No
tempo sem tempo da atualidade que insiste na volúpia de tudo preencher com
imagens para que nada seja visto, é preciso criar espaço e tempo para
determinar aquilo que tem o poder de acordar os sentimentos, revelar os valores
mais humanos, criar uma ponte onde tudo separa.
Já realizamos na
GVB as exposições: “Vitalino – Verger” (2010) em cooperação da Fundação Pierre
Verger, na Bahia; “Máquinas Poéticas” (2011), em cooperação com o Museu de Arte
Moderna (MAM-Rio), na qual trouxemos a obra de Abraham Palatnik para dialogar
com as geringonças e engenharias produzidas por artistas populares como Adalton
Lopes, Laurentino e Saúba; “Liturgias Contemporâneas” (2012), que contou com
obras de importantes colecionadores privados, do MAM-Rio e do MAC- Niterói, trazendo
parte da produção de Farnese de Andrade e propondo uma conversa em torno das
relações entre a arte e o sagrado; “Criaturas Imaginárias”, na qual a obra de
Manuel Galdino, seguramente um dos mais importantes no cenário da arte popular
brasileira, dialoga com os contemporâneos Angelo Venosa e Eliane Duarte,
Cristina Salgado (MAC-Niteroi) e Zé Carlos Garcia (acervo particular). Para
quem se interessar temos mais informações em nosso site (www.museucasadopontal.com.br).
A partir de quando vocês decidiram ter este
espaço?
Este projeto
nasceu dentro do planejamento estratégico que criou nosso Plano Diretor, em
fins da década de 1990. Foi algo pensado com muita antecedência, que demorou a
ser implementado justamente pelas dificuldades que enfrentamos na manutenção de
um museu deste porte.
Quando o Museu
Casa do Pontal foi concebido pelo Jacques, ele era um programador visual, um
designer de exposições comerciais. Ele tinha um grande talento para o uso de cores.
E, ao mesmo tempo, uma sensibilidade forte para promover o diálogo entre as cores
que ele trazia como bagagem e as novas cores que aquele universo portava. Posso
imaginar que Jacques tenha feito uma aventura a partir das cores e da
luminosidade que ele encontrou no Brasil. Logicamente, por ter também um
pensamento cartesiano, ele se preocupava com o aprofundamento dos significados.
Além disso, também tinha outras questões em mente, que se relacionavam com alguns
estereótipos que existiam sobre “o brasileiro”. Como estrangeiro, Jacques ouvia
muito que o brasileiro e o carioca eram pouco sérios para o trabalho, que
viviam na praia, só queriam saber de festa e carnaval. Mas não era isso o que
ele via. Sua curadoria estava em interlocução com essas ideias preconceituosas e
se contrapunha a elas.
Assim, JVB classificou
tematicamente a exposição e a iniciou com o que, a seu ver, era a grande
virtude do brasileiro – trabalhar com bom humor. Abre a exposição com uma banda
de pífaros e dois violeiros e, desta forma, não deixa de falar sobre trabalho,
uma vez que estes personagens eram simultaneamente músicos e lavradores. No seu
início no Brasil Jacques circulava num grupo de estrangeiros que amavam o país
(Burle Marx, Marcel Gautherot, Maria Vieira da Silva e outros) e se
perguntavam: que país é esse aonde vim parar? Cada qual, à sua maneira, tentou produzir
estas respostas. A criação da Casa do Pontal me parece ser uma delas.
Ele também
resolveu fazer uma exposição imensa, talvez para afirmar a grandeza desse
universo. No meu entender, talvez Jacques quisesse demonstrar que não se tratava
de meia dúzia de fenômenos. Eram muitos os artistas que se expressavam
criativamente. Embora a exposição permanente seja periodicamente renovada –
porque é preciso - mantivemos o estilo inventado por Jacques como orientador. Estamos
constantemente dialogando com ele, embora tenhamos a colaboração de outros designers,
os mais recorrentes sendo Evelyn Grumach e Roberta Barros, por exemplo. Aliás,
nesta área temos também a colaboração pontual de Richard Van Vignais, que é
designer, filho de Jacqueline, irmã de Guy. É um grande prazer reconhecer o
interesse e o afeto de profissionais qualificados, e de mais de uma geração,
pelo trabalho pioneiro de Jacques. É lógico que com o passar dos anos o
trabalho vai incorporando muitas e diferentes influências.
Quem vai visitar
o museu hoje verá 3500 obras, o que é uma boa amostragem considerando-se que o
acervo atualmente conta com cerca de 8.500 itens.
Mantemos a
exposição renovada, mas achamos que as pessoas, ainda hoje, precisam ver uma
quantidade grande de criações porque, no imaginário de muitos, arte popular remete
ao que se produz em Caruaru, sobretudo as pequenas esculturas e modelagens,
hoje muito voltadas para a comercialização em escala. O número de obras em
exibição também reforça a compreensão de que a arte popular é feita em todo o
país e não diz respeito a um único estilo de arte. Trata-se, mais propriamente,
de um campo de arte, que demarca a origem social daquele indivíduo que é
artista.
Por esta e
outras razões, tínhamos necessidade de ter outro espaço para outras exposições,
de forma que pudéssemos experimentar outras abordagens, outras formas de ver. Algo
que nos incomodava e ainda incomoda são alguns conceitos que costumam ser ainda
hoje reificados. Um exemplo: “o artista popular sempre fala da sua realidade”. Mas
não é só o artista popular; qualquer artista fala da sua realidade. Isso não
nos acrescenta nada. Outros dizem “ah, o artista popular só vê os aspectos ingenuos
e positivos da vida”. Mas se você se aprofunda neste conhecimento verá que há
outras formas, não literais, de exercer um pensamento crítico. Quando Adalton
Fernandes Lopes substitui todos os personagens dos camarotes luxuosos do
sambódromo, durante o carnaval no Rio de Janeiro, por pessoas simples, muitas
delas negras, ele está exercendo criticamente sua observação do real. Mas se
você o entrevistasse, talvez ele não falasse disso explicitamente. São outras estratégias,
estratégias de sobrevivência, num país extremamente hierarquizado como o nosso
no qual o espaço de fala é rigorosamente vigiado; não é a toa que o horário em
qualquer televisão custa mais caro que o ouro. Outorgar o poder da fala é
perigoso, pois desestabiliza o status quo.
