Você cursou Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e colaborou em diversos projetos da Lina Bo Bardi. Além disso, você é um dos fundadores da Brasil Arquitetura e da Marcenaria Baraúna. De onde vem seu interesse pela arquitetura e pelo design? Como se desenvolveu sua trajetória nessa área?
Eu não sei exatamente quando começou o meu interesse pela arquitetura, mas sempre gostei de construção. Desde criança eu adorava frequentar obras e ver as pessoas fazendo a argamassa, mexendo com a enxada, assentando tijolo. Fui sempre muito ligado a isso. Mas naquela época pensava em ser engenheiro porque não conhecia a arquitetura.
Depois, entretanto, minha irmã mais velha veio fazer arquitetura em São Paulo, aí eu já sabia que também queria fazer esse curso. Nessa época comecei a entender também que fazer arquitetura era projetar, além de poder construir. Cabia mais sonho nessa profissão. Assim, vim para cá – como todo mundo dessa região do sul de Minas, que vem para São Paulo porque é mais perto do que Belo Horizonte. Fiz o terceiro colegial e depois entrei na FAU. Na verdade, fui descobrindo aos poucos esse mundo da arquitetura. As coisas não estavam dadas.
Sempre tive esse gosto pelo projeto, por projetar alguma coisa. Já no terceiro ano da FAU fiz uma reforma para um amigo lá em Cambuí. E, no quarto ano, fui trabalhar com a Lina Bo Bardi, quando começava o Sesc Pompéia. E, com isso, um mundo enorme se abriu. O Sesc Pompéia não era só um projeto. Eram muitos projetos: tinha um restaurante, um teatro, uma biblioteca. Era algo grandioso. E o que era mais fascinante ainda é que havia um escritório dentro da obra. Estávamos começando a fazer o levantamento dos galpões, os cadastros, e já tinha operário trabalhando, descascando parede, demolindo coisas. Então, eu caí dentro desse mundo de uma maneira total. E, aí, não teve mais como sair dele. Não tinha mais volta.
E paralelamente, no último ano da FAU, em 1978, quando eu já trabalhava no Sesc como estagiário, eu e um grupo de amigos participamos de um concurso para o projeto do Paço Municipal de Cambuí, em Minas, e ganhamos. No fim, esse concurso foi um pouco a origem do Brasil Arquitetura. Abrimos o escritório em 1979. E o trabalho com Lina, até sua morte em 1992, correu em paralelo o escritório do Brasil Arquitetura. Depois de seis anos de funcionamento do Brasil Arquitetura, nos encorajamos e abrimos a Marcenaria Baraúna, em 1986 - justamente no ano que terminamos a obra do Sesc. Tivemos muito o incentivo da Lina nessa empreitada.
E assim, a partir desse momento, o Brasil Arquitetura vai andando junto com a Baraúna. O Brasil Arquitetura começou com cinco arquitetos. Alguns tiveram que sair, mas eu, o Francisco e o Marcelo Suzuki continuamos e abrimos a Baraúna juntos. O Marcelo Suzuki ficou até 1995, depois decidiu trabalhar sozinho.
Quais foram as características da arte
moveleira que mais contribuíram para que você se interessasse por essa área?
Posso dizer que a arte moveleira foi mais uma descoberta ligada ao trabalho desenvolvido no Sesc Pompéia. Lá, ao desenharmos e executarmos alguns projetos, ficamos próximos de muitos marceneiros e carpinteiros. E eu achava tudo isso muito fascinante porque entre o mobiliário e a arquitetura civil de alvenaria existem elementos muito diferentes. O detalhamento do mobiliário é mais refinado, por exemplo. Você tem que mergulhar e se aprofundar mais no projeto. E, além disso, o móvel fica pronto mais rapidamente do que a arquitetura como um todo. Então, ao projetar um móvel, você pode experimentar uma cadeira, ver se ela funciona. Rapidamente ela fica pronta – diferentemente de uma casa, que leva um tempo.
Com o trabalho do Sesc, então, nos entusiasmamos e resolvemos juntar um pouco de dinheiro para comprar algumas máquinas. Nós também pegamos o marceneiro-chefe do Sesc que estava na obra. Ele topou ser o nosso encarregado. Assim, começamos com três ou quatro pessoas. Ter a marcenaria junto com o escritório de arquitetura tem sido muito útil. Independente das dificuldades financeiras, a questão da proximidade traz fatores positivos.
