ENTREVISTA
INDRASEN VENCATACHELLUM
Publicado por A CASA em 4 de Dezembro de 2014
Por
Ivan Vieira

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“O artesanato é um componente essencial do legado cultural intangível de um país”
Indrasen
Vencatachelum é coordenador da RIDA (Rede Internacional para o
Desenvolvimento do Artesanato) e, de 1988 a 2008, foi diretor do
Programa da UNESCO para a Promoção do Artesanato e Design.
Você foi diretor do Programa da UNESCO para a Promoção do Artesanato e Design. Além disso, deu início ao "Plano de Ação de 10 anos para o desenvolvimento do artesanato no mundo" e lançou o "Prêmio UNESCO de Artesanato" para a África, Ásia, Países Árabes e a América latina. Atualmente você trabalha como coordenador da RIDA (International Network of Consultants for Craft Development). Conte-nos um pouco dessa trajetória. Como e por quê você seguiu esse caminho?
Primeiro, devo esclarecer que não fiz cursos nem me preparei para empreender essa longa e fascinante jornada no campo do artesanato. Minha trajetória acadêmica, na verdade, começou na literatura e no teatro. O meu interesse por artesanato surgiu em 1980, quando fui encarregado da cooperação cultural no Instituto Cultural Africano, uma organização intergovernamental baseada em Dacar, no Senegal. Nas minhas viagens para os países ao Sul do Saara, fui aos poucos descobrindo a diversidade e a riqueza do artesanato africano, percebendo o maravilhoso potencial do setor do artesanato e também os problemas enfrentados pelos artesãos. Embora o impacto dessa descoberta não possa ser comparado ao que me inspirou a arte cubista de Pablo Picasso, certamente influiu muito na minha carreira profissional.
Minha primeira iniciativa para desenvolver esses potenciais e difundir mais a criatividade dos artesãos africanos foi o lançamento de uma coleção de trabalhos intitulada "O Artesanato tradicional na África Negra". Baseada em um levantamento sistemático de materiais e técnicas dos artesãos e suas produções em cada país, a ideia era proporcionar uma fonte de material para diversos grupos de interesse: promotores do artesanato, artesãos em busca de inspiração, pesquisadores, diretores de museus e professores. Com financiamento do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), foram publicados cinco volumes dessa coleção - sobre Benin, Burkina Fasso, Costa do Marfim, Nigéria e Togo - durante meu mandato no Instituto. Também iniciei uma série de oficinas para aperfeiçoar as habilidades, onde grupos de artesãos de países vizinhos poderiam trocar ideias e experiências como forma de melhorar seus produtos e suas vendas.
O seguinte estágio importante dessa jornada de descoberta foi, naturalmente, minha nomeação em 1987 para a sede da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em Paris, como especialista de programas no setor de Promoção Artística. Rapidamente percebi que em todas as regiões havia necessidade e demanda por um programa específico para o desenvolvimento do artesanato, e que eu poderia usar a minha experiência africana para preparar um programa desse tipo. Daí surgiu a iniciativa de lançar o "Plano de Ação de 10 anos (1990-1999) para o desenvolvimento do artesanato no mundo".
Pela primeira vez, todos os estados membros da UNESCO, Organizações Regionais e Internacionais - intergovernamentais e ONGs - envolvidas no setor do artesanato tinham um marco comum para suas intervenções. De fato, o Plano veio de encontro à necessidade urgente de uma visão mais ampla para os projetos de desenvolvimento do artesanato, de modo a evidenciar seu impacto cultural, social e econômico. Essa visão integra os componentes de formação, a promoção de produtos autênticos e de alta qualidade e sua adaptação às necessidades em constantes mudanças da sociedade. A sua implementação exigia atividades coesas, bem articuladas e complementares.
Quanto ao Prêmio UNESCO de Artesanato, lançado em 1990, o objetivo era reconhecer pessoas criativas no artesanato, que no melhor dos casos poderiam ter algum reconhecimento, mas raramente eram vistas como "personalidades" em seus próprios países. Na verdade, fiquei atônito ao ver a enorme brecha existente entre o talento de artesãos criativos e seu reconhecimento pela sociedade. Os artesãos são criadores de beleza - e de renda - mas não usufruem do status social e da proteção que merecem. Em comparação, é de impressionar que no mundo da cultura de massa global as "estrelas" do dia - sejam elas celebridades do cinema, música ou futebol - são idolatradas de modo desproporcional ao seu papel criativo na sociedade.