E os mais pobres aprendem isso desde cedo, tanto é que, muitas vezes, começam
uma conversa ou entrevista pedindo desculpas pelo que venham a falar.
Então, se você
olha a arte com esse olhar velado por preconceitos, você realmente não vê além
do já sabido. Porque, para ver algo novo, você tem que se despir de certas
concepções que são naturalizadas no dia a dia.
Além disso, se a
pessoa não estudou, se a pessoa é pobre e não tem acesso às mídias, ela acaba
sendo descrita como um sujeito a quem tudo falta. Porém, no Museu Casa do
Pontal, a gente desmonta esta perspectiva. Se em todos os lugares o popular
pode ser aquele a quem falta, porque, de fato, falta muita coisa - falta
atendimento de saúde adequado, faltam escolas boas, faltam bons trabalhos,
reconhecimento, garantias e tudo isso – aqui falamos de sua abundância e do que
este indivíduo autor tem a dar. Procuramos acentuar a originalidade e riqueza
dessa produção, auxiliar os visitantes a perceberem aquilo que está sendo
evidenciado na criação daqueles indivíduos. No Museu do Pontal esses sujeitos
podem compartilhar um bem precioso: sua criatividade. E esta possibilidade de
troca torna-se mais um fator que soma na redução do abismo que separa as
diferentes camadas sociais no Brasil.
Retornando à ideia
de concepção da GVB Galeria de Arte, que a gente inaugurou em 2008. Esse espaço
foi pensado justamente para que pudéssemos fazer exercícios curatoriais, com
vistas a ampliar os horizontes conceituais. Queremos receber tanto aquele
público não especializado, que quer apenas fruir arte como também gostamos que
as pessoas tenham elementos para que possam pensar conceitualmente, caso
queiram. Além disso, de forma bastante individualista, também queríamos ter o
prazer de propor estas conversas. Encontrar novas narrativas, ampliar o
vocabulário. Investigar as relações entre a arte popular e outros gêneros,
tipos e classificações de arte, ou arte popular de outros países, ou de outras
regiões.
Há uma clara
complementação entre termos uma exposição permanente grande e abrangente, e,
simultaneamente, podermos abrigar exposições temporárias no museu. Fora do
museu temos a cerca de 30 anos uma rica agenda de exposições temporárias.
Anualmente, criamos uma ou duas mostras que andam as periferias do Rio e grande
Rio. Promovemos essas ações para dar acesso a pessoas que não têm contato com
acervos museológicos no seu dia a dia. Então, vamos com exposições muito boas
para as periferias: pequenas, menores e com custos mais baratos, mas muito
atraentes. Elegemos temas que interessam ao meio estudantil, ao professorado ou
que estejam nas pautas do dia. Enfrentamos aqui os temas mais calorosos: “Viver
em comum”, “Afro-brasilidades”, “A Vida das Ruas” foram algumas. Elas têm esta
característica mais dinâmica. A cada dois anos fazemos exposições
internacionais e, neste caso, sempre somos demandados a levar uma parte
expressiva do acervo, de forma que as pessoas possam entender o campo mais
abrangente da arte popular. O interesse, nestes casos, é o Brasil como
totalidade. As pessoas querem entender o nosso país e se revigoram com a arte
popular.
Então, fazemos
todos esses caminhos e, por sorte, a GVB fica sendo esse espaço que possibilita
a emergência de reflexões mais aprofundadas, com um seletivo grupo de obras. A
ideia é nunca fazer nada extensivo lá, mas sim refletir, pensar, propor, inovar
e inventar.
No museu todos
os setores conversam entre si. Estamos falando da GVB Galeria e, ao mesmo
tempo, é preciso falar de como o conhecimento é compartilhado entre os
diferentes setores: museologia, produção de mostras e exposições, programação
visual, produção editorial, programa educativo, programa de desenvolvimento do
turismo, pesquisa, manutenção, comunicação, gestão e paisagismo. Nem sempre
essas relações se dão formalmente, com o tempo e espaço que gostaríamos que
tivessem, mas temos conseguido pensar como conjunto. Tudo converge e este me
parece ser o que há de fascinante nas instituições museológicas, que são uma
espécie de organismo vivo, sempre em movimento, sempre em construção. Ao
contrário do que podem pensar os leigos, num museu nada é definitivo, tudo é
provisório. E mesmo assim estamos permanentemente procurando algumas
estabilidades.
Digo isso porque
a pesquisa antropológica e histórica está na base da atuação do Museu do Pontal.
E aqui contamos com a colaboração estreita da historiadora e professora Martha
Abreu, além de outros importantes profissionais acadêmicos. Realizamos
pesquisas qualitativas, aprofundadas sempre que possível. Um de nossos primeiros
passos foi compor as biografias dos artistas. E, em seguida, resolvemos
investigar os grandes centros de produção de artesanato e arte popular. Por
razões óbvias iniciamos na região do Alto do Moura, em Caruaru, Pernambuco. Mestre
Vitalino era pernambucano e foi através dele que se chamou a atenção para esse
tipo de arte no Brasil. Mestre Vitalino é um personagem icônico e ao traçar sua
trajetória vemos o quanto ela se enreda na própria história de sua região e das
relações circulares que propiciam a apropriação de conhecimentos entre
participantes de distintos mundos culturais. Para quem se interessar, escrevi
sobre ele na Revista de História da Biblioteca Nacional (http://www.revistadehistoria.com.br/revista/edicao/46).
