"O que me inspira é
a vida, é o movimento; é aquilo que vejo, aquilo que sinto"
J. Borges é xilogravurista e cordelista. Em 2005, recebeu o
título de Patrimônio Vivo de Pernambuco.
O senhor nasceu em Bezerros, Pernambuco, em
1935. O primeiro cordel escrito pelo senhor foi em 1964, quando tinha 29 anos. Dessa
forma, gostaria de saber como o senhor acabou se envolvendo com o cordel.
Durante a minha infância, sempre fui criado num sítio – não cheguei a morar na cidade. O lugar onde morava era uma região de mais ou menos 500 pessoas, onde só três sabiam ler; e meu pai era uma delas. Então, a principal forma de se divertir em casa era através das histórias do cordel. Meu pai lia os cordéis todas as bocas de noite e no fim de semana. Foi assim que me apaixonei pelo cordel, ao ouvir aquelas histórias. Como criança, ficava impressionado.
Assim, quando cheguei aos 20 anos, comecei a comprar e a vender cordel pelas praças, feiras e festas. Onde tinha muita gente, eu estava lá. Depois, quando já estava há muito tempo vendendo, comecei a pensar na ideia de escrever os meus próprios cordéis. Eu sempre lia muito aquelas histórias, mas não tinha noção de como elas eram feitas. Porém, inventei de escrever e o meu primeiro cordel fui bem-sucedido. Vendi bem. Aí, parti para escrever o segundo. Com isso, também, surgiu a necessidade de ilustrar. Eu nunca tinha visto alguém ilustrando, mas tinha a noção de como era feito. Então, peguei um pedaço de madeira, lixei, desenhei, cortei, levei numa gráfica e o rapaz tirou uma cópia dizendo: “Está boa. Dá para imprimir bem”.
Após isso, imprimi dois mil cordéis com a primeira gravura e vendi logo. Aí, fiquei mais entusiasmado, porque estava vendo cordéis com meu nome como autor e como ilustrador. Fiquei animado e aí parti para fazer o terceiro, o quarto e o quinto. Até que, após uns cinco ou seis anos que eu já trabalhava pelas feiras fazendo as capinhas de cordel, os meus colegas começaram a encomendar também. Fazia para mim e fazia para os outros cordelistas também.
Até que depois surgiram algumas pessoas do Rio de Janeiro: uns pintores foram passar uma temporada em Olinda e me encontraram trabalhando lá no interior. Um deles, o Ivan Marquetti, disse: “Seu trabalho é excelente. Você é muito bom, mas ninguém lhe conhece”. Eu disse: “Trabalho assim, no anonimato. Quase ninguém me conhece”. Ele disse: “Vou fazer alguma coisa para você. Depois que sair daqui, vou deixar você já um pouquinho mais conhecido, divulgado”. Aí, ele foi me pedindo uma série de trabalhos. Fui fazendo e ele me disse: “Olha, não quero para vender. Eu gosto muito do seu trabalho e quero fazer alguma coisa para divulga-lo”.
Depois disso, ele pegou umas doze ou quinze cópias das gravuras mais bonitas e mostrou para o Ariano Suassuna. Quando o Ariano viu, ficou muito entusiasmado e pediu que eu fosse lá na reitoria da Universidade de Pernambuco. Falei com o Ariano e ele me divulgou através de jornais locais, como o Diário de Pernambuco e o Jornal do Comércio. Depois, O Globo e O Estado de S. Paulo vieram para fazer uma entrevista comigo. Jogaram no ar e a Rede Globo Nordeste fez uma cobertura também: me filmaram lá na Universidade e depois foram até Bezerros e me filmaram trabalhando. Botaram no ar numa semana. Foi num dia de terça-feira, e, no sábado da mesma semana, já começou a chegar carro na minha porta. E, até hoje, eu não tive mais sossego (risos). Então, a palavra de Ariano foi muito forte. Ele me considerou o melhor gravador popular do Nordeste. E o povo acatou. Então, dei sorte e hoje o mundo me conhece.
O cordel possui alguma ligação com a
juventude do senhor?
Claro, tem sim. Como expliquei, me apaixonei pelo cordel quando era criança e na juventude passei a ler muito essas histórias. Foi assim que ampliei a minha capacidade de leitura também, já que só tive dez meses de escola. Aí, aprendi a ler e a escrever (com uma caligrafia meio enganchada, letra de espiritista, como a gente diz) com os cordéis.
O senhor aprendeu a ler melhor a partir do
cordel?
Foi. Inclusive, conheço muita gente lá que sabe ler e nunca foi para a escola. Começaram juntando as letras do cordel e forçando a barra para aprender. E, depois de aprender o básico, começaram a ler o cordel e hoje em dia leem e escrevem muito bem. Cheguei até a conhecer um poeta que nunca foi na escola, mas ele aprendeu a ler no cordel: tanto que ele sabia ler, porém não sabia escrever o próprio nome.
