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A CASA E O MUNDO

ENTREVISTA

ANGELA MASCELANI

Publicado por A CASA em 10 de Julho de 2014
Por Ivan Vieira

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“A arte rompe com ideias fixas e com padrões repetitivos; arte mobiliza e instaura criação, sempre”.

Angela Mascelani é pesquisadora e diretora do Museu Casa do Pontal.


Você possui graduação em Educação Artística pela UNESP, mestrado em Artes Visuais e doutorado em Antropologia Cultural, ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além disso, trabalha como pesquisadora e diretora do Museu Casa do Pontal, o maior museu de arte popular do Brasil. De onde vem o seu interesse pela arte e cultura popular e como se desenvolveu sua trajetória nessa área?

Primeiro tenho que fazer uma observação sobre a minha formação. Sou de uma das primeiras turmas que se formaram em Educação Artística no Brasil. E estudei numa fundação educacional que se tornou posteriormente UNESP. Mas, na verdade, não fiz o curso de Educação Artística. Pois quando estava no término do curso chamado “Desenho e Plástica”, que correspondia a quatro anos de formação, foi oferecido aos alunos a possibilidade de sair com a titulação de Educação Artística. Lembro-me que na época, se eu ficasse até o final do ano, teria esse diploma; se ficasse mais alguns meses, teria o diploma do curso que eu fiz realmente. Mas, quando isso aconteceu já estava completamente apaixonada por teatro e havia sido selecionada pela Escola de Teatro Martins Pena, no Rio de Janeiro, que vivia um momento ímpar em sua estória, com muitos professores estrangeiros e a direção do Amir Haddad e do Klaus Vianna. Preferi optar pelo diploma em Educação Artística, pois me liberaria mais rapidamente. Mais tarde vim a cursar várias disciplinas na Escola de Belas Artes na UFRJ.

Desse modo, fiz a Escola de Teatro e, em seguida, fiz parte da primeira Escola de Dança profissionalizante para atores, fora dos padrões do balé clássico, e criada por Klaus Vianna. Tínhamos aulas de musica, de anatomia, de mímica e pantomima, além de várias técnicas corporais, diariamente das 18 às 22 horas. Foi um período intenso em minha vida. Quando nasceu meu primeiro filho, em meados de 1979, resolvi deixar as artes corporais e comecei a me interessar por cinema. Fiquei cerca de vinte anos nessa área e me profissionalizei como roteirista e diretora de documentários, entre os quais: Arquive-se; Terra Queimada de Sangue; Atobá; Parteiras, a magia da Sobrevivência; Por que Cesárea? Hoje a escrita também é parte importante de meu trabalho. Então, fiz uma carreira multidisciplinar em artes, tive a oportunidade de trabalhar com a cultura em muitas das suas vertentes, seja como artista, em alguns momentos, seja como técnica ou critica, em outros. Também fui professora de artes, dei aulas na rede pública, no primeiro grau, segundo, na universidade e na pós-graduação. A arte popular chegou à minha vida pelo caminho dos afetos. Jamais imaginei que ela um dia se tornaria parte de minha vida profissional.

Sempre fui muito ligada nos fazeres artesanais, nas brincadeiras que as festas coletivas, que hoje chamamos de “festas populares” ou “festas de rua”, propiciavam. Na infância morei em fazendas de café e em cidades pequenas onde puder ver e viver o prazer do contato próximo e a autonomia possibilitada às crianças. Embora de família citadina fui formada numa relação direta com o mundo rural. Além disso, meus pais mudavam com frequência de cidade e de estado, e até os 16 anos acabei morando em São Paulo, Santos, Bauru e Marília. No Paraná, vivi em Londrina, Maringá, Arapongas e Igaraçu. No Mato Grosso, morei em Campo Grande. E ainda morei em Brasília, onde conclui o primeiro grau. Hoje minha família de origem vive em Santa Catarina e eu estou no Rio de Janeiro desde 1976. Acho que isso favoreceu minha abertura para a percepção da diferença.  Sempre fui curiosa para o desvendamento de “outros” mundos. Meu trabalho de conclusão de curso, na universidade, teve como tema as cavalhadas. No interior do estado de São Paulo havia diversas cavalhadas, e devido a minha proximidade com a Comissão de Folclore de Bauru, acabei sendo júri de alguns concursos, inclusive de carnaval. Eu sempre vibrei com a riqueza, a abundância e a criatividade presentes nestas festas. Além disso, os rituais da Igreja católica também nos davam a possibilidade de vivenciar plasticamente – sem nenhuma pompa, com toda a liberdade que criar em conjunto permite - a feitura dos tapetes para as procissões e outras nas quais o elemento lúdico era fundamental. Então, minha aproximação vem de um gostar pela experiência, um gostar que nasce do vivido.

Quando cheguei ao Rio, conheci o Guy, com quem dividi desde as escolas de teatro e dança, até o cinema, e que se tornou meu marido. Por coincidência, o pai dele, Jacques Van De Beuque, tinha uma coleção de arte popular. Quando eu o conheci, a coleção já era visitável e estava no bairro do Recreio, no final da Barra da Tijuca. Ele comprou um sitio, fez uma primeira adaptação do espaço para receber a coleção, que já era bastante requisitada e visitada, e desde então, disponibilizou esse lugar ao público. O nome “Casa do Pontal” era o obvio, porque indicava a região onde este espaço estava plantado.

A história da passagem deste acervo do espaço privado para o público ganha impulso em 1976, quando o Jacques promove uma grande exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio). Embora já tivesse feito outras mostras do acervo, essa exposição teve um impacto muito forte e, de certa forma, acompanhava o movimento de renovação dos museus norte-americanos que ocorria na época. A partir da década de 1970 esse movimento crítico ganhou visibilidade e passou-se a pensar estas instituições, não mais como espaços dedicados exclusivamente à memória das elites, mas também como lugares aberto a outras visões da arte, da história e da memória.

Quando Jacques faz a exposição no MAM-Rio, ele já tinha mais de 2000 obras no acervo. Mesmo sem patrocínio, a mostra teve um numero recorde de visitantes. Se você der uma olhada nos jornais da época, verá que ele ganhou vários prêmios importantes, como o da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o prêmio Estácio de Sá, principal comenda do estado do Rio de Janeiro. Todas essas premiações vinham acompanhadas de uma fala recorrente: essa coleção deve se tornar pública! Então, Jacques Van de Beuque diz que recebeu isso como uma missão: o acervo deveria se tornar público. Assim, ele aproveita a casinha que tinha acabado de comprar no Pontal, faz uma primeira obra visando adaptá-la, transfere parte do mobiliário expositivo usado no MAM para lá e passa a receber interessados.  Logo após a sua inauguração, pessoas do meio intelectual, mais ligadas à vida internacional da cidade do Rio de Janeiro, começam a frequentá-lo e a se encantar com o que veem.

Profissionalmente vou encontrar este empreendimento já na década de 1990. Em meados do mestrado em antropologia visual (EBA/UFRJ), fui contratada para prestar uma consultoria em antropologia ligada à realização da Década Mundial do Artesanato, da Unesco, e isso me levou a conhecer muitas comunidades produtoras de artesanato tanto no Rio de Janeiro quanto em Minas Gerais. Desde o início, talvez devido à minha formação acadêmica, fui capturada pela riqueza deste universo, que eu conhecera quando criança e que agora retornava a partir de outro enquadre. Orientada pela etnógrafa Berta Ribeiro (no início) e, depois, pela antropóloga Maria Laura Cavalcanti, que vinha de anos de experiência na Coordenação Nacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP, fui sendo conquistada pelas particularidades deste campo de estudos.

O que é o Museu Casa do Pontal?