Em seguida,
fomos para o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. É uma região que pesquiso
desde meu mestrado em Antropologia Visual. Portanto, a mais de 18 anos. Ainda
hoje não são muitas as pesquisas voltadas para o aprofundamento da criação
popular. Existem sempre muitas matérias jornalísticas, revistas de decoração e
de viagens fazendo reportagens, mas poucos estudos mais sistemáticos,
levantando questões de teor antropológico e histórico. Por fim, achamos que
seria interessante apresentar o resultado dessa pesquisa no próprio museu.
Essa exposição inaugurou a GVB Galeria de
Arte, portanto?
Sim. Durante
muitas décadas os consumidores principais de arte popular no Brasil eram de São
Paulo e do Rio de Janeiro, das capitais. Afinal, isso acontecia porque nessas
cidades você tinha um tipo de público mais cosmopolita, que se interessava por
essa produção. Hoje temos um cenário diferente, pois ocorreram importantes mudanças
políticas e sociais no Brasil. O interesse pela população mais simples, sem recursos
econômicos e tal, que por muitas décadas foi tratado pelo viés do
assistencialismo, passou a ser outro. Cresceu a noção de pertencimento. Hoje é
maior o número de pessoas que se dão conta da multiplicidade de realidades que
convivem no território. Pessoas que não esperam homogeneidade e se perguntam: o
que é ser brasileiro? O que é ser povo? Como se sustenta a noção de arte
popular?
Norteados por
esta percepção inauguramos a GVB Galeria de Arte. Mas já na edição seguinte sentimos
que tínhamos ali a oportunidade de construir novos referenciais com maior clareza
conceitual. Assim trouxemos para o foco as relações entre arte popular,
contemporânea e moderna. Mas estamos construindo tudo isso de forma lenta – porque
essa é a maneira como as coisas mais estruturadas se consolidam. Realizamos
apenas uma exposição por ano, e, esse é o pretexto que nos leva a propor outros
diálogos: musicais, com apresentações de shows; seminários, com a presença de
críticos, historiadores e antropólogos em conversas com artistas populares e os
chamados “eruditos”; e ainda as oficinas de estudos práticos. Na musica estamos
interessados em propostas que também problematizem as fronteiras. Então
trazemos a música popular numa leitura erudita, ou o contrário. Já trouxemos:
Nicolas Krassic, Carlos Malta, Tantinho da Mangueira, Wilson das Neves, Grupo
Gesta e outros. A gente aprofunda nossas investigações, multiplicando as opções
de artistas e linguagens artísticas que nos remetem a diálogos “entre mundos”. A
cada edição elegemos uma discussão. Mas, algumas perpassam permanentemente todas
as edições: as relações entre arte e artesanatos populares; as discussões sobre
autorias e singularidades. Embora tenham diversos atores sociais e
institucionais no país trabalhando a questão do artesanato, das comunidades
produtoras, das coletividades, também trabalhamos esse eixo porque a arte
popular nasce no mundo do artesanato e seria um desperdício de entendimento e oportunidade
descolar essas partes.
O Vale do Jequitinhonha é uma região que,
historicamente, apresenta baixos níveis de indicadores sociais. Entretanto, a
região também é muito reconhecida pelas suas paisagens naturais e expressões
culturais. No livro Caminhos da Arte
Popular - Vale do Jequitinhonha, inclusive, você chega a mencionar que “a
arte cerâmica popular produzida no Brasil contemporâneo, no Vale do
Jequitinhonha, em Minas Gerais, encanta a todos que a conhecem, toca os
sentidos”. Quais as características, valores e manifestações populares que
despertam o seu interesse pela produção artística dessa região?
Como fui durante
muitos anos ao Vale do Jequitinhonha, encontrei muitos contextos diferentes naquela
região. Quando estive lá pela primeira vez, no final da década de 1980, comecei
a observar que eles faziam muitas coisas decorativas, mas sempre numa
interlocução com pessoas de fora, com membros da CODEVALE - Comissão para o
Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha e outras organizações que tinham uma
forte atuação na região, por exemplo.
A arte toca os
sentidos pela beleza. Mas conhecer quem faz esta produção, seus códigos éticos,
os valores em vigor nas comunidades, tudo encanta pela generosidade que testemunhamos.
Por exemplo, por mais que seja difícil compartilhar a vizinhança – como o é para
nós, hoje, moradores das grandes cidades, que sentimos isso como um grande
problema – nestas pequenas vilas e povoados as pessoas estão mais próximas,
compartilhando e trocando técnicas, afetos, informações, vendas e muito mais.
O que primeiro
me seduziu no Vale do Jequitinhonha, além das próprias criações, foi essa
capacidade do trabalho se desenvolver em comunidade, mesmo com a preservação de
autorias. Tratei disso no livro “Caminhos da Arte Popular: O Vale do
Jequitinhonha”. Conheci alguns artistas que tinham uma produção muito singular.
A Noemiza Batista, que pude encontrar em vários momentos, fazia uma produção
ligada à liturgia católica e aos rituais religiosos, como o casamento,
batizado, missa. E ainda modelava na cerâmica os padres com suas roupas cerimoniais,
as capelas, as igrejas. Vendo sua produção tínhamos acesso a todo esse
imaginário católico ali presente. Trata-se de uma produção bonita e ousada,
usando apenas pigmentos naturais nas pinturas, com variados tons de ocre e com
o branco luminoso da tabatinga. Por conta da combinação econômica de cores, e
de sua repetição por artesãos e artistas com perfis muito diferentes entre si,
o todo tem um impacto grande.
Soma-se a isso o
fato de termos na regência deste processo o mundo da lavoura que se completa
com a produção cerâmica, voltada durante muitas décadas para a produção de
objetos para a vida – potes, panelas, copos e vasilhames diversos. Um mundo com
forte capacidade para incluir novos participantes. E isso também é encantador
porque os mundos de arte, às vezes, têm dificuldade para incluir novos
participantes. Eles tendem a ficar mais exclusivos conforme seus participantes
tornam-se bem-sucedidos. Em alguns casos, pessoas reconhecidas como grandes
artistas nunca mais irão fazer uma oficina com outras pessoas “comuns”, nunca
mais vão fazer uma aula numa escola de arte, não vão sequer para a escola em
que se formaram... Salvo raras exceções, praticamente não existe essa
possibilidade no mundo dito culto; o que é uma pena. Na arte popular isso não é
comum, mas é possível.