O convívio com a Lina Bo Bardi influenciou,
de alguma forma, o desenvolvimento do seu trabalho em projetos de arquitetura e
design?
O convívio com a Lina foi um período de uma colaboração longa, de quinze anos e de trabalho diário e constante. Então, superava até mesmo as questões do trabalho e entrava na área da amizade. Em primeiro lugar, tínhamos uma amizade muito forte, muito grande. Ela foi madrinha do meu filho e sempre frequentávamos a casa um do outro. Então, existia uma amizade muito grande que superou a questão do trabalho.
E no trabalho, posso dizer que ela se dedicou muito a nós: a mim, ao Suzuki e ao André. Porque, diferentemente de um escritório comum, onde você tem os estagiários e os colaboradores, onde você passa o dia atendendo telefone, com ela havia uma dedicação muito maior e variada. Não ficávamos na mesmice. Trabalhávamos com a botânica, com a estrutura, com antropologia. Esforçávamo-nos para entender as pessoas, entender as coisas. Isso é a lado mais bonito da arquitetura. Não tem monotonia, não tem mesmice. E você tem que enriquecer seu repertório a vida inteira. Não adianta ter 30 anos de arquiteto, ou 35, como a gente. Ás vezes, tenho que, de repente, ligar para um amigo que é botânico para descobrir o nome de uma determinada grama. Isso é muito bom. É uma profissão que abre um leque de busca, de procura, de conhecimento. Acho que todo arquiteto deve ser curioso.
Então, acho que esse convívio, mas do que influencias ou lições formais de arquitetura, forneceu uma nova maneira de encarar o problema que é colocado por um projeto. O modo de trabalhar da Lina, nesse sentido, era muito interessante. Era um modo de olhar na totalidade de um objeto, de um assunto, de um tema. Então, ao fazer um projeto de um teatro em Piracicaba, por exemplo, você vai entender o lugar do ponto de vista físico, do ponto de vista geológico, paisagístico, botânico e tudo o mais. Mas também você vai entender do ponto de vista humano. Vai entender o que é a história de Piracicaba, como são as pessoas. Isso tudo, porém, com um objetivo: criar coisas na e para a atualidade, que é outra coisa que a Lina fazia questão e que a gente também tenta fazer.
Você pode olhar para tudo o tempo todo: para outros períodos da arquitetura, para a arquitetura japonesa, para coisas do passado, coisas de outro continente, coisas que aparentemente são distantes. Mas, tendo em vista a construção de um projeto para os dias de hoje; o seu projeto precisa servir para as situações atuais. Além disso, tem que ser durável, porque a arquitetura não é uma coisa perecível. Não é uma coisa que você faz e joga fora. O pensamento tem que ter um longo prazo. Tem investimento social, tem custo. Não é uma brincadeira. Mesmo enquanto obra de arte, não é uma coisa descartável, que você faz individualmente. Você pode até fazer um projeto e não mostrar para ninguém. Mas aí é um exercício íntimo e seu. Na arquitetura, quando ela vira construção, o envolvimento é social. Não é como escrever um livro e não publicar, ou pintar um quadro e rasgar. Você não é mais o único protagonista. A arquitetura lida com equipes. É um trabalho coletivo. Um trabalho de muitos.
E isso é também outro exercício muito interessante para entender que o arquiteto não é um ser que domina tudo e faz o que quer e o que gosta. Ele tem que lidar politicamente com diversas coisas – desde uma mudança numa obra porque o terreno não é mais aquele, até porque mudou o prefeito, mudou o reitor, ou mudou a vontade do cliente. Você tem que lidar politicamente com essas coisas tentando fazer o melhor. Às vezes você tem uma ideia, mas tem que sacrificar partes dela porque naquele momento não é possível realizar tudo aquilo. E sempre procuramos chegar num projeto que seja o limite daquilo que você pode transigir e ceder. Há um ponto em que temos o limite da qualidade das coisas: da qualidade da arquitetura enquanto serviço, enquanto obra para os outros. Então, também é necessário saber o momento de dizer “bom, daí para frente, não vamos mais; não há como avançar”.
A arquitetura não se resume somente a obra
física. Há uma série de outros fatores correlacionados.