O Museu Casa do Pontal já passou por muitas fases. É uma iniciativa que já dura 30 anos - até mais, se você considerar o período em que o projeto era apenas dar visibilidade à coleção. Quando passei a atuar, a Casa do Pontal era uma coleção aberta a visitas agendadas e Jacques era, simultaneamente, artista e uma espécie de mecenas. Ele também era o único que conhecia as estórias que estavam por trás dos objetos e embora adorasse conta-las não tinha nenhuma preocupação com seu registro. Era um colecionador sistemático, mas seu interesse principal estava posto nas relações com os artistas e na catalogação espacial e plástica do acervo. Ele queria que o público experimentasse um sentimento parecido ao que ele experimentara ao ver pela primeira vez uma modelagem de Mestre Vitalino. Como era profissional de design de exposições comerciais, JVB foi desenvolvendo uma narrativa visual que o auxiliasse a destacar as qualidades formais dos objetos. Durante muito tempo, chama a atenção o reduzido número de pessoas e iniciativas no Brasil que trabalhavam a favor da valorização da produção plástica popular. Sempre houve um foco maior no artesanato, entendido como criação coletiva e gerador de renda. Por muitas razões e pelo preconceito com as coisas do povo, o Brasil e os brasileiros demoraram a perceber a existência de outras especificidades presentes neste vasto campo, sobretudo a emergência de autores. A existência de obras originais, que vão compor o conjunto da “arte popular”, reivindicava outro olhar, e, sobretudo, um olhar inovador em relação às representações da vida cotidiana, com seus momentos ordinários e extraordinários.

Uma segunda fase do Museu Casa do Pontal é assinalada com a entrada do Guy e minha na sua coordenação. Jacques fica impossibilitado de trabalhar e, com isso, o museu que era inteiramente sustentado por ele passa a necessitar de outros financiadores. Tanto Guy quanto eu éramos professores, além de artistas. E víamos com muita clareza a vocação daquele acervo para ser usufruído pela escola. Então, um dos primeiros projetos que fizemos foi o projeto educacional.  Sabíamos que o acervo pedia outra abordagem, diferente da que predomina na época. Essa fase é marcada pela entrada de vários e importantes colaboradores, tanto na museologia (com André Ângulo e Sérgio Santos) quanto na área educacional, com a vinda da musicista Luna Messina e da atriz e arte educadora Juliana Prado. Foi quando entendemos que a abordagem deveria ser mais criativa, incluindo performances e arte educadores performáticos. Mas este pensamento nasceu também da experiência e do contato com a prática destas talentosas profissionais. Juliana vai encorpar este setor, idealizar novas abordagens metodológicas, assumindo sua coordenação, junto com uma equipe por ela formada. Em 1997 já vínhamos implementando novas ferramentas de gestão cultural e realizamos o nosso primeiro planejamento estratégico. Tivemos a sorte de contar com grandes nomes da área, que se dedicaram a pensar o museu como colaboradores voluntários. Aliás, sem estes colaboradores teria sido impossível levar este projeto adiante. Posso dizer que, até hoje, o Museu Casa do Pontal tem como particularidade contar com importantes e voluntárias adesões. Nesse momento o MCP se fortalece institucionalmente. É quando desenhamos seu perfil institucional, contando sempre com muitas e variadas ajudas.

Eu diria que uma terceira fase começa com o súbito falecimento do Guy durante a montagem de uma exposição do acervo na Índia, em 2004. Jacques havia falecido em 2000 e sequer nos havíamos recuperado de sua ausência. Guy era o diretor executivo, e multitalentoso, atuava tanto na área de exatas quanto na área de humanas. Se eu me encarregava mais da produção de conteúdos, das pesquisas, das artes, com certo foco na incorporação das tradições acadêmicas, Guy ousava enquanto gestor e pensador. Informatizamos inteiramente o acervo, criamos um banco de dados sofisticado que mal ficou pronto recebeu um premio internacional. Ele também entendia o processo da cadeia produtiva da arte e do artesanato populares, antes mesmo que este conceito alcançasse o senso comum.

Foi um período difícil de muitas perdas pessoais e marcado pela entrada de uma terceira geração familiar, nossos filhos, Lucas, formado em economia na UFRJ, e, na época fotógrafo no Jornal do Brasil (mais tarde fará o mestrado em gestão de museus na COPPE-UFRJ)e que se envolveu firmemente nos trabalhos da instituição atuando desde então como gestor e coordenador de projetos. E, Moana, que hoje compõe a área de pesquisa e planejamento (que, depois, veio a fazer ciências sociais e mestrado em antropologia no IFCS/UFRJ), que dedicou sua dissertação a estudar uma máscara da festa de bumba-meu-boi que faz parte do acervo.  Por coincidência, alguns meses antes da viagem à Índia, estávamos envolvidos num grupo de trabalho que pensava as políticas públicas para o setor das culturas populares e tínhamos convidado uma de suas participantes a trabalhar conosco. A entrada de Joana Ramalho Ortigão Correa, pós-graduada em gestão cultural (e, posteriormente uma das criadoras do Museu Vivo do Fandango), somada aos filhos, amigos, conselheiros do museu, professores universitários da UFF, UFRJ, UNIRIO e aos demais profissionais que já atuavam no museu na gestão administrativa foi fundamental para que ele se consolidasse como uma instituição relevante na área museal brasileira. Com muita capacidade de trabalho e a certeza de que o acervo merecia ser visto e usufruído, conseguimos inventar um jeito de trabalhar intenso e envolvente e acho que isso explica um pouco nossa paixão pelo que fazemos.

Qual a atuação e o objetivo da instituição?

O trabalho do Museu Casa do Pontal soma-se ao de outras instituições que atuam nesse sentido e está direcionado para a difusão, pesquisa, conservação e guarda da produção artística escultórica dos participantes das camadas populares. Está focado na preservação ativa da memória e da produção artística das camadas populares, justamente a parte da sociedade menos favorecida. 

Desde as décadas 40, 50 e 60, pelo menos, nós já tínhamos recortada essa produção que hoje é denominada por “arte popular”, feita por pessoas que estavam fora da escolaridade, fora do mundo da escrita. Pessoas que tinham a oralidade como sua principal forma de expressão e transmissão de conhecimentos. E, justamente por isso, também estavam de alguma forma livres dos constrangimentos da escrita, dos conceitos que a escola transmitiu acerca das camadas populares – os quais nem sempre foram corretos, uma vez que havia a ideia de que a cultura era apenas a das classes letradas e abastadas. Essa produção que emerge nas margens fará desta posição marginal sua força. Com o reconhecimento de que as camadas populares também produziam arte e cultura a história se enriqueceu, porque pode ser contada de muitas e originais maneiras. No caso do Museu Casa do Pontal a escrita da história é feita por meio de esculturas e modelagens – pela “arte popular”.

Portanto, o grande interesse do Museu Casa do Pontal é guardar e possibilitar que a arte e a memória das camadas populares permaneçam e retornem para a sociedade. Porque há muito a aprender com estes indivíduos que olham para o país, para a sua própria vida e para o que está acontecendo e nos transmitem suas crenças e seu pensamento a partir da feitura de esculturas e modelagens. Então, o acervo é uma construção de indivíduos que têm a oralidade como sua principal forma de comunicação, mas que também trazem outras narrativas a partir do uso de diferentes linguagens criativas. Com isso, eles nos permitem compreender a complexidade de suas concepções de vida, de seus costumes, da arte que criam, do que sonham e de seus vínculos religiosos. Além de nos encantar com os aspectos propriamente artísticos de sua obra: cores, formas, estilos, soluções plásticas encontradas e coerência estética. 

Reconhecer a potência desta contribuição é de uma riqueza enorme. Ocorre um reposicionamento acerca das normas e dos códigos culturais que nos precederam e sob cuja vigência atuamos. É uma oportunidade incrível de nos colocarmos questões sobre o que é a própria tradição e que tipos de tradições estamos cultuando.

Hoje em dia, ainda penso que as pessoas estão distantes de vir a ter uma compreensão mais concreta desse universo. As práticas populares, os modos de fazer e viver, as dinâmicas sociais e do trabalho, as formas de transmissão dos saberes, permanecem pouco claras. Há mesmo certa tendência depreciativa quando se trata de olharmos as contribuições culturais das camadas populares – que, aliás, são muitas e diferentes entre si. Há também uma recorrência em valorizar o que é lúdico, engraçado, leve, colorido. E estou aqui falando não só de curadores internacionais, mas também dos nativos, que acham “pitoresca” nossa arte popular, que decidem que ela deve interessar apenas às crianças pequenas ou para acentuar o contraste com as artes ditas “conceituais”.