Com o passar dos anos e o número crescente de artesãos criativos na África, Ásia e Países Árabes, tornou-se evidente que um prêmio concedido a cada dois anos para um continente inteiro não era adequado. Portanto, com o objetivo de ampliar o reconhecimento dos artesãos criativos inovadores, o Premio UNESCO de Artesanato deu lugar, em 2001, ao "Prêmio UNESCO de Excelência para o Artesanato". Esse prêmio está organizado em nível de várias sub-regiões, como o Cone Sul na América latina.
Depois de minha saída da UNESCO em 2008, continuei envolvido nos projetos e programas de fomento do artesanato nos países em desenvolvimento e nos países em transição na qualidade de consultor independente. A ideia de criar a RIDA (Rede internacional para o desenvolvimento do artesanato) surgiu dessa mesma vontade de continuar o intercâmbio de ideias, informações e experiências com os especialistas em artesanato que conheci e com quem trabalhei nas várias regiões do mundo.
A UNESCO tem trabalhado para fomentar a criação de modelos para o desenvolvimento do artesanato, através do Prêmio UNESCO de Artesanato, do Prêmio UNESCO de Excelência para o Artesanato, do Simpósio-Oficina Internacional sobre tinturas naturais e o Design 21, por exemplo. Como avalia essas iniciativas? Em sua opinião, elas foram bem sucedidas?
Demandaria muito tempo falar dos inumeráveis casos de sucesso das iniciativas que você citou. Mas alguns exemplos da carreira dos primeiros laureados com o Premio UNESCO de Artesanato (1990-1992) podem ser úteis: Aissatou Dione (Senegal) tornou-se tão famosa na África e no mundo com sua linha de tecidos para decoração e malas, que em 1998 ela presidiu o juri do Premio. Desde 1992, Maximo Laura, do Peru, foi premiado em mais de 15 festivais bienais internacionais de arte têxtil e suas tapeçarias são exibidas nos principais museus e galerias particulares da Europa e dos EUA. Kong Thong Nanthavongsdouangsy (Laos) criou a agora famosa Galeria Phaeng Mai, em Vientiane, e trabalhou como consultora em um projeto de tecelagem para o Fundo Save the Children, da Austrália; e suas suntuosas echarpes e almofadas de seda são vendidas em lojas e galerias da Ásia, Europa e EUA.
Através dessas atividades originais e de muitas outras no campo da formação de capacidades, promoção e marketing, pesquisa e publicações, a UNESCO se destaca hoje como a única organização internacional com uma visão global do papel sociocultural e econômico do artesanato na sociedade. Acho que podemos supor que essa ampla gama de atividades ajudou a evidenciar as conexões do setor do artesanato com muitos outros setores de desenvolvimento e questões transversais: arte e formação vocacional (para o emprego de jovens); meio ambiente (uso de materiais sustentáveis/reciclados); patrimônio e turismo (especialmente cultural, criativo e ecoturismo); comércio; igualdade de gêneros e desenvolvimento. O crescente interesse das agências de cooperação pelo setor do artesanato deve-se ao papel crucial que as pequenas e médias empresas têm na economia dos países em desenvolvimento ou em transição. A nível nacional, podemos observar uma conscientização cada vez maior da contribuição potencial do artesanato e dos artesãos para a geração de emprego e renda. Além do mais, o apoio ao artesanato está se tornando um caminho obrigatório para o alívio da pobreza, uma preocupação significativa e urgente em todo o mundo.
A ironia trágica disto é que em anos recentes a UNESCO deixou de lado seu papel de organismo líder, exatamente no momento em que a sua campanha para a maior conscientização da importância do artesanato no desenvolvimento sustentável, alimentada desde 1988, começa agora a dar frutos em toda parte, especialmente no contexto da recessão econômica mundial.
De acordo com o Simpósio Internacional da UNESCO/ICT intitulado O Artesanato e o mercado internacional: comércio e codificação aduaneira, "a natureza especial dos produtos artesanais deriva das características que os distinguem, que podem ser utilitária, estética, artística, criativa, culturalmente vinculada, decorativa, funcional, tradicional, de simbolismo e de significância religiosa e social." No seu entender, de que maneira a produção artesanal expressa essas atribuições? E de que modo os artesãos podem preservar essas características e suas tradições em um mundo globalizado e industrializado?
Primeiro, gostaria de relembrar que essa definição de produtos artesanais foi acordada em 1997 pelos especialistas e promotores do artesanato dos cinco continentes e hoje, 17 anos depois, é a mais comumente empregada no mundo inteiro. Assim, de certa forma, essa é uma outra medida do sucesso do programa da UNESCO. Nesse ponto, estou feliz - e orgulhoso - de citar a avaliação de Adélia Borges: "Em termos de consistência, essa definição está anos-luz à frente de outras mais comuns".