Pois é. E isso também é interessante. Porém, tem muito arquiteto que não acha legal trabalhar dessa maneira. Lembro que um estudante de arquitetura de um grupo de estudantes da FAU, da revista Contexto, fizeram uma entrevista longa comigo e com o Chico. E, num certo momento, falei dessa questão de que você na maioria das vezes “está na chuva” – principalmente quando faz um projeto público. Quer dizer, o governador mandou mudar o projeto e você tem que ficar lá segurando a sua ideia de maneira forte, preservando a qualidade do projeto. E isso é fazer política, no melhor sentido da palavra. Você tem que convencer as pessoas. Você deve ajudar o cliente a decidir onde ele vai investir, se ele deve cortar alguma coisa, mudar algo, etc. Então, é um trabalho de indução, de sedução.
Assim, durante a
entrevista, falei dessas atividades que consomem às vezes mais de 50% do tempo.
É um percentual grande do trabalho nosso. E o menino ficou muito decepcionado.
Ele falou “estou estudando arquitetura, porque eu acho que quando me formar vou
ser um arquiteto capaz de receber um programa e projetar uma casa, um teatro,
um hospital. Eu não quero fazer isso. Eu não estou estudando para isso”. Na
verdade, acho que ele pintou uma profissão que quase não existe. Porém, entendo
o que ele quis dizer, porque nos EUA a postura dos arquitetos é muito baseada
na ideia de que “eu detenho um certo saber; me faça uma encomenda que eu te
devolvo um projeto pronto para a construção”. Na minha opinião, isso é uma
visão pobre e especializada da arquitetura – no mal sentido da palavra
“especializada”. Assim você vai virar um carimbador de coisas.
Não envolve nenhuma barganha.
É. Prefiro ser um arquiteto que transita num mundo nada monótono, politicamente agitado.
No site de vocês diz: "Na Baraúna,
projetamos móveis ‘de arquiteto’. Os raciocínios, os conceitos, o modo de
abordar cada questão são os mesmos adotados nos projetos de edificação ou de
urbanismo". Vocês ainda dizem que produzem "móveis sem bagaços, sem
sobras". O que isso quer dizer? Qual são as principais características dos
móveis que vocês produzem?
Nós sempre tivemos muita dificuldade em vestir o termo “design”. “To design” significa projetar, mas no Brasil a palavra perde um pouco esse significado. Aqui encontramos até lojas de design. Mas o que vende uma loja de design? Produtos? Não, não é. Então, temos algumas restrições na utilização desse termo. E na arquitetura, que é uma disciplina muito grande e abrangente, acho que podemos projetar em todas as escalas. Por isso que eu disse que projetamos móveis de arquiteto. Somos arquitetos e projetamos móveis e luminárias, se for preciso. Projetamos coisas que encaram os problemas impostos pelo projeto e apresentam soluções. Nos dedicamos a resolver principalmente problemas ligados à organização do espaço.
Porém, como é que você lê isso no móvel? Você lê pela honestidade no trato dos materiais. Nada que você vê é falso. Evitamos os revestimentos, os recobrimentos, não escondemos os encaixes, os apoios, as sobreposições. Isso está muito evidente. Você olha para o móvel e vê como ele foi construído. Você vê a madeira que passa para um lado, qual suporta a outra, qual que descarrega esforço na outra.
Isso, no fundo, é um fundamento da arquitetura: a questão da economia de recursos, a economia de material, economia de meios para construir alguma coisa. Você não precisa construir uma casa com excessos, mesmo que ela seja luxuosa. É necessário trabalhar com a estrutura no limite da economia. Uma cadeira você faz com três ou quatro pés, e não com vinte – você pode até fazer, desde que tenha uma justificativa do porquê daquilo.
Então, esse fundamento da arquitetura, de trabalhar de forma econômica em todos os aspectos do projeto, é o que aparece no mobiliário da gente. Nós não procuramos diferenciar a arquitetura de uma casa, de um edifício ou de um móvel, de um banquinho. Assim, nesse sentido, é um móvel de arquiteto.
Em agosto de 2011, a arquiteta Mariana
Wilderom, que trabalhou por quatro anos na Baraúna, publicou um artigo
na revista online Veneza sobre a relação entre o popular e o moderno no campo
do design de móveis brasileiro. Nesse texto ela diz que: "Na produção do
design brasileiro, há uma tendência expressiva de vincular o discurso do
projeto e de seus atributos estéticos às raízes culturais, aos materiais e
tradições artesanais. O que poderia ser visto como uma busca pela identidade
brasileira no design pode também ser lida como um eco, um hábito
confortável". Como você avalia essa afirmação? Na sua opinião, qual é a
relação entre o popular e o moderno no design brasileiro?