Por isso, o Museu Casa do Pontal tem como sua principal missão a difusão. Seja por meio de exposições, das publicações (a exemplo dos livros “O Mundo da Arte Popular Brasileira”; “Caminhos da Arte Popular, o Vale do Jequitinhonha”; Cadernos de textos – “Seminários Temáticos de Arte e Cultura Popular” e “Caderno de Conservação e Restauro de Obras de Arte”) seja por meio de seus projetos educacionais (e também da publicação do conjunto de Materiais Educativos, “O que você vai levar?”, produzido por uma equipe do Museu). Atualmente, nós somos um dos principais destinos escolares no Rio de Janeiro. E o que fazemos? Atuamos na mediação da relação entre o conhecimento e a experiência de vida que cada um que chega ao Museu trás, em confronto com essas outras vidas que são narradas e mostradas. Também trabalhamos com o repertório musical tradicional, com as musicas de domínio público, com a literatura de cordel e estas performances agregam novos sentidos á visita ao museu. No geral, portanto, a função do museu é possibilitar que esta criação seja vista a partir de outros parâmetros, ampliando suas possibilidades de leitura.

O que é a GVB – Galeria de Arte?

A GVB Galeria de Arte é o espaço do Museu voltado para a realização de exposições temporárias. Buscamos apresentar ali projetos que provoquem o pensamento sobre fronteiras e apropriações na arte. Propostas que visem diálogos e confrontações com as artes estabelecidas, as vanguardas, o pensamento e a crítica de arte, de forma a permitir que a criação artística seja pensada e vista por múltiplos ângulos, considerando suas diferenças e especificidades.

O título da galeria homenageia Guy Van de Beuque, daí GVB Galeria de Arte. Guy junto comigo foi o responsável pela modelagem do Museu Casa do Pontal como a instituição que ele é hoje. Se Jacques criou e manteve este rico acervo, Guy foi adiante e assumiu a complexidade que a instituição museológica tem na contemporaneidade.

Resolvemos homenageá-lo também por se tratar de alguém que teve uma trajetória muito rica. Era uma pessoa que não ficou fechada dentro da vida acadêmica (mesmo sendo doutor em matemática e filosofia e professor da UFRJ), mas se permitiu transitar. Acho que a contemporaneidade oferece essa possibilidade do transitar. Mas, ao mesmo tempo, é lógico que você pode transitar de muitas maneiras diferentes. Desde transitar superficialmente, como transitar com profundidade. E o Guy fez esse transito com profundidade.  Uma frase do seu livro “A experiência do nada como princípio do Mundo” norteia nossas escolhas. Ela diz assim: No tempo sem tempo da atualidade que insiste na volúpia de tudo preencher com imagens para que nada seja visto, é preciso criar espaço e tempo para determinar aquilo que tem o poder de acordar os sentimentos, revelar os valores mais humanos, criar uma ponte onde tudo separa.

Já realizamos na GVB as exposições: “Vitalino – Verger” (2010) em cooperação da Fundação Pierre Verger, na Bahia; “Máquinas Poéticas” (2011), em cooperação com o Museu de Arte Moderna (MAM-Rio), na qual trouxemos a obra de Abraham Palatnik para dialogar com as geringonças e engenharias produzidas por artistas populares como Adalton Lopes, Laurentino e Saúba; “Liturgias Contemporâneas” (2012), que contou com obras de importantes colecionadores privados, do MAM-Rio e do MAC- Niterói, trazendo parte da produção de Farnese de Andrade e propondo uma conversa em torno das relações entre a arte e o sagrado; “Criaturas Imaginárias”, na qual a obra de Manuel Galdino, seguramente um dos mais importantes no cenário da arte popular brasileira, dialoga com os contemporâneos Angelo Venosa e Eliane Duarte, Cristina Salgado (MAC-Niteroi) e Zé Carlos Garcia (acervo particular). Para quem se interessar temos mais informações em nosso site (www.museucasadopontal.com.br).

A partir de quando vocês decidiram ter este espaço?

Este projeto nasceu dentro do planejamento estratégico que criou nosso Plano Diretor, em fins da década de 1990. Foi algo pensado com muita antecedência, que demorou a ser implementado justamente pelas dificuldades que enfrentamos na manutenção de um museu deste porte.

Quando o Museu Casa do Pontal foi concebido pelo Jacques, ele era um programador visual, um designer de exposições comerciais. Ele tinha um grande talento para o uso de cores. E, ao mesmo tempo, uma sensibilidade forte para promover o diálogo entre as cores que ele trazia como bagagem e as novas cores que aquele universo portava. Posso imaginar que Jacques tenha feito uma aventura a partir das cores e da luminosidade que ele encontrou no Brasil. Logicamente, por ter também um pensamento cartesiano, ele se preocupava com o aprofundamento dos significados. Além disso, também tinha outras questões em mente, que se relacionavam com alguns estereótipos que existiam sobre “o brasileiro”. Como estrangeiro, Jacques ouvia muito que o brasileiro e o carioca eram pouco sérios para o trabalho, que viviam na praia, só queriam saber de festa e carnaval. Mas não era isso o que ele via. Sua curadoria estava em interlocução com essas ideias preconceituosas e se contrapunha a elas.

Assim, JVB classificou tematicamente a exposição e a iniciou com o que, a seu ver, era a grande virtude do brasileiro – trabalhar com bom humor. Abre a exposição com uma banda de pífaros e dois violeiros e, desta forma, não deixa de falar sobre trabalho, uma vez que estes personagens eram simultaneamente músicos e lavradores. No seu início no Brasil Jacques circulava num grupo de estrangeiros que amavam o país (Burle Marx, Marcel Gautherot, Maria Vieira da Silva e outros) e se perguntavam: que país é esse aonde vim parar? Cada qual, à sua maneira, tentou produzir estas respostas. A criação da Casa do Pontal me parece ser uma delas.

Ele também resolveu fazer uma exposição imensa, talvez para afirmar a grandeza desse universo. No meu entender, talvez Jacques quisesse demonstrar que não se tratava de meia dúzia de fenômenos. Eram muitos os artistas que se expressavam criativamente. Embora a exposição permanente seja periodicamente renovada – porque é preciso - mantivemos o estilo inventado por Jacques como orientador. Estamos constantemente dialogando com ele, embora tenhamos a colaboração de outros designers, os mais recorrentes sendo Evelyn Grumach e Roberta Barros, por exemplo. Aliás, nesta área temos também a colaboração pontual de Richard Van Vignais, que é designer, filho de Jacqueline, irmã de Guy. É um grande prazer reconhecer o interesse e o afeto de profissionais qualificados, e de mais de uma geração, pelo trabalho pioneiro de Jacques. É lógico que com o passar dos anos o trabalho vai incorporando muitas e diferentes influências.

Quem vai visitar o museu hoje verá 3500 obras, o que é uma boa amostragem considerando-se que o acervo atualmente conta com cerca de 8.500 itens.

Mantemos a exposição renovada, mas achamos que as pessoas, ainda hoje, precisam ver uma quantidade grande de criações porque, no imaginário de muitos, arte popular remete ao que se produz em Caruaru, sobretudo as pequenas esculturas e modelagens, hoje muito voltadas para a comercialização em escala. O número de obras em exibição também reforça a compreensão de que a arte popular é feita em todo o país e não diz respeito a um único estilo de arte. Trata-se, mais propriamente, de um campo de arte, que demarca a origem social daquele indivíduo que é artista.