Também vale a pena especificar que essa ampla gama de características dos produtos artesanais é o resultado de um consenso, levando em consideração as inquietações especificas de algumas regiões: por exemplo, a significância religiosa para a região árabe e o símbolo de vinculação cultural para os artesãos da América latina. Além disso, o fato de que um produto feito à mão carrega valores culturais e pode servir a diversos fins, é exatamente o que distingue esse produto de um industrializado, padronizado. Um tapete tradicional do Uzbequistão é utilitário no lar de um residente local e pode ser exposto como peça de decorativa na casa de um habitante de Nova Iorque, ao passo que é impossível imaginar essa dualidade de função para uma geladeira ou uma máquina de lavar.
Voltando à sua pergunta, acredito que os artesãos dos países em desenvolvimento podem competir no mercado global e no mundo industrializado desde que preservem suas tradições e adaptem as características exclusivas e singulares de seus produtos às necessidades contemporâneas. De fato, a referência à identidade de uma comunidade e de um grupo constitui hoje em dia um significativo valor agregado para um artigo artesanal no mercado global.
Como você vê a relação entre design e artesanato?
A questão da intervenção do design no artesanato é controversa e complexa, além de dar lugar tanto a muitas preocupações como a muitas esperanças, dependendo de como vemos o copo: meio cheio ou meio vazio. Os benefícios decorrentes da aliança entre o design e o artesanato e também os problemas e riscos inerentes a isso foram amplamente analisados e descritos a nível nacional por Adélia Borges, em seu ricamente ilustrado livro "Design + Artesanato: o caminho brasileiro". Reconhecendo a importância dessa questão em todo o mundo, tomei a iniciativa, em 2005, de preparar e editar um guia prático intitulado "Designers encontram Artesãos", feito em colaboração com a ONG "Craft Revival Trust" (Índia) e "Artesanias de Colombia".
Na "aldeia global" de nossos dias, o artesão, paradoxalmente, está cada vez mais desconectado dos gostos e necessidades do consumidor. Com a ampliação dos mercados e o crescimento espetacular do turismo, o contato pessoal direto entre quem faz e quem usa foi abolido. O artesão já não pode mais assumir, como acontecia no passado, o papel de idealizador (designer), fabricante e comerciante de seus produtos.
Daí a preocupação, manifestada pelos promotores de artesanato e por outras organizações em todas as fronteiras geográficas, de uma maior aproximação entre designers e artesãos. Diante da brecha de comunicação existente entre produtores e consumidores, o designer é visto como um intermediário, como a "ponte" indispensável entre know-how do artesão e seu conhecimento daquilo que deve produzir. A abordagem inovadora para o artesanato sem dúvida poderá ser desencadeada pela introdução do design em vários aspectos, como por exemplo, em relação à escolha de materiais alternativos e tecnologias adequadas, ou ainda pela definição de novas linhas de produtos.
No entanto, se a intervenção do design no artesanato é muito bem vista por alguns, sendo vista como uma oportunidade, com frequência também é vista por outros como uma ameaça. A redução do papel do artesão a um mero produtor e a falta de referência ao contexto cultural, nos produtos projetados para um mercado estranho, volátil, são algumas das questões levantadas. Qual é a natureza da perda e/ou ganho na adaptação às exigências do mercado? Como adaptar e/ou modificar produtos existentes ou criar novos produtos a partir de motivos de design local sem obliterar as tradições? É possível uma interação equilibrada e mutuamente benéfica entre os designers e os artesãos?
Sem ser excessivamente otimista, sustento que a resposta que damos a essas perguntas é positiva. Enquanto os artesãos se veem presos numa posição ambígua, pressionados a ajustar-se às demandas do mercado e ao mesmo tempo encorajados a permanecerem fiéis às suas tradições mais antigas, os designers podem tornar-se parceiros na preservação, desenvolvimento e comercialização do artesanato, desde que exista uma visão compartilhada e um espírito de respeito mútuo.
Nesse aspecto, não devemos esquecer que a própria profissão do designer está passando por uma revisão sobre o sentido (ou falta de) quanto à sua missão num mundo globalizado, onde as fronteiras desaparecem rapidamente não apenas entre os países, mas também entre as disciplinas criativas. Hoje, a arte usa a moda, a moda usa o artesanato, o design se aproxima da arte. O produto já não constitui um fim em si mesmo, mas um meio a serviço da Felicidade. Conceitos inovadores ganham terreno, como Bio-design, Etno-design, Design social. Observamos uma nova tendência que aproxima artesanato e design, culturas locais e estrangeiras, formas tradicionais e contemporâneas. O movimento "Artsy Crafty" (artístico-artesanal, numa tradução livre) por exemplo, reflete uma nova estética que oferece, desde o design até a arte étnica, uma série de artigos únicos que promovem o know-how tradicional, a produção em pequena escala e as empresas artesanais. A relação entre artesãos e designers se torna mais evidente no mundo da moda, onde os acessórios são agora "estrelas", e na arte da reciclagem dos materiais, dando-lhes "uma segunda vida".