Eu gosto muito quando ela utiliza o termo “confortável” nesse trecho porque quando a gente entra na zona de conforto, deixamos de ser reflexivos, de pensar e de enfrentar questões novas, de problematizar o que é necessário para um projeto. Na hora que alguém reproduz e repete soluções ad infinitum, entramos num ambiente de preguiça intelectual. E, na minha opinião, não temos o direito de sermos preguiçosos intelectualmente, porque senão começamos a desprezar toda a possibilidade da criação. E a criação é justamente recriar: seja em cima das coisas que você já fez; seja em cima das coisas que os outros fizeram. No fundo é isso. A recriação é uma interpretação nova. São respostas (que não são necessariamente as já dadas anteriormente no passado) para as novas necessidades que chegam.
E em relação à arquitetura e arte popular, acho que existe um pouco de forçação de barra e um pouco de exagero quando as pessoas tentam carimbar ou rotular os trabalhos desenvolvidos por essas áreas. Muitos dizem: “Ah, é ligado à questão brasileira, à cultura brasileira, ou isso e aquilo”. Enquanto tem outros que dizem: “Eu faço um móvel muito ligado à cultura popular, à arte popular brasileira”. Eu não vejo como fazer isso. Ou você fica repetindo aquilo, ou é mentira, porque fazemos coisas que beberam nas mais diversas fontes.
Eu até acho que o que a gente faz hoje tem muito mais a ver com a Bauhaus; tem muito mais a ver com todo o movimento moderno do que com um banquinho que está sendo feito ali na Serra da Mantiqueira, onde eu fui, visitei e escrevi um livro. Na época, o meu interesse era justamente encontrar naquele banquinho, talvez, um racionalismo tão incrível, uma forma racional de construir tão incrível quanto aquilo que eu tinha visto quando estudei a Bauhaus. Isso é uma coisa interessante de ver, porque as formas e as soluções construtivas são usadas enquanto soluções para a atualidade, não para a reprodução estilística. Porém, o risco de você cair numa questão estilística, que eu coloco como secundária, até nefasta, é muito grande.
Então, acho que é uma falácia dizer que eu faço uma arquitetura ou desenho móveis inspirados na cultura brasileira. Eles são brasileiros principalmente porque nós somos brasileiros, a nossa formação é brasileira, nós gostamos desse país, trabalhamos nesse país, etc. Somos basicamente e fundamentalmente brasileiros. Nossas referências são prioritariamente as que estão no nosso entorno, que é o mundo brasileiro. Mas nada impede de vermos uma coisa incrível lá na Finlândia e falar: “Puxa, eu vou fazer esse móvel aqui porque eu consigo encontrar uma função para ele no meu mundo”. A questão da função é muito importante. Em arquitetura e em design, a funcionalidade das coisas é o objetivo final do trabalho.
Não adianta ser somente belo. Tem que ser
funcional.
Exatamente. Não adianta mesmo. E mesmo um quadro pintado por um artista tem uma função muito forte: de causar um espanto, de causar uma surpresa, de causar uma emoção, de causar uma raiva. Isso tudo é e possui uma função.
Portanto, na sua opinião, essas fronteiras
entre o popular e o moderno são bem fluidas, já que elas bebem de diversas
fontes?
Acho que essas fronteiras nem existem. Na verdade, acho perverso quando se cria os carimbos “arte popular”, “arte moderna”, arte isso, arte aquilo. Arte é arte. O professor Bardi já dizia isso há muito tempo. Quando ele criou o MASP, em 1947, falou que o espaço iria se chamar Museu de Arte de São Paulo. Com isso, os outros perguntaram: “Mas não é museu de arte moderna? Não é museu de arte antiga?” Ele falou “Não. Arte para valer, em qualquer época, é arte. E ela dura eternamente”.