Por esta e outras razões, tínhamos necessidade de ter outro espaço para outras exposições, de forma que pudéssemos experimentar outras abordagens, outras formas de ver. Algo que nos incomodava e ainda incomoda são alguns conceitos que costumam ser ainda hoje reificados. Um exemplo: “o artista popular sempre fala da sua realidade”. Mas não é só o artista popular; qualquer artista fala da sua realidade. Isso não nos acrescenta nada. Outros dizem “ah, o artista popular só vê os aspectos ingenuos e positivos da vida”. Mas se você se aprofunda neste conhecimento verá que há outras formas, não literais, de exercer um pensamento crítico. Quando Adalton Fernandes Lopes substitui todos os personagens dos camarotes luxuosos do sambódromo, durante o carnaval no Rio de Janeiro, por pessoas simples, muitas delas negras, ele está exercendo criticamente sua observação do real. Mas se você o entrevistasse, talvez ele não falasse disso explicitamente. São outras estratégias, estratégias de sobrevivência, num país extremamente hierarquizado como o nosso no qual o espaço de fala é rigorosamente vigiado; não é a toa que o horário em qualquer televisão custa mais caro que o ouro. Outorgar o poder da fala é perigoso, pois desestabiliza o status quo. E os mais pobres aprendem isso desde cedo, tanto é que, muitas vezes, começam uma conversa ou entrevista pedindo desculpas pelo que venham a falar.

Então, se você olha a arte com esse olhar velado por preconceitos, você realmente não vê além do já sabido. Porque, para ver algo novo, você tem que se despir de certas concepções que são naturalizadas no dia a dia.

Além disso, se a pessoa não estudou, se a pessoa é pobre e não tem acesso às mídias, ela acaba sendo descrita como um sujeito a quem tudo falta. Porém, no Museu Casa do Pontal, a gente desmonta esta perspectiva. Se em todos os lugares o popular pode ser aquele a quem falta, porque, de fato, falta muita coisa - falta atendimento de saúde adequado, faltam escolas boas, faltam bons trabalhos, reconhecimento, garantias e tudo isso – aqui falamos de sua abundância e do que este indivíduo autor tem a dar. Procuramos acentuar a originalidade e riqueza dessa produção, auxiliar os visitantes a perceberem aquilo que está sendo evidenciado na criação daqueles indivíduos. No Museu do Pontal esses sujeitos podem compartilhar um bem precioso: sua criatividade. E esta possibilidade de troca torna-se mais um fator que soma na redução do abismo que separa as diferentes camadas sociais no Brasil.

Retornando à ideia de concepção da GVB Galeria de Arte, que a gente inaugurou em 2008. Esse espaço foi pensado justamente para que pudéssemos fazer exercícios curatoriais, com vistas a ampliar os horizontes conceituais. Queremos receber tanto aquele público não especializado, que quer apenas fruir arte como também gostamos que as pessoas tenham elementos para que possam pensar conceitualmente, caso queiram. Além disso, de forma bastante individualista, também queríamos ter o prazer de propor estas conversas. Encontrar novas narrativas, ampliar o vocabulário. Investigar as relações entre a arte popular e outros gêneros, tipos e classificações de arte, ou arte popular de outros países, ou de outras regiões.

Há uma clara complementação entre termos uma exposição permanente grande e abrangente, e, simultaneamente, podermos abrigar exposições temporárias no museu. Fora do museu temos a cerca de 30 anos uma rica agenda de exposições temporárias. Anualmente, criamos uma ou duas mostras que andam as periferias do Rio e grande Rio. Promovemos essas ações para dar acesso a pessoas que não têm contato com acervos museológicos no seu dia a dia. Então, vamos com exposições muito boas para as periferias: pequenas, menores e com custos mais baratos, mas muito atraentes. Elegemos temas que interessam ao meio estudantil, ao professorado ou que estejam nas pautas do dia. Enfrentamos aqui os temas mais calorosos: “Viver em comum”, “Afro-brasilidades”, “A Vida das Ruas” foram algumas. Elas têm esta característica mais dinâmica. A cada dois anos fazemos exposições internacionais e, neste caso, sempre somos demandados a levar uma parte expressiva do acervo, de forma que as pessoas possam entender o campo mais abrangente da arte popular. O interesse, nestes casos, é o Brasil como totalidade. As pessoas querem entender o nosso país e se revigoram com a arte popular.

Então, fazemos todos esses caminhos e, por sorte, a GVB fica sendo esse espaço que possibilita a emergência de reflexões mais aprofundadas, com um seletivo grupo de obras. A ideia é nunca fazer nada extensivo lá, mas sim refletir, pensar, propor, inovar e inventar.

No museu todos os setores conversam entre si. Estamos falando da GVB Galeria e, ao mesmo tempo, é preciso falar de como o conhecimento é compartilhado entre os diferentes setores: museologia, produção de mostras e exposições, programação visual, produção editorial, programa educativo, programa de desenvolvimento do turismo, pesquisa, manutenção, comunicação, gestão e paisagismo. Nem sempre essas relações se dão formalmente, com o tempo e espaço que gostaríamos que tivessem, mas temos conseguido pensar como conjunto. Tudo converge e este me parece ser o que há de fascinante nas instituições museológicas, que são uma espécie de organismo vivo, sempre em movimento, sempre em construção. Ao contrário do que podem pensar os leigos, num museu nada é definitivo, tudo é provisório. E mesmo assim estamos permanentemente procurando algumas estabilidades.

Digo isso porque a pesquisa antropológica e histórica está na base da atuação do Museu do Pontal. E aqui contamos com a colaboração estreita da historiadora e professora Martha Abreu, além de outros importantes profissionais acadêmicos. Realizamos pesquisas qualitativas, aprofundadas sempre que possível. Um de nossos primeiros passos foi compor as biografias dos artistas. E, em seguida, resolvemos investigar os grandes centros de produção de artesanato e arte popular. Por razões óbvias iniciamos na região do Alto do Moura, em Caruaru, Pernambuco. Mestre Vitalino era pernambucano e foi através dele que se chamou a atenção para esse tipo de arte no Brasil. Mestre Vitalino é um personagem icônico e ao traçar sua trajetória vemos o quanto ela se enreda na própria história de sua região e das relações circulares que propiciam a apropriação de conhecimentos entre participantes de distintos mundos culturais. Para quem se interessar, escrevi sobre ele na Revista de História da Biblioteca Nacional (http://www.revistadehistoria.com.br/revista/edicao/46).

Em seguida, fomos para o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. É uma região que pesquiso desde meu mestrado em Antropologia Visual. Portanto, a mais de 18 anos. Ainda hoje não são muitas as pesquisas voltadas para o aprofundamento da criação popular. Existem sempre muitas matérias jornalísticas, revistas de decoração e de viagens fazendo reportagens, mas poucos estudos mais sistemáticos, levantando questões de teor antropológico e histórico. Por fim, achamos que seria interessante apresentar o resultado dessa pesquisa no próprio museu.

Essa exposição inaugurou a GVB Galeria de Arte, portanto?

Sim. Durante muitas décadas os consumidores principais de arte popular no Brasil eram de São Paulo e do Rio de Janeiro, das capitais. Afinal, isso acontecia porque nessas cidades você tinha um tipo de público mais cosmopolita, que se interessava por essa produção. Hoje temos um cenário diferente, pois ocorreram importantes mudanças políticas e sociais no Brasil. O interesse pela população mais simples, sem recursos econômicos e tal, que por muitas décadas foi tratado pelo viés do assistencialismo, passou a ser outro. Cresceu a noção de pertencimento. Hoje é maior o número de pessoas que se dão conta da multiplicidade de realidades que convivem no território. Pessoas que não esperam homogeneidade e se perguntam: o que é ser brasileiro? O que é ser povo? Como se sustenta a noção de arte popular?