Com isso não
quero dizer que não existem contradições. Existem, como em toda parte, alguns
artistas mais, digamos, excêntricos, como era o caso do Ulisses Pereira Chaves,
que em certa fase da vida não gostava de compartilhar nada com ninguém. Mas, ao
mesmo tempo ele se tinha em alta conta e não cansava de falar sobre isso.
Ulisses, embora fosse bem individualista, foi uma grande inspiração, um exemplo
forte para muitos populares e estudiosos deste campo.
No mundo social do
Vale do Jequitinhonha, onde pessoas vivem numa situação de pobreza causada por
um tipo de clima (que traz períodos de seca, períodos de água e muitas
dificuldades), elas criam uma possibilidade de manter este universo coerente,
com coesões internas e com um olhar plástico para o mundo. Então, se você vai
às casas, verá que todas são pintadas com tabatinga branca por dentro e por
fora. Quando o fogão a lenha é usado deixa tudo preto por causa da fuligem que
resulta da madeira queimada. Após o uso ele é limpo com uma tabatinga que é
passada com broxa de pintura em cima do fogão. Portanto, quando termina a
função de alimentação, está tudo lindo, resplandecente.
Então, acho que
o Vale me permitiu ter acesso a essa vida na qual a dimensão estética cria uma
coerência dentro da própria vida. A casa é bonita, embora não tenha água
durante uma época do ano. A roça é difícil, mas não é abandonada porque tem uma
época em que dará frutos. E não se trata de olhar para este mundo filtrando
apenas a beleza. Temos consciência de que estas e outras circunstâncias geraram
situações de muitas dificuldades, como a ida dos homens para o corte de cana de
açúcar, ou para o trabalho na construção civil, em São Paulo. Mas esta realidade
veio se transformando nos últimos anos. Hoje existem mais opções. Além disso,
não faltam escolas para as crianças e a produção de artesanato cerâmico é
geradora de recursos e de bem estar. Ao mesmo tempo, as ceramistas continuam a
criar constantemente coisas novas.
Isso, na minha
visão, é o que caracteriza e diferencia a arte popular brasileira. O elemento
diferenciador é essa capacidade inventiva, de sempre ir criando coisas novas. Então
hoje, no Vale, onde você vê as meninas de biquíni tomando sol no açude, você
também vê uma peça de barro que tem a menina com a canga tomando sol.
Quando a neta da
Dona Isabel (de Santana do Araçuaí), a Andréia, vai fazer faculdade de Belas
Artes e Educação Artística em Belo Horizonte, MG, e na volta, resolve que vai
fazer o buque de noiva de barro, sua mãe, Glória, diz: “todas as moças agora
querem casar com o buque de flores de barro. Ela, Andréia, inventou uma
tradição”. Isso é muito interessante. Essa busca de pontos de conexão que as
pessoas fazem (mesmo quem sai e retorna) está nessa costura de conexões
culturais. Você pode ter práticas de vida diferentes, informações diferentes,
mas a conexão cultural ainda continua. A Andréia nunca será como sua avó, D.
Isabel foi, nem como a mãe ou pai (João) foram. Mas não é preciso que seja.
Evidentemente que quando ela faz a Universidade, a rigor, conceitualmente, deixa
de ser uma artista popular porque começa a trabalhar a partir de outros referenciais.
Ela já não está mais nessa conexão de arte popular como demarcação de uma origem
sociocultural. Mas ela inaugura o Vale como origem e emergência de um outro
mundo de arte. O exemplo de Andréia nos instiga a pensar sobre a mobilidade e
os indivíduos que se situam entre tradições, entre contextos: os indivíduos em
trânsito, que estão bem presentes nos mundos de arte.
Os
colecionadores viajantes – como o Jacques Van de Beuque – têm essa
possibilidade de transitar entre mundos diversos. Eles são pessoas que viajam
para comprar e investigar a cultura brasileira. Jacques, por exemplo, se
interessava pelas diferenças em relação ao mundo europeu: um mundo produzido
nas dores da guerra. As guerras do Brasil eram outras, como a fome, a miséria,
o domínio do forte economicamente sobre o fraco. Mas, ao mesmo tempo, se tinha
muitas respostas desses “pseudamente”
mais fracos. Afinal, esse lado mais fraco tem uma força. E a força desse lado
mais fraco é algo que não lhe pode ser tirado. Não é uma força que se constitui
materialmente, mas que se estrutura a partir de um entendimento do mundo, um
entendimento do seu papel na vida, de dimensões que a noção de patrimônio
imaterial pode contemplar.
Na época em que
fiz minha dissertação de mestrado presenciei em Campo Alegre (Turmalina, MG) um
fato curioso. Eu assistia as comercializações e me chamou a atenção que nenhuma
artesã aceitava vender toda sua produção para o mesmo cliente. Quando já tinha
negociado um bom volume, a ceramista logo sugeria: “Compre de minha vizinha.
Ela tem coisas lindas.” E eu me intrigava: “por que você falou para comprar da
outra?”. Sua resposta foi impressionantemente óbvia: “Porque se eu não falar
para comprar da outra, ela não vai ter nada para comer de tarde e eu terei que
convidá-la para comer e ela e seus filhos ficarão tristes”. Então, essa consciência
de que se o seu vizinho não tem o que comer, você tem a obrigação moral de dar
comida para ele, é uma ética que eu vejo que está em desaparecimento na nossa
sociedade contemporânea. Provavelmente o fato de ser uma comunidade com cerca
de 60 famílias seja o elemento que faculte esta prática. Será que não temos que
pensar sobre os efeitos do gigantismo das cidades?
Foge completamente da lógica capitalista.