Definitivamente, não há razão para que o artesanato deva ser separado do campo mais animado do design. Ao invés de se olharem uns aos outros com suspeita, acredito que as organizações de artesanato deveriam se unir às organizações de design, em uma aliança de grande benefício para os artesãos em todo o mundo.
A UNESCO produziu em 2004 um documento intitulado "Índice de Artesanato/Turismo". Como você vê a relação entre turismo e artesanato? Os gastos dos turistas são importantes para o mercado do artesanato?
Como no caso do design, a relação entre turismo e artesanato pode ser considerada em termos positivos ou negativos. Segundo essa abordagem, o turismo pode ser qualificado no melhor dos casos como o "anjo" que traz uma fonte de renda para o artesão ou, no pior dos casos, o "demônio" que destrói a criatividade e o patrimônio cultural desses artesãos. Acredito que uma abordagem mais objetiva e realista seja necessária, levando em conta as perspectivas do artesanato segundo as tendências atuais do setor do turismo e a necessidade de proteger a integridade e o interesse dos produtores de artesanato.
Segundo os levantamentos feitos pela UNWTO (Organização Mundial do Turismo), duas tendências significativas nas viagens irão dominar o mercado do turismo na próxima década:
- O marketing de massa está cedendo lugar ao marketing personalizado, onde as viagens são propostas segundo os interesses do consumidor individual;
- Um número cada vez maior de visitantes se tornam viajantes com interesses especiais que classificam as artes, o patrimônio e/ou atividades culturais como a primeira entre as cinco principais razões para viajar.
Tais tendências representam uma mudança significativa na motivação dos turistas: o turismo deixou de priorizar sol, sexo e mar, para focar-se nos 3E: entretenimento, emoção e encontros. Hoje o turismo é um fator poderoso para a mistura de pessoas e conhecimentos, assim como ontem o comércio tradicional favoreceu o intercâmbio de culturas. Com isso, em anos recentes observamos um deslocamento do "turismo cultural" para o "turismo criativo", uma mudança da mera observação para uma ativa participação na vida cultural de outros povos e pessoas. Por exemplo, se o turista cultural se limita a visitar uma oficina de cerâmica, o turista criativo irá participar da oficina e descobrir materiais e técnicas usadas nas demonstrações feitas pelos artesãos. A filosofia por trás do turismo criativo pode ser resumida da seguinte forma: "Eu ouço e esqueço; eu vejo e lembro; eu pratico e compreendo."
Com relação à relevância dessa nova tendência para os artesãos, é interessante observar aqui o resultado direto da globalização: uma vez que todo tipo de artesanato hoje em dia se encontra disponível em todos os mercados, os turistas procuram artigos autênticos e originais e querem saber onde foram feitos. Daí a necessidade de uma maior distinção entre as compras feitas por turistas como presentes a serem dados sem maior autenticidade (camisetas, canecas, chaveiros) e os artigos levados como uma lembrança eterna da viagem. Procuram algo para ver, experimentar, provar e levar para casa com eles. Querem "souvenirs" que reflitam a essência do local visitado. Os artesãos estão numa posição privilegiada para proporcionar essa essência, se puderem oferecer artigos exclusivos, singulares, de alta qualidade e a preços competitivos.
Na ausência de dados quantitativos confiáveis quanto ao volume e natureza das compras de artesanato feitas por turistas, é difícil estabelecer a importância econômica da relação entre turismo e artesanato. As estatísticas publicadas pela Organização Mundial do Turismo e/ou Órgãos Nacionais de Turismo traduzem sobretudo o número de visitantes ao país, quantas noites os turistas (residentes ou não) passaram, e as despesas globais feitas por eles (em estadias e passeios, alimentação, eventos culturais e compra de souvenirs). Como demonstrou o levantamento feito pela UNESCO em 2002, mesmo muitos dos países desenvolvidos e destinos turísticos importantes não conseguem quantificar a renda derivada especificamente da venda de artesanato para turistas. A importância econômica do artesanato em geral é examinada única e exclusivamente do ponto de vista das exportações, enquanto que as receitas geradas pelas compras feitas pelos turistas continuam sendo ignoradas.