Norteados por esta percepção inauguramos a GVB Galeria de Arte. Mas já na edição seguinte sentimos que tínhamos ali a oportunidade de construir novos referenciais com maior clareza conceitual. Assim trouxemos para o foco as relações entre arte popular, contemporânea e moderna. Mas estamos construindo tudo isso de forma lenta – porque essa é a maneira como as coisas mais estruturadas se consolidam. Realizamos apenas uma exposição por ano, e, esse é o pretexto que nos leva a propor outros diálogos: musicais, com apresentações de shows; seminários, com a presença de críticos, historiadores e antropólogos em conversas com artistas populares e os chamados “eruditos”; e ainda as oficinas de estudos práticos. Na musica estamos interessados em propostas que também problematizem as fronteiras. Então trazemos a música popular numa leitura erudita, ou o contrário. Já trouxemos: Nicolas Krassic, Carlos Malta, Tantinho da Mangueira, Wilson das Neves, Grupo Gesta e outros. A gente aprofunda nossas investigações, multiplicando as opções de artistas e linguagens artísticas que nos remetem a diálogos “entre mundos”. A cada edição elegemos uma discussão. Mas, algumas perpassam permanentemente todas as edições: as relações entre arte e artesanatos populares; as discussões sobre autorias e singularidades. Embora tenham diversos atores sociais e institucionais no país trabalhando a questão do artesanato, das comunidades produtoras, das coletividades, também trabalhamos esse eixo porque a arte popular nasce no mundo do artesanato e seria um desperdício de entendimento e oportunidade descolar essas partes.

O Vale do Jequitinhonha é uma região que, historicamente, apresenta baixos níveis de indicadores sociais. Entretanto, a região também é muito reconhecida pelas suas paisagens naturais e expressões culturais. No livro Caminhos da Arte Popular - Vale do Jequitinhonha, inclusive, você chega a mencionar que “a arte cerâmica popular produzida no Brasil contemporâneo, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, encanta a todos que a conhecem, toca os sentidos”. Quais as características, valores e manifestações populares que despertam o seu interesse pela produção artística dessa região?

Como fui durante muitos anos ao Vale do Jequitinhonha, encontrei muitos contextos diferentes naquela região. Quando estive lá pela primeira vez, no final da década de 1980, comecei a observar que eles faziam muitas coisas decorativas, mas sempre numa interlocução com pessoas de fora, com membros da CODEVALE - Comissão para o Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha e outras organizações que tinham uma forte atuação na região, por exemplo.

A arte toca os sentidos pela beleza. Mas conhecer quem faz esta produção, seus códigos éticos, os valores em vigor nas comunidades, tudo encanta pela generosidade que testemunhamos. Por exemplo, por mais que seja difícil compartilhar a vizinhança – como o é para nós, hoje, moradores das grandes cidades, que sentimos isso como um grande problema – nestas pequenas vilas e povoados as pessoas estão mais próximas, compartilhando e trocando técnicas, afetos, informações, vendas e muito mais.

O que primeiro me seduziu no Vale do Jequitinhonha, além das próprias criações, foi essa capacidade do trabalho se desenvolver em comunidade, mesmo com a preservação de autorias. Tratei disso no livro “Caminhos da Arte Popular: O Vale do Jequitinhonha”. Conheci alguns artistas que tinham uma produção muito singular. A Noemiza Batista, que pude encontrar em vários momentos, fazia uma produção ligada à liturgia católica e aos rituais religiosos, como o casamento, batizado, missa. E ainda modelava na cerâmica os padres com suas roupas cerimoniais, as capelas, as igrejas. Vendo sua produção tínhamos acesso a todo esse imaginário católico ali presente. Trata-se de uma produção bonita e ousada, usando apenas pigmentos naturais nas pinturas, com variados tons de ocre e com o branco luminoso da tabatinga. Por conta da combinação econômica de cores, e de sua repetição por artesãos e artistas com perfis muito diferentes entre si, o todo tem um impacto grande.

Soma-se a isso o fato de termos na regência deste processo o mundo da lavoura que se completa com a produção cerâmica, voltada durante muitas décadas para a produção de objetos para a vida – potes, panelas, copos e vasilhames diversos. Um mundo com forte capacidade para incluir novos participantes. E isso também é encantador porque os mundos de arte, às vezes, têm dificuldade para incluir novos participantes. Eles tendem a ficar mais exclusivos conforme seus participantes tornam-se bem-sucedidos. Em alguns casos, pessoas reconhecidas como grandes artistas nunca mais irão fazer uma oficina com outras pessoas “comuns”, nunca mais vão fazer uma aula numa escola de arte, não vão sequer para a escola em que se formaram... Salvo raras exceções, praticamente não existe essa possibilidade no mundo dito culto; o que é uma pena. Na arte popular isso não é comum, mas é possível.

Com isso não quero dizer que não existem contradições. Existem, como em toda parte, alguns artistas mais, digamos, excêntricos, como era o caso do Ulisses Pereira Chaves, que em certa fase da vida não gostava de compartilhar nada com ninguém. Mas, ao mesmo tempo ele se tinha em alta conta e não cansava de falar sobre isso. Ulisses, embora fosse bem individualista, foi uma grande inspiração, um exemplo forte para muitos populares e estudiosos deste campo.

No mundo social do Vale do Jequitinhonha, onde pessoas vivem numa situação de pobreza causada por um tipo de clima (que traz períodos de seca, períodos de água e muitas dificuldades), elas criam uma possibilidade de manter este universo coerente, com coesões internas e com um olhar plástico para o mundo. Então, se você vai às casas, verá que todas são pintadas com tabatinga branca por dentro e por fora. Quando o fogão a lenha é usado deixa tudo preto por causa da fuligem que resulta da madeira queimada. Após o uso ele é limpo com uma tabatinga que é passada com broxa de pintura em cima do fogão. Portanto, quando termina a função de alimentação, está tudo lindo, resplandecente.

Então, acho que o Vale me permitiu ter acesso a essa vida na qual a dimensão estética cria uma coerência dentro da própria vida. A casa é bonita, embora não tenha água durante uma época do ano. A roça é difícil, mas não é abandonada porque tem uma época em que dará frutos. E não se trata de olhar para este mundo filtrando apenas a beleza. Temos consciência de que estas e outras circunstâncias geraram situações de muitas dificuldades, como a ida dos homens para o corte de cana de açúcar, ou para o trabalho na construção civil, em São Paulo. Mas esta realidade veio se transformando nos últimos anos. Hoje existem mais opções. Além disso, não faltam escolas para as crianças e a produção de artesanato cerâmico é geradora de recursos e de bem estar. Ao mesmo tempo, as ceramistas continuam a criar constantemente coisas novas.

Isso, na minha visão, é o que caracteriza e diferencia a arte popular brasileira. O elemento diferenciador é essa capacidade inventiva, de sempre ir criando coisas novas. Então hoje, no Vale, onde você vê as meninas de biquíni tomando sol no açude, você também vê uma peça de barro que tem a menina com a canga tomando sol.

Quando a neta da Dona Isabel (de Santana do Araçuaí), a Andréia, vai fazer faculdade de Belas Artes e Educação Artística em Belo Horizonte, MG, e na volta, resolve que vai fazer o buque de noiva de barro, sua mãe, Glória, diz: “todas as moças agora querem casar com o buque de flores de barro. Ela, Andréia, inventou uma tradição”. Isso é muito interessante. Essa busca de pontos de conexão que as pessoas fazem (mesmo quem sai e retorna) está nessa costura de conexões culturais. Você pode ter práticas de vida diferentes, informações diferentes, mas a conexão cultural ainda continua. A Andréia nunca será como sua avó, D. Isabel foi, nem como a mãe ou pai (João) foram. Mas não é preciso que seja. Evidentemente que quando ela faz a Universidade, a rigor, conceitualmente, deixa de ser uma artista popular porque começa a trabalhar a partir de outros referenciais. Ela já não está mais nessa conexão de arte popular como demarcação de uma origem sociocultural. Mas ela inaugura o Vale como origem e emergência de um outro mundo de arte. O exemplo de Andréia nos instiga a pensar sobre a mobilidade e os indivíduos que se situam entre tradições, entre contextos: os indivíduos em trânsito, que estão bem presentes nos mundos de arte.

Os colecionadores viajantes – como o Jacques Van de Beuque – têm essa possibilidade de transitar entre mundos diversos. Eles são pessoas que viajam para comprar e investigar a cultura brasileira. Jacques, por exemplo, se interessava pelas diferenças em relação ao mundo europeu: um mundo produzido nas dores da guerra. As guerras do Brasil eram outras, como a fome, a miséria, o domínio do forte economicamente sobre o fraco. Mas, ao mesmo tempo, se tinha muitas respostas desses “pseudamente” mais fracos. Afinal, esse lado mais fraco tem uma força. E a força desse lado mais fraco é algo que não lhe pode ser tirado. Não é uma força que se constitui materialmente, mas que se estrutura a partir de um entendimento do mundo, um entendimento do seu papel na vida, de dimensões que a noção de patrimônio imaterial pode contemplar.