Exatamente. Porém,
essa ética está simultaneamente em desaparecimento e em renascimento. Porque os
efeitos desta retração são tão dramáticos que estão sendo criadas novas
resistências. Atualmente existem muitas iniciativas na área agrícola voltadas
para o objetivo de se viver em comum, compartilhando valores humanistas e tendo
como horizonte a preservação do meio ambiente. Existem não só no Brasil como em
outras partes do mundo pessoas que saem das grandes cidades e se reúnem a
partir do ideal de compartilhar conhecimentos e uma vida comum. “Vamos criar as
crianças numa escola mais legal. Ter tempo para os filhos, tempo para sermos
solidários com os vizinhos”. Então, acho que todos esses momentos extremos
acontecem quando as partes deixam de se tocar. É como se nós, como sociedade,
estivéssemos ficando excessivamente norteados pelo capital.
Vivemos simultaneamente
nessa sociedade de mérito e de privilégios. Se você não fez por onde, azar é o
seu. Mas tem gente que não sabe o que é
fazer por onde. Nem todo mundo vai ser bem sucedido; não apenas porque o
capitalismo comprova isso em termos econômicos, mas eu digo em termos
existenciais, mesmo. E nas próprias comunidades isso fica muito claro, porque
tem pessoas que podem ficar trabalhando uma peça de barro o dia inteiro e nunca
vão fazer algo que outras queiram comprar ou que as satisfaçam. É assim que a vida é nas sociedades onde as
especialidades profissionais e as estratégias de distinções estão no centro.
Isso já sabemos e por isso é importante buscar alternativas tendo em vista
alcançar o equilíbrio social.
Entretanto, não posso
dizer que tudo que é feito por integrantes das camadas populares, artesanalmente,
seja arte popular. Eu acho que arte é um domínio que tem certa exclusividade. A
arte popular nasce dentro do mundo artesanal. Então, muitos artistas criadores e
únicos podem se tornar, ao longo de sua trajetória, artesãos da suas próprias
criações. Porém, você vai ter também aqueles artesãos que não conseguirão
chegar num estado de excelência. Que vão passar a vida inteira trabalhando, que
vão ficar velhinhos, porém não vão chegar a um estado de excelência porque não existe
para eles essa possibilidade. Assim, são muitos os fatores que entram na definição
do que pode ser ou não arte. Não se sabe quem vai ter “êxito” nos
empreendimentos e na vida; quem vai conseguir dar conta da sua própria sustentação.
Estes fatores, de forte viés arbitrário, atuam também na definição de quem será
ou não considerado artista. E tal definição será sempre resultado de amplas
negociações.
Na sua opinião, como arte e artesanato se
relacionam? Existem fronteiras conceituais que segregam essas dimensões?
Acho que existem
fronteiras, mas são fronteiras fluidas. E considero muito difícil identificar
essas fronteiras apenas pelos objetos. O que permite delinear fronteiras é o
exame das trajetórias de vida. São os comprometimentos que uns têm e outros não
têm. E, para isso, a difusão e a preservação são fundamentais, porque é como se
a gente tivesse uma ancoragem cultural. Ela permite que se preserve saberes,
fazeres, olhares e maneiras de viver. Assim, também a arte não deixa de ter uma
dimensão fortemente técnica. Mesmo pessoas que fazem flores, que fazem só um
artesanato puramente decorativo, elas têm uma construção imagética e cultural
associada a seu fazer. Elas têm algo que é dito e expressado através dessa
produção.
Agora, acho que
o artista é aquele indivíduo criador. Nesse sentido, o meu olhar vem do
Renascimento. Não é um olhar contemporâneo para essa produção. Fico sempre
pensando como é interessante que existam novas pessoas com novos olhares.
Porque é isso, justamente, que cria novas experiências. Mas penso a produção
artística popular através de um indivíduo criador que tem a capacidade de se
conectar consigo próprio, que tenha também uma necessidade de fazer essa
produção, que consiga estabelecer uma linguagem própria por meio da arte, de
forma que seja possível identificar aquele indivíduo como artista perante
outros. E, paradoxalmente, também entendo que nem sempre todos os artistas tenham
a necessidade de criar durante toda a sua vida. Digo isso em relação a qualquer
mundo de arte. Acho que muitas vezes as pessoas demoram em chegar numa
linguagem. Porém, às vezes, elas chegam rapidamente, mas depois perdem o
interesse por continuar desenvolvendo essa linguagem e viram reprodutores daquilo
que já fizeram.
Penso nos
artistas que vêm trabalhando há muito tempo e, de repente, fazem uma obra, e
essa obra ganha uma dimensão de publicidade muito grande e aí o artista fica um
pouco refém dessa publicidade. Todo mundo quer. Na arte popular, eu acho que
isso acontece muito por causa pressão do mercado e do desequilíbrio entre os
termos da relação arte X mercado.
Nesse sentido,
gostaria de falar sobre as “apropriações”. Têm pessoas que dizem “eu acho que é
legal fazer releituras da arte popular”. Eu vi alguém que compra objetos de
artesanato, emoldura, pinta e diz “estou fazendo uma releitura”. Diferentemente
de alguém que se apropria de imagens míticas ou mediáticas, cuja autoria é
amplamente difundida, no caso da arte popular nem sempre é o que ocorre. Então,
quem se apropria não pode ocultar os dados sobre esse autor pouco conhecido ou,
mesmo, desconhecido. Eu gosto das
releituras, acho que elas têm espaço para existir. Mas também acho que quando
os termos da relação são desiguais, instala-se uma questão ética. Nestes casos
o risco é que os termos da relação fiquem muito desiguais. Porque quando você
sabe quem fez e você quer fazer uma releitura daquilo, você pode fazer uma
releitura, mas sabendo que você está carregando muitos autores junto com você. A
obra popular não é uma obra que está aí para ser apropriada desta forma. Ela
pode ser apropriada, usufruída. Mas os ditos integrantes das camadas médias,
escolarizadas, tem certa obrigação de “cuidar” dos termos menos fortes da
relação.