Essa situação pode ser explicada por dois fatos principais: a ausência de uma metodologia padrão para a coleta de dados e a falta de conscientização quanto à importância desses dados. A iniciativa por mim lançada em 2002 para estabelecer um "Índice de Artesanato/Turismo" almejava sanar essa dificuldade. Era, de um lado, um sistema que abrangia diversas variáveis: a origem do turista (local, regional, internacional); a idade, gênero e posição social; as categorias de artesanato (joias, têxteis, cerâmica, cestaria, etc.) e o valor total dos produtos comprados por cada turista. Um questionário padrão incluindo todos esses itens foi elaborado, porém lamento dizer que não foi colocado em prática pelos Estados Membros. E, no entanto, dados significativos podem ser obtidos muito rapidamente e sem grandes recursos financeiros, simplesmente usando o questionário (nos aeroportos, portos, hotéis) para perguntar aos turistas que estão indo embora que tipo de artesanato compraram e quanto despenderam.
Por outro lado, os dados coletados podem ser uma boa ferramenta para a tomada de decisão dos promotores do artesanato: as informações detalhadas sobre a duração da estadia e a categoria de produto artesanal comprada, por ordem de preferência, nos permitiria: (a) analisar melhor como aumentar a despesa do turista em artigos relacionados ao artesanato; (b) determinar em que áreas devemos concentrar a ação para assegurar esse aumento (na adaptação do produto, no marketing, na promoção, etc.). De maneira mais ampla, as estatísticas coletadas são essenciais para os formuladores de políticas no momento de determinar a prioridade a ser atribuída ao financiamento dos programas de desenvolvimento do artesanato.
Talvez essa ideia do "Índice de Artesanato/Turismo" estivesse e ainda esteja muito à frente do tempo. A apresentação desse projeto durante a Seminário Ibero-Americano sobre Turismo e Artesanato no Rio de Janeiro, em outubro de 2005, não parece ter gerado um impacto duradouro. Mas eu continuo acreditando que esse Índice pode ser uma ferramenta muito prática e concreta para sensibilizar todos os interessados - locais, regionais, internacionais - quanto à necessidade de apoiar o artesanato para o benefício econômico de milhares de comunidades de artesãos e para o desenvolvimento nacional em geral.
Qual a importância das instituições educacionais para o desenvolvimento do artesanato no mundo? Como você vê a presença do artesanato nas universidades?
As escolas, faculdades e universidades têm um papel chave nas duas pontas do processo de desenvolvimento do artesanato, particularmente nos países em desenvolvimento: assegurar a transmissão das habilidades e do know-how dos mestres artesãos para as gerações mais jovens, e a formação dos artesãos em técnicas para aperfeiçoar a produção e a promoção no mercado global. O maior desenvolvimento do setor do artesanato ocorreu em países que dispõem de programas eficientes de assistência técnica que, além da formação, oferecem outras atividades de apoio. No entanto, a maioria dos países precisam ainda de programas de assistência técnica para formação em gestão, pesquisa, design e marketing. Além disso, a formação deveria ser proporcionada no nível das escolas primária, secundária e universitária. Como os antigos sistemas de aprendizes está perdendo terreno, seria aconselhável alocar recursos e tempo, especialmente nas escolas primária e secundária, para o ensino das habilidades artesanais tradicionais, oferecido por artesãos experientes.
Para poder desenvolver as profissões artesanais e para promovê-las entre os jovens, meus colegas no setor da educação e eu lançamos em 1992 um projeto piloto inter-regional de aulas-oficinas para a conscientização sobre as profissões artesanais. Esse projeto foi realizado simultaneamente em seis instituições pertencentes ao Projeto de Escolas Associadas da UNESCO, em várias regiões: Gana (África), Nepal (Ásia), Guatemala (América latina), Ilhas Granadas (Caribe) e Bulgária (Europa).
O projeto suscitou considerável interesse entre os alunos (meninos e meninas entre 10 e 13 anos) e entusiasmo, tanto entre os professores como entre os trabalhadores artesãos daqueles países. As "anotações" ou Cadernos produzidos pelos alunos foram compilados na publicação “Children discover Arts & Crafts through... Workshop-classes" em várias línguas (inglês, francês e espanhol), amplamente distribuída em todos os Estados Membros. O símbolo do sucesso desse programa é o fato que, diante da solicitação de muitos países, uma nova impressão foi feita em 2003 para uso nas escolas.
Essas aulas-oficinas foram recentemente implantadas em Bangladesh e Vietnã (Ásia), Moçambique (África) e Egito (países árabes), no marco de um projeto transversal para Erradicação da Pobreza, "O artesanato como uma janela de oportunidade para o emprego dos jovens mais pobres". O objetivo é proporcionar aos Ministérios da Educação uma metodologia dirigida à formação para o artesanato e emprego, dentro do currículo escolar, que possa oferecer aos alunos pobres, sem condições de receber uma educação formal, uma alternativa viável de emprego futuro.