Na época em que fiz minha dissertação de mestrado presenciei em Campo Alegre (Turmalina, MG) um fato curioso. Eu assistia as comercializações e me chamou a atenção que nenhuma artesã aceitava vender toda sua produção para o mesmo cliente. Quando já tinha negociado um bom volume, a ceramista logo sugeria: “Compre de minha vizinha. Ela tem coisas lindas.” E eu me intrigava: “por que você falou para comprar da outra?”. Sua resposta foi impressionantemente óbvia: “Porque se eu não falar para comprar da outra, ela não vai ter nada para comer de tarde e eu terei que convidá-la para comer e ela e seus filhos ficarão tristes”. Então, essa consciência de que se o seu vizinho não tem o que comer, você tem a obrigação moral de dar comida para ele, é uma ética que eu vejo que está em desaparecimento na nossa sociedade contemporânea. Provavelmente o fato de ser uma comunidade com cerca de 60 famílias seja o elemento que faculte esta prática. Será que não temos que pensar sobre os efeitos do gigantismo das cidades?

Foge completamente da lógica capitalista.

Exatamente. Porém, essa ética está simultaneamente em desaparecimento e em renascimento. Porque os efeitos desta retração são tão dramáticos que estão sendo criadas novas resistências. Atualmente existem muitas iniciativas na área agrícola voltadas para o objetivo de se viver em comum, compartilhando valores humanistas e tendo como horizonte a preservação do meio ambiente. Existem não só no Brasil como em outras partes do mundo pessoas que saem das grandes cidades e se reúnem a partir do ideal de compartilhar conhecimentos e uma vida comum. “Vamos criar as crianças numa escola mais legal. Ter tempo para os filhos, tempo para sermos solidários com os vizinhos”. Então, acho que todos esses momentos extremos acontecem quando as partes deixam de se tocar. É como se nós, como sociedade, estivéssemos ficando excessivamente norteados pelo capital.

Vivemos simultaneamente nessa sociedade de mérito e de privilégios. Se você não fez por onde, azar é o seu.  Mas tem gente que não sabe o que é fazer por onde. Nem todo mundo vai ser bem sucedido; não apenas porque o capitalismo comprova isso em termos econômicos, mas eu digo em termos existenciais, mesmo. E nas próprias comunidades isso fica muito claro, porque tem pessoas que podem ficar trabalhando uma peça de barro o dia inteiro e nunca vão fazer algo que outras queiram comprar ou que as satisfaçam.  É assim que a vida é nas sociedades onde as especialidades profissionais e as estratégias de distinções estão no centro. Isso já sabemos e por isso é importante buscar alternativas tendo em vista alcançar o equilíbrio social.

Entretanto, não posso dizer que tudo que é feito por integrantes das camadas populares, artesanalmente, seja arte popular. Eu acho que arte é um domínio que tem certa exclusividade. A arte popular nasce dentro do mundo artesanal. Então, muitos artistas criadores e únicos podem se tornar, ao longo de sua trajetória, artesãos da suas próprias criações. Porém, você vai ter também aqueles artesãos que não conseguirão chegar num estado de excelência. Que vão passar a vida inteira trabalhando, que vão ficar velhinhos, porém não vão chegar a um estado de excelência porque não existe para eles essa possibilidade. Assim, são muitos os fatores que entram na definição do que pode ser ou não arte. Não se sabe quem vai ter “êxito” nos empreendimentos e na vida; quem vai conseguir dar conta da sua própria sustentação. Estes fatores, de forte viés arbitrário, atuam também na definição de quem será ou não considerado artista. E tal definição será sempre resultado de amplas negociações.

Na sua opinião, como arte e artesanato se relacionam? Existem fronteiras conceituais que segregam essas dimensões?

Acho que existem fronteiras, mas são fronteiras fluidas. E considero muito difícil identificar essas fronteiras apenas pelos objetos. O que permite delinear fronteiras é o exame das trajetórias de vida. São os comprometimentos que uns têm e outros não têm. E, para isso, a difusão e a preservação são fundamentais, porque é como se a gente tivesse uma ancoragem cultural. Ela permite que se preserve saberes, fazeres, olhares e maneiras de viver. Assim, também a arte não deixa de ter uma dimensão fortemente técnica. Mesmo pessoas que fazem flores, que fazem só um artesanato puramente decorativo, elas têm uma construção imagética e cultural associada a seu fazer. Elas têm algo que é dito e expressado através dessa produção.

Agora, acho que o artista é aquele indivíduo criador. Nesse sentido, o meu olhar vem do Renascimento. Não é um olhar contemporâneo para essa produção. Fico sempre pensando como é interessante que existam novas pessoas com novos olhares. Porque é isso, justamente, que cria novas experiências. Mas penso a produção artística popular através de um indivíduo criador que tem a capacidade de se conectar consigo próprio, que tenha também uma necessidade de fazer essa produção, que consiga estabelecer uma linguagem própria por meio da arte, de forma que seja possível identificar aquele indivíduo como artista perante outros. E, paradoxalmente, também entendo que nem sempre todos os artistas tenham a necessidade de criar durante toda a sua vida. Digo isso em relação a qualquer mundo de arte. Acho que muitas vezes as pessoas demoram em chegar numa linguagem. Porém, às vezes, elas chegam rapidamente, mas depois perdem o interesse por continuar desenvolvendo essa linguagem e viram reprodutores daquilo que já fizeram.

Penso nos artistas que vêm trabalhando há muito tempo e, de repente, fazem uma obra, e essa obra ganha uma dimensão de publicidade muito grande e aí o artista fica um pouco refém dessa publicidade. Todo mundo quer. Na arte popular, eu acho que isso acontece muito por causa pressão do mercado e do desequilíbrio entre os termos da relação arte X mercado.

Nesse sentido, gostaria de falar sobre as “apropriações”. Têm pessoas que dizem “eu acho que é legal fazer releituras da arte popular”. Eu vi alguém que compra objetos de artesanato, emoldura, pinta e diz “estou fazendo uma releitura”. Diferentemente de alguém que se apropria de imagens míticas ou mediáticas, cuja autoria é amplamente difundida, no caso da arte popular nem sempre é o que ocorre. Então, quem se apropria não pode ocultar os dados sobre esse autor pouco conhecido ou, mesmo, desconhecido.  Eu gosto das releituras, acho que elas têm espaço para existir. Mas também acho que quando os termos da relação são desiguais, instala-se uma questão ética. Nestes casos o risco é que os termos da relação fiquem muito desiguais. Porque quando você sabe quem fez e você quer fazer uma releitura daquilo, você pode fazer uma releitura, mas sabendo que você está carregando muitos autores junto com você. A obra popular não é uma obra que está aí para ser apropriada desta forma. Ela pode ser apropriada, usufruída. Mas os ditos integrantes das camadas médias, escolarizadas, tem certa obrigação de “cuidar” dos termos menos fortes da relação.

Se a pessoa não tem acesso a informações e tudo isso, é óbvio que ela pode fazer certas apropriações sem nem se dar conta que está fazendo. Mas, a situação é diferente para quem fez uma escola de arte, para quem tem uma trajetória no campo artístico. A releitura tem que ter uma coisa muito nova, muito própria dela. Não pode ser apenas um uso. “O meu olhar viu”. Não, não é possível que só o seu olhar possa ver. Esse olhar qualificado, externo. São muitos olhares, entre eles o do artista ou artesão que criou aquela peça. E ele não cria assim, num estalo. O artista cria também pensando, investigando, e às vezes até querendo atender o mercado. O que não deixa de ser um estímulo e que muitas vezes pode ser um estímulo positivo. Eu não acho que o mercado possa ser sempre um estímulo negativo.

As pessoas precisam sobreviver.