Se a pessoa não
tem acesso a informações e tudo isso, é óbvio que ela pode fazer certas
apropriações sem nem se dar conta que está fazendo. Mas, a situação é diferente
para quem fez uma escola de arte, para quem tem uma trajetória no campo
artístico. A releitura tem que ter uma coisa muito nova, muito própria dela.
Não pode ser apenas um uso. “O meu olhar viu”. Não, não é possível que só o seu
olhar possa ver. Esse olhar qualificado, externo. São muitos olhares, entre
eles o do artista ou artesão que criou aquela peça. E ele não cria assim, num
estalo. O artista cria também pensando, investigando, e às vezes até querendo
atender o mercado. O que não deixa de ser um estímulo e que muitas vezes pode
ser um estímulo positivo. Eu não acho que o mercado possa ser sempre um
estímulo negativo.
As pessoas precisam sobreviver.
Lógico. Todo
mundo. Qualquer artesão ou artista. E quando alguém, de qualquer meio de arte,
não consegue sobreviver do seu meio de trabalho, o que vai fazer? Vai encontrar
um caminho. Tem que encontrar, porque tem que sobreviver.
A produção artística popular, em
determinados casos, é marcada pela dicotomia da coletividade e da
individualidade. Enquanto, por um lado, observamos a manifestação cultural de
uma comunidade expressa num objeto, por outro lado nós podemos ver as
características peculiares que cada artesão, artista ou mestre transmite para a
peça. Em sua opinião, como essas relações de homogeneidade e heterogeneidade
interagem entre si? Como lidar com essa dicotomia no momento da comercialização
de um objeto artesanal?
Se ficarmos
restritos ao artesanato em cerâmica, madeira e ferro, de fato, quando a
repetição não fizer mais nenhum sentido, ela para. Para que ela exista, precisa
fazer sentido. Podendo ser um sentido distanciado da realidade. Por exemplo:
barquinhos de Paraty. Paraty existe, existem os barquinhos e existem os souvenires,
que são os barquinhos de Paraty. É óbvio que se você põe um barquinho de Paraty
na sua estante aqui em São Paulo e você fica olhando para ele, aquele objeto te
evoca memórias, te evoca lembranças, ele te evoca muitas coisas. E você não faz
ideia de quem seja aquele cara ou aquela mulher que o fez. Se você tiver dez
barquinhos feitos por dez pessoas diferentes, dificilmente você vai estabelecer
quais são as diferenças entre os autores de tudo isso. Eles continuarão
evocando para você o mar, um estilo de vida, uma maneira de ser e uma
experiência de mar, de isso tudo que não tem nada a ver com a experiência de
quem mora lá e que fez o barquinho.
Eu acho que,
nesse caso, é um artesanato repetitivo que porta valores culturais. E no
momento em que esse barquinho não falar a mais ninguém, ele não será feito,
porque ele é feito para o mercado. O artesanato está mais claramente nesta
dinâmica.
Já na arte
popular, embora seja menos comum, há exemplos de artistas que têm
autoconsciência relativa a seu desejo de “tornar-se artista”. Cito o exemplo de
Manuel Galdino, de Caruaru, Pernambuco. Ao conhecer o Alto do Moura ele resolveu
dar uma virada em sua vida. Decidiu: “Eu quero ser artista. Quero fazer o que
esses caras fazem.” E abandona o emprego, se muda para a vila na periferia de
Caruaru onde estão concentrados os artesãos e artistas. E, depois de instalado,
começa a modelar, fazer coisas das quais ninguém gosta e ninguém quer comprar.
Mas ele queria ser artista. E o que era para ele ser artista? Não trabalhar
fixo na prefeitura, ter um estilo de vida que lhe permitisse ir à roça, voltar,
pegar barro, amassar barro, conversar, ser dono do seu tempo. Ao mesmo tempo,
ele era poeta e cantador. Ele gostava de se apresentar cantando em feiras. E
sempre fazia uma poesia para cada obra modelada, pois a seu ver elas se
complementavam. Mas, por muito tempo ele não faz sucesso. Ninguém queria
comprar. Mas ele continua fazendo. Eu acho que essa é uma diferença que pode ajudar
a demarcar fronteiras entre artesanato e arte popular. Mesmo que o Galdino desenvolvesse
outras atividades necessárias para a sobrevivência, e que tenha tentado fazer
obras parecidas com as que se vendiam, não deixou de fazer aquilo que ele
gostava de produzir que eram os “bichos medonhos”, como ele chamou os seus
“monstros”. Ele queria fazer bichos medonhos e é isso o que ele continuou a
fazer. Mas este é o caso dele. Há que se ver caso a caso. Não existem regras
gerais.
Então, existe esse
indivíduo que não se rende ao mercado. Que estabelece uma plasticidade evidente
na sua própria obra, um conteúdo e uma linguagem claros, inventando algo nunca
existente antes dele. Então, esse indivíduo se diferencia. Mas ele continua
sendo vizinho do artesão que vai fazer duzentos boizinhos para entregar no
final da semana. E eles vão compartilhar do mesmo mundo cultural.
Contudo, acho
que essas autorias singulares, são únicas. E não existe um grande numero de
artistas singulares. Mas, não se pode afirmar que o fato de não aceitar
sugestões ou encomendas seja central na definição de alguém como artista.