No nível da Universidade, vejo um interesse crescente no oferecimento de cursos de Design no Artesanato, especialmente em instituições privadas. Fui convidado a dar Master Classes sobre a intervenção do design no artesanato em duas universidades privadas, a St. Joseph no Líbano (2011) e a Universidade CENTRO, na Cidade do México (2012). Outras universidades estão focalizando mais a melhoria da qualidade dos produtos e dos processos de produção. Por exemplo na Índia, como parte do currículo básico, os alunos dos institutos de design interagem com artesãos e designers profissionais para desenvolver vínculos com o setor do artesanato. No caso do Brasil, a tendência aparentemente é o desenvolvimento de programas de extensão, mais do que cursos formais, conectando os professores e alunos das diferentes disciplinas com os produtores de artesanato. É o caso do laboratório "Imaginário" da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da ONG Design Possível, originada como projeto de extensão na Universidade Mackenzie (São Paulo).
Você e Dominique Bouchart coordenam a RIDA (Rede Internacional para o Desenvolvimento do Artesanato). Qual é o papel dessa instituição? De que modo a RIDA pode "ajudar o desenvolvimento do artesanato de qualidade e a promoção dos produtos criativos e tradicionais de artesãos e designers"?
Como mencionei antes, no início da entrevista, a criação da RIDA aconteceu depois que saí da UNESCO, em 2008. A intenção é manter e desenvolver o intercâmbio de ideias e experiências entre um grupo de especialistas e promotores do artesanato de todas as regiões do mundo. A natureza específica dessa rede global é ser inteiramente virtual, sem qualquer estrutura ou conselho administrativo, exceto os dois Coordenadores Internacionais (Dominique e eu). Devo insistir no fato que as ambições da RIDA são bastante modestas e o objetivo é compartilhar a experiência dos membros nas várias áreas do artesanato, desde a formação, até a criação, promoção e marketing com todos os que estiverem interessados.
A RIDA contribui para a promoção da qualidade do artesanato de várias maneiras, especialmente pela participação voluntária de seus membros na Avaliação dos trabalhos apresentados pelos artesãos nos Prêmios de Excelência, e pela sua contribuição técnica para as oficinas e seminários nas respectivas regiões. Por exemplo, a representante da RIDA na América latina e eu acabamos de participar do Juri Internacional do Prêmio de Excelência para o Artesanato da região do Cone Sul, que foi realizado em Salto, no Uruguai de 1 a 8 de agosto de 2014. E, além disso, a apresentação no website www.ridanet.org. de publicações selecionadas, recentes, sobre artesanato contemporâneo e tradicional, deverá dar aos artesãos e organizações notícias atualizadas sobre os recentes desenvolvimentos no setor. Dentro do mesmo espírito, a RIDA realizou diversos levantamentos e estudos consolidados sobre tópicos específicos, que podem ser de interesse para a adoção de políticas e para os tomadores de decisão, como por exemplo, "Tendências recentes no desenvolvimento do artesanato", "A reciclagem ou segunda vida para os produtos de artesanato", e "Medidas atuais para a proteção dos artigos de artesanato exibidos nos Museus Nacionais".
Qual a sua opinião sobre a comercialização de produtos artesanais no mercado internacional hoje? Os artesãos encontram dificuldades para vender seus produtos? De que maneira as organizações internacionais (como a UNESCO e a RIDA) podem ajudar nesse processo?
No contexto global de hoje os artesãos não podem simplesmente reproduzir objetos que não estejam ligados às necessidades contemporâneas, ou que tenham pouco atrativo de venda quando oferecidos fora de seu contexto cultural. Os produtores de artesanato, também eles, devem entender a necessidade de estar conectados aos mercados externos e de reagir às mudanças dos mercados, às necessidades dos consumidores, à moda e ao uso.
Esse mercado mundial se caracteriza agora por duas tendências, que poderiam parecer contraditórias mas são de fato complementares: a globalização, por um lado, e por outro uma profunda preocupação por produtos locais, autênticos, que respeitam o meio ambiente. Embora traga em si os germes da uniformidade, a globalização está redesenhando mercados, com oportunidades para a promoção de produtos locais usando materiais sustentáveis. Daí o novo conceito de "glo-calização". Nesse contexto, os artesãos devem ter acesso a ferramentas e apoio, para fazer face à concorrência da comunidade internacional de artesanato, nas áreas de valorização do design, qualidade da realização, preço e sustentabilidade perante o mercado.