Lógico. Todo mundo. Qualquer artesão ou artista. E quando alguém, de qualquer meio de arte, não consegue sobreviver do seu meio de trabalho, o que vai fazer? Vai encontrar um caminho. Tem que encontrar, porque tem que sobreviver.

A produção artística popular, em determinados casos, é marcada pela dicotomia da coletividade e da individualidade. Enquanto, por um lado, observamos a manifestação cultural de uma comunidade expressa num objeto, por outro lado nós podemos ver as características peculiares que cada artesão, artista ou mestre transmite para a peça. Em sua opinião, como essas relações de homogeneidade e heterogeneidade interagem entre si? Como lidar com essa dicotomia no momento da comercialização de um objeto artesanal?

Se ficarmos restritos ao artesanato em cerâmica, madeira e ferro, de fato, quando a repetição não fizer mais nenhum sentido, ela para. Para que ela exista, precisa fazer sentido. Podendo ser um sentido distanciado da realidade. Por exemplo: barquinhos de Paraty. Paraty existe, existem os barquinhos e existem os souvenires, que são os barquinhos de Paraty. É óbvio que se você põe um barquinho de Paraty na sua estante aqui em São Paulo e você fica olhando para ele, aquele objeto te evoca memórias, te evoca lembranças, ele te evoca muitas coisas. E você não faz ideia de quem seja aquele cara ou aquela mulher que o fez. Se você tiver dez barquinhos feitos por dez pessoas diferentes, dificilmente você vai estabelecer quais são as diferenças entre os autores de tudo isso. Eles continuarão evocando para você o mar, um estilo de vida, uma maneira de ser e uma experiência de mar, de isso tudo que não tem nada a ver com a experiência de quem mora lá e que fez o barquinho.

Eu acho que, nesse caso, é um artesanato repetitivo que porta valores culturais. E no momento em que esse barquinho não falar a mais ninguém, ele não será feito, porque ele é feito para o mercado. O artesanato está mais claramente nesta dinâmica.

Já na arte popular, embora seja menos comum, há exemplos de artistas que têm autoconsciência relativa a seu desejo de “tornar-se artista”. Cito o exemplo de Manuel Galdino, de Caruaru, Pernambuco. Ao conhecer o Alto do Moura ele resolveu dar uma virada em sua vida. Decidiu: “Eu quero ser artista. Quero fazer o que esses caras fazem.” E abandona o emprego, se muda para a vila na periferia de Caruaru onde estão concentrados os artesãos e artistas. E, depois de instalado, começa a modelar, fazer coisas das quais ninguém gosta e ninguém quer comprar. Mas ele queria ser artista. E o que era para ele ser artista? Não trabalhar fixo na prefeitura, ter um estilo de vida que lhe permitisse ir à roça, voltar, pegar barro, amassar barro, conversar, ser dono do seu tempo. Ao mesmo tempo, ele era poeta e cantador. Ele gostava de se apresentar cantando em feiras. E sempre fazia uma poesia para cada obra modelada, pois a seu ver elas se complementavam. Mas, por muito tempo ele não faz sucesso. Ninguém queria comprar. Mas ele continua fazendo. Eu acho que essa é uma diferença que pode ajudar a demarcar fronteiras entre artesanato e arte popular. Mesmo que o Galdino desenvolvesse outras atividades necessárias para a sobrevivência, e que tenha tentado fazer obras parecidas com as que se vendiam, não deixou de fazer aquilo que ele gostava de produzir que eram os “bichos medonhos”, como ele chamou os seus “monstros”. Ele queria fazer bichos medonhos e é isso o que ele continuou a fazer. Mas este é o caso dele. Há que se ver caso a caso. Não existem regras gerais.

Então, existe esse indivíduo que não se rende ao mercado. Que estabelece uma plasticidade evidente na sua própria obra, um conteúdo e uma linguagem claros, inventando algo nunca existente antes dele. Então, esse indivíduo se diferencia. Mas ele continua sendo vizinho do artesão que vai fazer duzentos boizinhos para entregar no final da semana. E eles vão compartilhar do mesmo mundo cultural.

Contudo, acho que essas autorias singulares, são únicas. E não existe um grande numero de artistas singulares. Mas, não se pode afirmar que o fato de não aceitar sugestões ou encomendas seja central na definição de alguém como artista. Galdino era assim; já outro artista, o Adalton Fernandes Lopes, de Niterói, Rio de Janeiro, tinha outro gênero de relação com as demandas. Elas o estimulavam a criar coisas bem originais. Comparando-se Manuel Galdino com Adalton Fernandes podemos ver como estas diferenças de atitude convivem mesmo em artista ímpares. Adalton, o artista do movimento por excelência, que faz as geringonças ou as “obras de engenharia”, como ele dizia, não era afetado essencialmente, se podemos dizer isso, pelo fato de realizar encomendas. Ele, provavelmente, foi o artista que melhor retratou a vida do subúrbio carioca no barro. Tinha uma exuberância criativa tal que aceitava encomendas de todo mundo e inventava coisas originais para todo mundo. Ninguém conseguiu ter uma obra igual à outra. Em sua produção tudo era vivo! Tudo tinha sua marca própria. Com o passar do tempo, ele tenta incluir pessoas da família nesse fazer, o que é comum no mundo do artesanato. Por um curto período até consegue. Depois, um de seus filhos morre e este fato o atinge profundamente. A tentativa de incluir outra filha funcionou até certo ponto, mas ela se colocou como “ajudante”, ela o auxiliava, não tinha o ímpeto da criação, nem o desenvolveu ainda. Isso pode acontecer: afinal, ele era o artista, era a alma daquela história.

Temos outros exemplos. E quando digo isso penso em Nhô Caboclo, também de Pernambuco, que trabalhou na loja da Silvia Martins, galerista e importante estimuladora da arte popular pernambucana. Um dia uma irmã da Silvia foi à galeria para comprar um pássaro de Nhô Caboclo que ela tinha encomendado. Ele entregou o pássaro. Ela o olhou e disse: “Ah, eu não gostei desse pássaro. Ele está muito preto. Mude a cor dele. Coloque um verde para alegrar...” Não sei se foi este o diálogo, ouvi esta história há muito tempo, mas estou certa que foi algo assim. Nhô Caboclo a escuta e logo diz: “Esse pássaro, que a senhora está falando, a senhora é que vai fazer, não é?” Eu não o conheci pessoalmente, esta estória me foi contada pela própria Silvia. O que me leva a concluir que ele não vai fazer aquele pássaro para ela. Para ele é insuportável entrar na viagem do outro. Ele está na viagem dele. Mesmo assim, continuo achando que nem todo artista tem que ser autorreferente. Existem todos os tipos. Na esfera da vida e da arte tudo é possível.

No caso do Dadinho, por exemplo, que esculpia com a faca numa laranja. Um dia alguém viu, fez preço e comprou. Geraldo Marçal dos Reis, conhecido como Dadinho, entendeu que sua brincadeira interessava a outros: “Cara, isso aqui dá dinheiro”. É logico que foi imediata a conexão. E ele acabou por fazer cidades tentaculares incríveis. Aí, você fala “ah, o cara tem que vender para sobreviver”. Em geral não gosto dessa palavra ‘sobreviver’ ligada tão fortemente a produção popular, porque hoje existem artistas que vivem muito bem. E a sobrevivência não é desejável para ninguém. Sobrevivência quer dizer, o mínimo necessário. É bom que as pessoas vivam, que elas consigam viver bem, comer bem, ter acesso a serviços necessários, ser cotado e ser cuidado.

Esse é o mínimo necessário.

Sim. O mínimo necessário. É lógico que eu não advogo que a nossa meta, enquanto humanidade seja nos tornarmos uma hipersociedade de consumo. Acho isso um absurdo. Acho que estamos numa época confusa, complicada, de extremo consumismo. Inclusive, a arte e o artesanato também entram nessa roda.

O Museu Casa do Pontal já idealizou e organizou exposições sobre a arte popular brasileira em 15 países (Alemanha, França, Inglaterra, Espanha, Suíça, Itália, Dinamarca, Suécia, Bélgica, Eslováquia, Argentina, EUA, Índia, Portugal e Paraguai). Na sua visão, como e qual foi a receptividade dos objetos brasileiros no exterior?