Considero essas classificações perversas porque elas estão ligadas a uma questão de isolamento de classes sociais, inferiorizando um determinado setor da sociedade. É claro que na arte popular você tem pessoas que não estudaram, que receberam conhecimento via oral, transmissão de conhecimento familiar. Tudo isso acontece nesse mundo chamado “popular”. Mas, por acaso aquilo não foi registrado, aquilo não foi escrito, aquilo não virou compêndio, aquilo não virou regra, livros, normas. E existe o mundo da cultura chamada “erudita”, que é essa que estuda, que faz a música clássica, que escreve os livros, a grande literatura. Esse sistema é assim desde que o mundo é mundo. Você tem esses polos, mas em vários momentos essas coisas estão absolutamente intrincadas e abraçadas. Quando isso acontece, temos momentos felizes na história. Esses momentos ocorreram principalmente quando as vanguardas aparecem no começo do século XX, como as vanguardas russa e francesa. Isso na arte americana é uma coisa fortíssima também. No Brasil, esse fenômeno ocorreu no momento da Bossa Nova, da Tropicália, quando as barreiras entre as áreas foram rompidas.
Em 2009, o blog da Marcenaria Baraúna
publicou um texto
que diz que um dos pontos fortes da produção moveleira nacional está na
diversidade das madeiras brasileiras e no tratamento especial que é dado ao
móvel durante o processo produtivo. No texto, esse “tratamento especial” é
caracterizado pelo “uso de máquinas aliadas à mão-de-obra artesanal”. Qual é a
importância de se ter um cuidado especial com o trato da madeira? Por que e
como a mão-de-obra artesanal agrega valor ao móvel?
O Brasil é um país que tem uma infinidade de madeiras. Na verdade, uma infinidade de árvores. Uma brincadeira que a gente faz é que o Brasil não tem muitas madeiras, mas tem muita árvore. Por que essa brincadeira? Porque a gente ainda não tem o conhecimento profundo dessas madeiras. Temos madeiras muito fortes, muito aptas a funções diferentes, mas ainda precisamos descobrir o comportamento e o emprego mais adequado de cada uma.
É claro que existe muita coisa que a gente já sabe - qual madeira funciona para uma cadeira, para uma mesa, para um barco, etc – mas ainda precisamos desenvolver mais esse conhecimento. Isso é uma coisa que a gente pode aprender muito com os índios, por exemplo. Ou com os matutos em todos os rincões do Brasil, que tem o conhecimento sobre a madeira ideal para fazer uma cerca, para fazer uma porteira, para fazer um barco e tal. Porém, esse conhecimento às vezes é desprezado. Deveríamos beber nessas fontes.
E ainda temos um campo muito vasto para avançar na indústria. A indústria nacional de móveis deu um salto e começou a produzir muitas coisas de modelo europeu, de modelo americano. Lá sim eles têm pouquíssimas madeiras, mas as dominam completamente, sabem o comportamento e a utilidade de cada uma delas. Na Finlândia, um dos países que mais conhece madeira, só há cerca de sete tipos de árvores, mas eles sabem usá-las de uma forma ampla e total.
Desse modo, ainda precisamos aprender muito em relação à madeira. E os artesãos, de tanto trabalhar numa marcenaria ou por transmissão do conhecimento familiar, possuem grandes conhecimentos sobre essas madeiras. Ao manusear o material eles já sabem falar se a confecção do produto com aquela madeira vai dar certo ou não. Existe até um termo muito comum que eles usam, que é “tirar a força da madeira” – quando você risca no sentido contrário da fibra, o que provoca o enfraquecimento da madeira. São questões que estão na engenharia, na estrutura e no conhecimento do material – coisa que na faculdade de arquitetura a gente deveria aprender mais.
Então, esses artesãos são os que vão saber fazer o bom acabamento e ter esse cuidado. Fora do círculo das produções europeias, australianas, americanas e canadenses, o marceneiro brasileiro continua sendo aquele artesão que trabalha a madeira com as mãos. E, assim como um cozinheiro, ele vai experimentar e vai testar o objeto, tendo um cuidado super artesanal.
A Marcenaria Baraúna pode ter vinte operários, mas preserva características artesanais. Temos um cuidado obsessivo com o acabamento final, com as medidas, com os encaixes. No final, com o tato, verificamos se o produto ficou bom ou não. Então, o processo continua bastante artesanal.
O texto também diz que esse “tratamento
especial” fez com que os móveis brasileiros ganhassem “destaque no exterior,
por suas soluções criativas e visual rico”. Na sua opinião, como esse
“tratamento especial” singulariza a produção moveleira do Brasil e proporciona
esse reconhecimento internacional?