Galdino era assim; já outro artista, o Adalton Fernandes Lopes, de Niterói, Rio
de Janeiro, tinha outro gênero de relação com as demandas. Elas o estimulavam a
criar coisas bem originais. Comparando-se Manuel Galdino com Adalton Fernandes podemos
ver como estas diferenças de atitude convivem mesmo em artista ímpares. Adalton,
o artista do movimento por excelência, que faz as geringonças ou as “obras de
engenharia”, como ele dizia, não era afetado essencialmente, se podemos dizer
isso, pelo fato de realizar encomendas. Ele, provavelmente, foi o artista que
melhor retratou a vida do subúrbio carioca no barro. Tinha uma exuberância
criativa tal que aceitava encomendas de todo mundo e inventava coisas originais
para todo mundo. Ninguém conseguiu ter uma obra igual à outra. Em sua produção
tudo era vivo! Tudo tinha sua marca própria. Com o passar do tempo, ele tenta
incluir pessoas da família nesse fazer, o que é comum no mundo do artesanato. Por
um curto período até consegue. Depois, um de seus filhos morre e este fato o
atinge profundamente. A tentativa de incluir outra filha funcionou até certo
ponto, mas ela se colocou como “ajudante”, ela o auxiliava, não tinha o ímpeto
da criação, nem o desenvolveu ainda. Isso pode acontecer: afinal, ele era o
artista, era a alma daquela história.
Temos outros
exemplos. E quando digo isso penso em Nhô Caboclo, também de Pernambuco, que
trabalhou na loja da Silvia Martins, galerista e importante estimuladora da
arte popular pernambucana. Um dia uma irmã da Silvia foi à galeria para comprar
um pássaro de Nhô Caboclo que ela tinha encomendado. Ele entregou o pássaro.
Ela o olhou e disse: “Ah, eu não gostei desse pássaro. Ele está muito preto. Mude
a cor dele. Coloque um verde para alegrar...” Não sei se foi este o diálogo, ouvi
esta história há muito tempo, mas estou certa que foi algo assim. Nhô Caboclo a
escuta e logo diz: “Esse pássaro, que a senhora está falando, a senhora é que
vai fazer, não é?” Eu não o conheci pessoalmente, esta estória me foi contada
pela própria Silvia. O que me leva a concluir que ele não vai fazer aquele
pássaro para ela. Para ele é insuportável entrar na viagem do outro. Ele está
na viagem dele. Mesmo assim, continuo achando que nem todo artista tem que ser autorreferente.
Existem todos os tipos. Na esfera da vida e da arte tudo é possível.
No caso do
Dadinho, por exemplo, que esculpia com a faca numa laranja. Um dia alguém viu,
fez preço e comprou. Geraldo Marçal dos Reis, conhecido como Dadinho, entendeu
que sua brincadeira interessava a outros: “Cara, isso aqui dá dinheiro”. É
logico que foi imediata a conexão. E ele acabou por fazer cidades tentaculares
incríveis. Aí, você fala “ah, o cara tem que vender para sobreviver”. Em geral
não gosto dessa palavra ‘sobreviver’ ligada tão fortemente a produção popular,
porque hoje existem artistas que vivem muito bem. E a sobrevivência não é
desejável para ninguém. Sobrevivência quer dizer, o mínimo necessário. É bom
que as pessoas vivam, que elas consigam viver bem, comer bem, ter acesso a
serviços necessários, ser cotado e ser cuidado.
Esse é o mínimo necessário.
Sim. O mínimo necessário.
É lógico que eu não advogo que a nossa meta, enquanto humanidade seja nos
tornarmos uma hipersociedade de consumo. Acho isso um absurdo. Acho que estamos
numa época confusa, complicada, de extremo consumismo. Inclusive, a arte e o
artesanato também entram nessa roda.
O Museu Casa do Pontal já idealizou e
organizou exposições sobre a arte popular brasileira em 15 países (Alemanha,
França, Inglaterra, Espanha, Suíça, Itália, Dinamarca, Suécia, Bélgica,
Eslováquia, Argentina, EUA, Índia, Portugal e Paraguai). Na sua visão, como e
qual foi a receptividade dos objetos brasileiros no exterior?
Comecei a atuar
como curadora de exposições internacionais há 18 anos. Neste período realizei a
curadoria de exposições que fizemos na Argentina, no Paraguai, na França, na
Bélgica, em Portugal e na Índia. Vejo que há algo bastante parecido na recepção
de nosso acervo, seja onde for. Há um grande interesse pela arte popular. Tanto
na Índia, como nos países da América do Sul, ou entre os europeus. Parece-me
que essa receptividade tem a ver com o desejo de saber mais sobre o Brasil,
desejo este formado a partir de algumas fantasias sobre o país, visto como um
paraíso tropical habitado por um povo talentoso, aberto e acolhedor. Na
Argentina e no Paraguai, a atração parece passar pela curiosidade sobre este
vizinho grande e enigmático, mas também pela busca de uma identidade comum. Os
europeus, por sua parte, devido inclusive a seu passado colonialista, se
interessam pelos aspectos mais exóticos, pelas festas, pelas músicas, pela
religiosidade sincrética. A música e o futebol também participam da criação de
um imaginário um tanto quanto romântico sobre o Brasil. Além disso, ir a
exposições e museus é um hábito europeu bastante consolidado. Faz parte da
formação cultural que tem início na mais tenra infância. Há um interesse pela
geografia do país, por sua vastidão e por conhecer o pensamento deste povo que
é resultado de grandes misturas étnicas e culturais.
Há tempos
passados, havia maior diferença entre o acolhimento dado a essa produção pelo público
interno e externo. Há 20 anos não era grande o número dos que, entre nós,
valorizavam as criações artísticas dos segmentos populares. Não que isso tenha
mudado completamente. Ainda hoje vigoram preconceitos e nos deparamos com
pessoas que repetem que a arte popular é sempre anônima, pessoas que não
conseguem entender as maneiras por meio das quais os artistas manifestam suas
individualidades. Há muito a ser feito.