Hoje em dia, cada vez mais os artesãos devem atender duas demandas do consumidor para poderem vender seus produtos: a certificação de originalidade e de reconhecimento de marca (fenômeno chamado “branding”). As pessoas querem ter certeza de que não estão comprando uma imitação barata ou um produto feito em escala industrial, e que sua qualidade é garantida pelo promotor. Nesse sentido, as autoridades nacionais poderão proteger os artesãos utilizando o sistema de "Indicação de procedência/denominação de origem". O Camboja foi um dos primeiros países a usar esse instrumento para a sua seda especial de Siem Reap, e a Índia já tem ali mais de 110 produtos registrados, conforme sua recente lei sobre "Indicação de procedência/origem geográfica". Também os selos de entidades internacionais, como o Prêmio UNESCO de Excelência até os anos recentes, e agora o WCC - World Crafts Council (Conselho Mundial do Artesanato) podem ser lucrativos para os artesãos criativos dar mais segurança aos compradores.
Um outro fator fundamental na decisão de compra do consumidor é o impacto social de um produto, algo que irá influenciar o mercado por um longo período. O mercado quer mais informação sobre onde foi feito o produto, por quem, e em que condições/circunstâncias. Também quer saber se alguma parcela do produto da venda será reinvestida na comunidade. Uma pesquisa recente feita nos EUA mostrou que cerca de 47% dos consumidores americanos estariam dispostos a pagar até 19% a mais por um produto socialmente responsável, desde que também tenha bom design, boa qualidade e um preço razoável e seja facilmente acessível.
Em 2010 você fez a seguinte afirmação para um jornal de Porto Rico: "os objetos artesanais constituem de fato a imagem emblemática de cada país". Como isso é possível?
Para entender melhor essa citação, precisamos retornar a algumas noções básicas: o artesanato é um componente essencial do legado cultural intangível de um país e é ao mesmo tempo uma das indústrias de maior dinamismo cultural e criativo do século XXI. Além desses elementos comuns, os produtos artesanais refletem outros mais específicos: a identidade, a criatividade e a expressão cultural de uma comunidade, de um grupo ou de um individuo. Foi nesse sentido, e com base nas observações em todo o mundo, que expressei essa noção de que os produtos artesanais carregam em si a imagem emblemática de um país.
Você poderia dar exemplos da "imagem emblemática" de alguns países?
Há tantos exemplos quantos países no mundo! Porém posso dar uma lista curta dos diferentes continentes: a tecelagem única, singular e intricada das comunidades indígenas de Tarrabuco na Bolívia; o mola, painel colorido de tecido feito à mão no Panamá; os cristais da Bohemia produzidos nessa região da República Checa; as esculturas de ferro “Croix de Bouquets” e os acessórios decorativos, feitos a partir dos barris de petróleo tradicionais, em uma pequena cidade na periferia de Port au Prince, no Haiti; os Huilipil, vestes tradicionais feitas em tear no México; as elegantes Cestas da Paz, feitas pelos Hutsi e Tutu, hoje um símbolo internacional do poder de cura da cestaria em Ruanda; as roupas tradicionais do povo Yoruba, na Nigéria, que usam métodos de tingimento muito próprios; as tradicionais bonecas de feltro, feitas à mão no Quirguistão; e os aros reversíveis dos brincos de prata, que refletem a refinada elegância da joalheria tradicional da Argélia.
O senhor esteve algumas vezes no Brasil. Em sua opinião, qual seria a imagem emblemática do artesanato brasileiro?
É uma escolha difícil! Em cada um dos 26 Estados há mais de produto artesanal que poderia representar uma imagem típica do país... No entanto, vou me arriscar a dar dois exemplos intimamente ligados ao Prêmio UNESCO de Artesanato para a América Latina, que organizei no Brasil em agosto de 2004: os Orixás, que refletem o rito religioso do candomblé afro brasileiro (porque o evento se realizou na Bahia); as figurinhas de cerâmica que retratam personagens e cenas da vida cotidiana de Minas Gerais (porque levaram o prêmio!).
Você poderia nos dar sua opinião sobre as principais qualidades e os principais problemas que você vê no artesanato brasileiro?
A minha última visita ao Brasil foi em 2007, portanto minha avaliação pode estar errada, ou não considerar os novos desenvolvimentos no setor do artesanato. De qualquer modo, só posso fazer algumas observações gerais. A meu ver, o artesanato brasileiro reflete de maneira bem precisa a diversidade do meio ambiente natural (com produtos ligados à floresta, rios, cachoeiras e planícies que cobrem o país), e a pluralidade étnica de um Estado para outro, especialmente essa combinação de elementos afro-índio-europeus e esse amor particular pela música e alegria de viver associados aos brasileiros. Acima de tudo, acho que os artesãos extraem a inspiração de seu legado cultural, de expressões tradicionais e da sua maneira de viver e que seus produtos estão mais dirigidos para os consumidores locais do que para o mercado estrangeiro. Essa estratégia é ainda mais correta, se levarmos em conta o enorme potencial de mercado interno disponível.