Alguns designers, arquitetos e desenhadores de móveis, como Joaquim Tenreiro, Lina Bo Bardi, Sérgio Rodrigues e José Zanini Caldas, fizeram móveis que, de certa maneira, contribuíram para a imagem do mobiliário brasileiro no exterior e vieram falar um pouco diferente do que se fazia na Europa. Apesar de que todos eles beberam muito nos movimentos europeus de vanguarda, como a Bauhaus e com todo o movimento da Escandinávia, principalmente. Não é possível dizer que um designer brasileiro que trabalha com madeira não tenha em algum momento olhado ou bebido na fonte de Alvar Aalto e companhia, porque acho que ali tem um requinte e uma sofisticação que para nós foi uma lição. Não dá para dizer que Sérgio Rodrigues existiu sem os móveis dinamarqueses. Então, existe esse racionalismo desenvolvido na Europa que aqui acontece de uma maneira diferente, principalmente pela madeira diferente e pela mão de obra.
Agora, fora isso, não acho que hoje o design brasileiro de móvel conquista a Europa e o mundo. Acho que a gente tem uma produção interessante em muitas áreas da arte, mas na parte de móveis, especificamente, eu tenho dúvidas sobre essa suposta conquista brasileira. Na minha opinião, a questão mundial de móveis passa pela indústria, mesmo. E a madeira é uma sofisticação que ocupa um nicho muito pequeno. Mesmo hoje, na Europa e nos EUA, as galerias estão interessadas nesse vintage, que é o móvel do Joaquim Tenreiro, por exemplo.
Hoje tem muito designer famoso, da minha geração ou até mais jovem, que faz sucesso no exterior. Mas acho que a gente tem que esperar o tempo para dizer se é para valer ou se é algo perecível. Se logo mais vai se afundar na água.
Faltaria certa inovação, portanto?
Sim. Falta mergulhar profundamente nos nossos materiais. Conhecer o que a gente tem disponível e fazer mais experiências aliadas à indústria, à tecnologia. Deveriam existir diversos IPT’s em cada grande cidade. E isso deveria estar muito ligado à indústria brasileira. Porém, isso não acontece. A indústria brasileira fica copiando coisas europeias, ou importa diretamente, traz as patentes, traz os materiais, traz tudo. Então, acho que falta pensar mais nesse desenvolvimento. É quase como uma questão esquizofrênica.
Ao longo das entrevistas, percebemos que o
conceito de design é entendido de maneira muito variável pelos profissionais da
área. Na sua visão, o que é design?
O design é o que a palavra quer dizer em inglês: projetar. E eu gosto de usar o termo “projeto” no Brasil com essa riqueza da palavra design do inglês. No fundo, design para mim é projetar abarcando tudo o que cabe dentro do um projeto. Projetar é ver adiante. E para você ver adiante, se torna necessário enriquecer a sua visão. Você tem que vislumbrar, ver e entender. Quando estamos projetando, temos que ter a capacidade de ver aquela ideia pronta ou já em funcionamento dentro do espaço que lhe foi designado. Isso é projetar: ver através do espaço idealizado e dos materiais. Isso é design.
Então design, ao meu ver, significa aquilo que você carrega consigo: que não é só a sua escola de arquitetura, mas é a sua vida inteira, a sua infância, sua adolescência. É tudo aquilo que você usa e que te ajuda a ver uma coisa que ainda não existe. E ver de uma forma construtiva. Quer dizer: como é que aquilo que ainda não existe pode virar uma realidade? Além disso, o design deve ser absolutamente funcional. Ele tem que atender a funcionalidade que veio na encomenda. A questão da funcionalidade e do uso é que guiam tudo o que você vai projetar.
Em dezembro de 2014 Lina Bo Bardi
completaria cem anos. Para homenageá-la, o Instituto Bardi promoverá, a partir
de agosto de 2014, várias exposições, publicações, filmes e encontros. No texto de
apresentação desse evento, o Instituto Bardi menciona que Lina, "apoiada
pelos seus jovens colaboradores, Marcelo Ferraz, André Vainer e Marcelo Suzuki,
produziu projetos que apontavam para uma renovação da arquitetura brasileira,
então um tanto acomodada pela falta de oxigênio cultural dos anos da
ditadura". Qual é a situação da arquitetura brasileira na atualidade? Na
sua opinião, estamos acomodados e precisamos de uma renovação ou estamos
caminhando num bom sentido?