Comecei a atuar como curadora de exposições internacionais há 18 anos. Neste período realizei a curadoria de exposições que fizemos na Argentina, no Paraguai, na França, na Bélgica, em Portugal e na Índia. Vejo que há algo bastante parecido na recepção de nosso acervo, seja onde for. Há um grande interesse pela arte popular. Tanto na Índia, como nos países da América do Sul, ou entre os europeus. Parece-me que essa receptividade tem a ver com o desejo de saber mais sobre o Brasil, desejo este formado a partir de algumas fantasias sobre o país, visto como um paraíso tropical habitado por um povo talentoso, aberto e acolhedor. Na Argentina e no Paraguai, a atração parece passar pela curiosidade sobre este vizinho grande e enigmático, mas também pela busca de uma identidade comum. Os europeus, por sua parte, devido inclusive a seu passado colonialista, se interessam pelos aspectos mais exóticos, pelas festas, pelas músicas, pela religiosidade sincrética. A música e o futebol também participam da criação de um imaginário um tanto quanto romântico sobre o Brasil. Além disso, ir a exposições e museus é um hábito europeu bastante consolidado. Faz parte da formação cultural que tem início na mais tenra infância. Há um interesse pela geografia do país, por sua vastidão e por conhecer o pensamento deste povo que é resultado de grandes misturas étnicas e culturais.

Há tempos passados, havia maior diferença entre o acolhimento dado a essa produção pelo público interno e externo. Há 20 anos não era grande o número dos que, entre nós, valorizavam as criações artísticas dos segmentos populares. Não que isso tenha mudado completamente. Ainda hoje vigoram preconceitos e nos deparamos com pessoas que repetem que a arte popular é sempre anônima, pessoas que não conseguem entender as maneiras por meio das quais os artistas manifestam suas individualidades.  Há muito a ser feito. É necessário cultivar o olhar, afinar a percepção. Mas hoje sentimos que há no próprio país, nas pequenas e nas grandes cidades, um público muito interessado em arte popular. Os brasileiros têm viajado mais pelo país e se perguntado mais sobre si mesmos. A universidade, sobretudo nas áreas de antropologia, antropologia visual, história, dança e teatro, tem se dedicado a entender os aspectos estéticos presentes nas festividades e em outras formas da vida social em meios populares. As mídias massivas também têm aumentado seu interesse pelo tema. O teatro, as novelas, o designers têm chamado a atenção para a forte dimensão criativa que emerge nas práticas sociais e festivas das culturas populares. Além disso, existe hoje no Brasil a percepção de que as artes populares também incluem as artes étnicas, a produção de grupos afrodescendentes, e que estas expressões dizem respeito a práticas e modos de viver e enxergar a vida que precisam ser reconhecidos e valorizados. Em resumo: acho que estamos vivendo um período de aceleradas mudanças. Imagino que o conjunto de fatores elencados acima contribuirá para que se altere a visão sobre a arte popular.

Pelo que eles mais se atraem no exterior?

Se inicialmente o que chama a atenção é o país, assim que se deparam com nossa produções, outros aspectos começam a agir.  À primeira vista chama atenção a maneira cenográfica como o acervo é exposto, a contemporaneidade da linguagem expositiva, o papel das cores e da iluminação em nossos projetos. Em seguida, se atraem pela abordagem curatorial que dá contorno e acentua a presença dos aspectos culturais ativos nas tradições, nas comunidades produtoras, no mundo artesanal, sem deixar de lado as ênfases sobre os artistas singulares, sobre os autores e as autorias.  O interesse pelo Brasil fora do país sempre foi grande. Nossas exposições, mesmo quando de pequeno porte, sempre mobilizam o público. Logicamente, depois que a pessoa chega, ocorre um enamoramento pelas obras em si, pela fascinante possibilidade de leitura deste país tão diverso que o acervo possibilita. E, ainda, pelo pensamento e pela imaginação dos artistas do povo, dos que ocupam as franjas e os espaços marginais na sociedade. Também chama bastante a atenção a maneira como os artistas se auto representam e às suas realidades. Interessam-se pelos olhares absolutamente particulares, que estimulam a imaginação e demarcam um espaço criador próprio.

E internamente?

Em relação ao público brasileiro, entre as pessoas mais simples, acontece uma adesão instantânea: porteiros, seguranças, pessoal da limpeza, gente de escritório, donas de casa, trabalhadores rurais, moradores das periferias, pequenos funcionários se identificam imediatamente com as obras e as temáticas. Se fazem parte de famílias que emigraram a identidade é grande. Entre os participantes das camadas mais intelectualizadas essa adesão também ocorre, mas se dá por outros caminhos. As pessoas entendem de imediato que ali existe algo especial. Mas como primeira classificação situam o que veem na esfera do artesanato. Talvez seja um pouco desconfortável pensar que pessoas que não têm acesso à cultura erudita escrita possam ser realmente grandes artistas. Acho que isso ocorre porque os artistas populares nem sempre dominam os aspectos discursivos referentes à sua produção. O que leva esse público a olhar para o artista popular hierarquizando em relação aos artistas da norma culta. Quando há uma evidência incontornável, preferem transformar esses “raros” em “um dos nossos”. Esse segmento costuma trilhar um caminho maior, para chegar ao reconhecimento de que criadores populares também podem ser artistas plenos. Esse caminho passa pela valorização do exótico, pela relação histórica entre as artes tidas como “primitivas” e as artes modernas e as vanguardas artísticas europeias.

E no museu, como isso se manifesta?

Quando as pessoas chegam ao Museu Casa do Pontal, elas se deparam com um universo tão rico que “esquecem” quase que instantaneamente o senso comum que associa “povo” com pobreza e “falta”. Ali, pode-se reconfigurar essas ideias. E povo vira sinônimo de potência, força, riqueza e criação. O número de obras em nossa exposição permanente também impacta. Como já disse, imagino que Jacques Van de Beuque tenha proposto esta forma expositiva numa época em que era preciso um grande esforço para que as pessoas pudessem livrar-se de estereótipos e ver com os olhos livres a diversidade da produção artística popular. Por incrível que pareça, ainda hoje há os que não conseguem reter o que é evidente: a arte popular demarca apenas e tão somente uma origem socioeconômica e cultural. Não obedece a estilos, formatos, proporções, materiais, nem estão relacionadas obrigatoriamente com formas e caracteres específicos. Não se confunde com a arte dita naif. Além disso, existem produtores em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, em Santa Catarina, em São Paulo, em todas as regiões do Brasil. A maior parte da produção artística nasce no efervescente campo do artesanato, mas vai além e ultrapassa os contornos deste campo, pois arte rompe com ideias fixas, com padrões repetitivos, mesmo que estes padrões sejam impactantes e fortemente arraigados na cultura. O artesanato tradicional é muito importante, aporta beleza e elementos culturais profundos ao cotidiano. Fala de pertencimento e permanência no território. Arte mobiliza e instaura criação sempre. Neste sentido, as exposições realizadas na GVB Galeria de Arte, espaço para as exposições temporárias localizado no Museu Casa do Pontal têm sido muito interessantes. Pois ao juntarmos arte contemporânea e arte popular, criando curadorias nas quais algum aspecto de identidade entre as obras expostas são assinalados, estimulamos certa liberdade de olhar. Ressalto a exposição Máquinas poéticas que juntou as obras e os processos do designer Abraham Palatinik e os populares Adalton Lopes, Laurentino, Nhô Caboclo e Saúba. Ou a mostra Liturgias Contemporâneas que correlacionou Farnese de Andrade e os ex-votos. A expertise técnica, a sofisticação evidente na criação das obras, mas, sobretudo, a maneira como, por caminhos completamente diferentes, pode-se chegar a resultados comuns, permite que se pense sobre processos de criação independentemente do acesso à escolaridade. Esse tipo de contato auxilia a pensar sobre o que faz fronteira entre as artes. E nos possibilita ver que muitas vezes as fronteiras são mais formais do que concretas.