Do lado negativo, creio que por parte das autoridades públicas e departamentos encarregados do artesanato há uma falta de curiosidade sobre o que acontece no mundo fora do setor. Poderiam demonstrar maior interesse nas vantagens da cooperação e do intercâmbio de ideias, informações e experiências. Isso explica porque os artesãos brasileiros, diferentemente de seus pares nos países vizinhos, têm poucas oportunidades de ver produtos diferentes, feitos a partir de uma mesma categoria de matérias primas. Em minha recente visita a Montevidéu, por ocasião do Prêmio de Excelência para o Artesanato dos países do Cone Sul, fiquei surpreso de ver que o Brasil jamais participou desse programa, iniciado em 2008 e que já está na sua quarta edição! Comparado com a participação das autoridades públicas de outros países emergentes em eventos de artesanato Regionais ou Internacionais (Índia, Indonésia, África do Sul ou Nigéria), não é fácil entender essa atitude. Felizmente, há na sociedade civil muitas pessoas dispostas a compartilhar a experiência do Brasil lá fora, e entre elas gostaria de mencionar alguns amigos muito queridos: Adélia Borges, Maria Lacombe (O SOL), Heloísa Crocco, Eduardo Barroso e Eber Ferrera.
Finalmente, sustento que o potencial econômico e social do setor do artesanato parece estar subestimado no Brasil, em um momento em que o seu papel na economia criativa está sendo cada vez mais reconhecido e promovido a nível nacional e internacional.
Você tem larga experiência no campo do artesanato. Poderia fazer alguma comparação entre países ou continentes?
Desculpe desapontá-la, mas não acho que seja possível nem que valha a pena fazer esse tipo de comparação, pelo seguinte motivo: o artesanato depende da criatividade, habilidade e talento individuais e a criatividade é o único recurso distribuído de forma igualitária em todo o mundo, quer nos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, entre ricos e pobres, homens e mulheres. Não existe um país ou continente mais criativo que outro. A diferença basicamente reside na existência ou não de um ambiente propício para promover a criatividade dos artesãos, por exemplo, em termos de formação, acesso a matérias primas e financiamento, canais de comercialização, status e proteção social.
Em sua opinião, que ações seriam mais importantes para a promoção do artesanato?
É incrível que a resposta esteja no Plano de Ação de 10 Anos lançado pela UNESCO em 1990. Estou firmemente convencido de que as necessidades indispensáveis definidas naquela época para o futuro do artesanato continuam válidas. Na verdade não é preciso reinventar a roda! Essas necessidades são as que eu chamo dos 3-C: coordenação, complementariedade e cooperação.
A diversidade de grupos de interesse que intervêm no setor do artesanato constitui, com demasiada frequência, um obstáculo ao invés de uma vantagem, porque os projetos e atividades são empreendidos cada um por seu lado, portanto com impactos reduzidos. A coordenação torna-se ainda mais necessária pois os meios humanos, materiais e financeiros disponíveis são insuficientes para fazer frente aos problemas comuns dos artesãos, a saber: formação, aperfeiçoamento das habilidades, provisão regular de materiais brutos importados, necessidade de desenvolvimento do produto e adequada comercialização a nível nacional, regional e internacional.
Por outro lado, o fato de que o setor do artesanato seja transversal demanda uma complementaridade. O artesanato não pode se desenvolver plenamente sem estar ligado a setores chaves, tais como Educação (particularmente para a transmissão do conhecimento tradicional), Meio Ambiente, Turismo (especialmente o turismo cultural e o ecoturismo) e Comércio (para a exportação de produtos representativos). Também é essencial inserir o artesanato nesses marcos mais amplos e relacionar o setor com questões focais como emprego para os jovens, igualdade de gênero e erradicação da pobreza.
Finalmente, a acirrada concorrência no mercado global exige a cooperação estratégica e a formação de redes entre todos os setores envolvidos: artesãos, empreendedores, setores público e privado, ONGs e associações de artesanato. Somente dentro desse espírito uma estratégia e um plano de ação nacionais poderão ser eficientes e frutíferos.
No início de século XXI, há muitos motivos para ser otimista a respeito do futuro do artesanato: a crescente conscientização dos setores público e privado, assim como das agências de cooperação internacional, quanto ao papel duplo do artesanato na sua fusão das habilidades tradicionais com a criatividade moderna, e no seu impacto econômico e sociocultural no desenvolvimento sustentável. Também estamos testemunhando um maior reconhecimento daquelas mesmas qualidades que supomos inerentes ao artesanato: qualidades de permanência, a adaptabilidade dos artesãos e seus materiais às necessidades em constante mudança e, acima de tudo, a dimensão espiritual do artesanato.
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ARTIGO: CROCHÊ E RICHELIEU: TRAÇOS CULTURAIS NO DESIGN BRASILEIRO