A Lina realmente apontava muitos caminhos. Essa descoberta do trabalho da Lina, que está sendo feita praticamente depois da morte dela, nos últimos vinte dois anos, vem sendo promovida cada vez mais. Com a crise econômica de 2008, cai um pouco a máscara dessa arquitetura do star system europeu e americano, de uma arquitetura feita com muito dinheiro e pouco se importando com a realidade de cada lugar; projetos que você tira daqui e põe ali.
Então, nesse momento de crise, a arquitetura do star system, feita por estrelas da arquitetura, é desmascarada. E aí a obra Lina passa a ser bastante procurada, porque ela justamente trabalhava com aquilo que todo arquiteto deve trabalhar: o que você tem nas mãos, do ponto de vista de dinheiro, material e realidade. Então, acho que sua obra ainda tem muito a dizer, muito a contribuir. E eu faço questão de dizer: não pela questão formal, mas pelo modo de fazer. E Lina, pelo próprio modo como olhava para o mundo, deixava bem claro que temos que encarar nossa realidade dando respostas adequadas ao que enxergamos no nosso contexto. A Lina, por exemplo, não construía só com concreto. Ela tem projetos variados, com materiais variados e situações variadas.
O que a interessava, e que ela deixou inclusive escrito em seus textos, é que a arquitetura é um serviço social. Fazemos arquitetura para servir ao homem, à humanidade, para melhorar o mundo e para trazer conforto. Acho que isso é uma coisa muito importante e talvez esse deva ser o lado mais importante a ser ensinado aos jovens arquitetos e estudantes de arquitetura.
Hoje em dia, vejo os jovens bastante interessados. Muitos deles tem uma ânsia, uma sede imensa em querer fazer coisas, querer ser úteis, querer mudar. Falo isso com base nas palestras que eu dou no Brasil afora. Um fator bom também que é a crise urbana chegou a tal ponto que hoje, infelizmente, os dirigentes, políticos, e administradores começam a levar em consideração a importância do urbanismo e da arquitetura para o planejamento das cidades.
Hoje o tema “cidade” entrou na pauta – de forma supertardia, mas entrou na agenda. É impossível um prefeito não se preocupar com a questão da mobilidade, com questão de saneamento, água, preservação de mananciais. As cidades continuam péssimas. As grandes cidades, então, nem se diga. Para invertermos esse quadro, vai demorar muito tempo e vai ter que ter muito trabalho, muita criação, muita invenção, muito esforço e muito dinheiro.
Eu fico pensando, por exemplo: você vai a Salvador e anda em volta do dique do Tororó, que é lindo. Mas você olha em volta e vê a cidade com uma aparência de favela, em volta do Fonte Nova. Ali você tem desconforto, você tem insalubridade, promiscuidade. Você não tem condições mínimas razoáveis de habitabilidade, de decência. Então, não é para louvar e achar que a periferia e a favela é uma coisa fantástica e que vai nos dar muitas lições. Antes de dar lição, ela carrega muito problema. E eu acho que o desafio maior para os arquitetos jovens e futuros será transformar essas favelas em cidades para valer. Isso é uma grande tarefa a ser feita.
Eu vejo em muitas capitais bons projetos e bons jovens arquitetos. Mas vejo também arquitetos, principalmente os jovens, sufocados. Sucumbindo (não porque querem, mas pela pela necessidade de sobrevivência), à pressão das incorporadoras e das construtoras. Então, ficam reproduzindo edifícios de má qualidade, por exemplo, os edifícios de luxo que roubam a frente do mar – como é a frente marítima de Recife em Boa Viagem; veja o está acontecendo em Salvador, em Fortaleza, em Natal. Então, acho que essa arquitetura nefasta e predadora subjuga muitos jovens arquitetos e muitos talentos, que não têm saída e ficam por aí, ou então vão para a universidade dar aula, fazer pesquisa, fazer vida acadêmica.
E para o futuro, quais são as prioridades
em seu trabalho nas áreas de arquitetura e design?
É continuar trabalhando com a equipe de colaboradores do Brasil Arquitetura e da Marcenaria Baraúna, que são apaixonadas pelo que fazem. Também quero continuar fazendo uma arquitetura que seja descente, que seja digna das pessoas que vão usar e que, quem sabe, possa até servir para alguns exemplos, para algumas soluções. Mas a gente trabalha com a mesma garra não importando a escala do projeto: sendo um grande museu ou uma casinha.
Em suma, portanto, o plano é continuar fazendo do trabalho uma fonte de prazer, nunca deixando que ele nos sufoque.