É necessário cultivar o olhar, afinar a percepção. Mas hoje sentimos que há no
próprio país, nas pequenas e nas grandes cidades, um público muito interessado
em arte popular. Os brasileiros têm viajado mais pelo país e se perguntado mais
sobre si mesmos. A universidade, sobretudo nas áreas de antropologia,
antropologia visual, história, dança e teatro, tem se dedicado a entender os
aspectos estéticos presentes nas festividades e em outras formas da vida social
em meios populares. As mídias massivas também têm aumentado seu interesse pelo
tema. O teatro, as novelas, o designers têm chamado a atenção para a forte
dimensão criativa que emerge nas práticas sociais e festivas das culturas
populares. Além disso, existe hoje no Brasil a percepção de que as artes
populares também incluem as artes étnicas, a produção de grupos
afrodescendentes, e que estas expressões dizem respeito a práticas e modos de
viver e enxergar a vida que precisam ser reconhecidos e valorizados. Em resumo:
acho que estamos vivendo um período de aceleradas mudanças. Imagino que o
conjunto de fatores elencados acima contribuirá para que se altere a visão
sobre a arte popular.
Pelo que eles mais se atraem no exterior?
Se inicialmente
o que chama a atenção é o país, assim que se deparam com nossa produções,
outros aspectos começam a agir. À
primeira vista chama atenção a maneira cenográfica como o acervo é exposto, a
contemporaneidade da linguagem expositiva, o papel das cores e da iluminação em
nossos projetos. Em seguida, se atraem pela abordagem curatorial que dá contorno
e acentua a presença dos aspectos culturais ativos nas tradições, nas
comunidades produtoras, no mundo artesanal, sem deixar de lado as ênfases sobre
os artistas singulares, sobre os autores e as autorias. O interesse pelo Brasil fora do país sempre foi
grande. Nossas exposições, mesmo quando de pequeno porte, sempre mobilizam o
público. Logicamente, depois que a pessoa chega, ocorre um enamoramento pelas
obras em si, pela fascinante possibilidade de leitura deste país tão diverso
que o acervo possibilita. E, ainda, pelo pensamento e pela imaginação dos
artistas do povo, dos que ocupam as franjas e os espaços marginais na
sociedade. Também chama bastante a atenção a maneira como os artistas se auto
representam e às suas realidades. Interessam-se pelos olhares absolutamente
particulares, que estimulam a imaginação e demarcam um espaço criador próprio.
E internamente?
Em relação ao
público brasileiro, entre as pessoas mais simples, acontece uma adesão
instantânea: porteiros, seguranças, pessoal da limpeza, gente de escritório,
donas de casa, trabalhadores rurais, moradores das periferias, pequenos
funcionários se identificam imediatamente com as obras e as temáticas. Se fazem
parte de famílias que emigraram a identidade é grande. Entre os participantes
das camadas mais intelectualizadas essa adesão também ocorre, mas se dá por
outros caminhos. As pessoas entendem de imediato que ali existe algo especial.
Mas como primeira classificação situam o que veem na esfera do artesanato. Talvez
seja um pouco desconfortável pensar que pessoas que não têm acesso à cultura
erudita escrita possam ser realmente grandes artistas. Acho que isso ocorre porque
os artistas populares nem sempre dominam os aspectos discursivos referentes à
sua produção. O que leva esse público a olhar para o artista popular
hierarquizando em relação aos artistas da norma culta. Quando há uma evidência
incontornável, preferem transformar esses “raros” em “um dos nossos”. Esse
segmento costuma trilhar um caminho maior, para chegar ao reconhecimento de que
criadores populares também podem ser artistas plenos. Esse caminho passa pela
valorização do exótico, pela relação histórica entre as artes tidas como
“primitivas” e as artes modernas e as vanguardas artísticas europeias.
E no museu, como isso se manifesta?
Quando as
pessoas chegam ao Museu Casa do Pontal, elas se deparam com um universo tão
rico que “esquecem” quase que instantaneamente o senso comum que associa “povo”
com pobreza e “falta”. Ali, pode-se reconfigurar essas ideias. E povo vira
sinônimo de potência, força, riqueza e criação. O número de obras em nossa
exposição permanente também impacta. Como já disse, imagino que Jacques Van de
Beuque tenha proposto esta forma expositiva numa época em que era preciso um
grande esforço para que as pessoas pudessem livrar-se de estereótipos e ver com
os olhos livres a diversidade da produção artística popular. Por incrível que
pareça, ainda hoje há os que não conseguem reter o que é evidente: a arte
popular demarca apenas e tão somente uma origem socioeconômica e cultural. Não
obedece a estilos, formatos, proporções, materiais, nem estão relacionadas obrigatoriamente
com formas e caracteres específicos. Não se confunde com a arte dita naif. Além disso, existem produtores em
Minas Gerais, no Rio de Janeiro, em Santa Catarina, em São Paulo, em todas as
regiões do Brasil. A maior parte da produção artística nasce no efervescente
campo do artesanato, mas vai além e ultrapassa os contornos deste campo, pois
arte rompe com ideias fixas, com padrões repetitivos, mesmo que estes padrões
sejam impactantes e fortemente arraigados na cultura. O artesanato tradicional
é muito importante, aporta beleza e elementos culturais profundos ao cotidiano.
Fala de pertencimento e permanência no território. Arte mobiliza e instaura
criação sempre. Neste sentido, as exposições realizadas na GVB Galeria de Arte,
espaço para as exposições temporárias localizado no Museu Casa do Pontal têm
sido muito interessantes. Pois ao juntarmos arte contemporânea e arte popular,
criando curadorias nas quais algum aspecto de identidade entre as obras
expostas são assinalados, estimulamos certa liberdade de olhar. Ressalto a
exposição Máquinas poéticas que
juntou as obras e os processos do designer Abraham Palatinik e os populares
Adalton Lopes, Laurentino, Nhô Caboclo e Saúba. Ou a mostra Liturgias Contemporâneas que
correlacionou Farnese de Andrade e os ex-votos. A expertise técnica, a sofisticação evidente na criação das obras,
mas, sobretudo, a maneira como, por caminhos completamente diferentes, pode-se
chegar a resultados comuns, permite que se pense sobre processos de criação
independentemente do acesso à escolaridade. Esse tipo de contato auxilia a
pensar sobre o que faz fronteira entre as artes. E nos possibilita ver que
muitas vezes as fronteiras são mais formais do que concretas.