Para o senhor, qual era a importância do
cordel para as pessoas e para a região há algumas décadas atrás?
Naquela época o cordel era muito importante porque o acesso ao rádio era muito pequeno. Só possuía rádio quem era alto comerciante ou grande fazendeiro, que tinha o rádio de bateria de carro. A bateria dava para uma semana, então todo sábado eles levavam para carregar de novo na cidade. Assim, a diversão que existia na época era o cordel, que o povo lia muito. O povo lia também porque o cordel trazia notícias. Ele servia como diversão e também como jornalismo. Era ali que a notícia da virada do caminhão, do desastre do trem, da cheia de Maceió e de outras coisas aparecia. Tudo isso vinha escrito nos cordéis. As pessoas nos sítios e fazendas compravam para ler, para saber a notícia. Quer dizer, o cordel servia como aprendizagem, servia como diversão e também circulou muito tempo como jornalismo, trazendo a notícia ao povo que não tinha acesso ao rádio, nem ao jornal, nem à revista e que morava muito longe da cidade.
O cordel foi muito importante nas décadas de 1930, 1940 e 1950, na época que ninguém sabia ler. Todo mundo acreditava que o cordel era a realidade. Quando lia o cordel, todo mundo acreditava naquela história mentirosa. Acreditavam na notícia que vinha escrita ali, feita em verso. A importância do cordel se dava dessa forma. Depois ele foi subindo o século, foi chegando nas décadas de 1970 e de 1980, e, aí, foi caindo o gosto do povo pelo cordel porque foi acabando os cordelistas de feira e de praça. Toda vez que você chegava tinha um ou dois trabalhando com cordel. Aí foi acabando e o cordel foi morrendo também.
Aí veio o rádio para todo mundo. Entrou o progresso: a tecnologia foi melhorando, a comunicação se ampliando e o cordel foi perdendo força. Nos anos 1990 ele chegou à beira da cova. Ele só não morreu graças ao movimento estudantil, que despertou novamente o interesse porque as escolas mandavam os alunos fazer trabalhos sobre cordel, ler cordel e responder perguntas em cima de cordel. Antigamente, os colégios, e hoje as faculdades e universidades, faziam trabalho em cima de cordel. Então, o cordel começou a reativar a produção.
Já nos anos 2001 e 2002 do século XXI o cordel estava bem melhor, já estava se vendendo bem. E, agora, ele está tomando o auge dos anos 1930, porque a produção de cordel está sendo muito bem vendida. Todo mundo compra. E hoje tem uma vantagem que quem compra o cordel não é só o povo de periferia da cidade e o povo matuto. Compra todo mundo da cidade: compra o estudante, a professora, o padre, a freira, o pastor. Todo mundo compra cordel porque precisa para fazer trabalho de escola.
E, esse retorno, também, incentiva as pessoas a ler. Os alunos compram o cordelzinho porque a professora mandou. Lê aquele cordelzinho e gosta daquela história. Quando ele vê outro, de outro tipo, fala “eu vou comprar esse também”. Então, por esse motivo, o cordel está subindo a produção. Tenho muitos poetas urbanos que estão produzindo. Só que, os poetas urbanos, de cada vinte ou trinta poetas urbanos, se tira apenas um que escreve certo. Eles não respeitam a ética do cordel, a rima, a métrica, a oração. Eles escrevem muito desmantelado, muito errado. Ele faz o formato e vende o livrinho do cordel. O povo lê, também não entende e acha que aquilo é o cordel. E eu protesto muito.
Então o cordel atual, desses poetas, não é
a mesmo que aquele de décadas atrás?
Não, não é o mesmo cordel. Por isso mantenho uma coleção daqueles cordéis publicados mais antigos, que o povo gosta de ler. E quem compra o cordel, meu e de alguns outros poetas, leva um cordel escrito certo. O povo não tem muita paixão pelo cordel novo, escrito por esses poetas novos, porque o que tempera mesmo o cordel é a rima, e eles não obedecem a rima. Eles pisam no olho, fazem de qualquer jeito. Aí, o povo não gosta. O povo do Nordeste já é acostumado a ler cordel e já conhece o seu formato. Sabem que o cordel bem escrito é aquele todo cheio de rimas certinhas. E quando ele pega o outro, diz “Esse é todo pé quebrado”. Então, esse é um dos principais problemas que acontecem hoje em dia.
A importância do cordel era muito forte. E, atualmente, ele segue o mesmo ritmo no sentido do ensino, porque agora todo mundo sabe ler. Já vendi vários cordéis a pessoas intelectuais que fizeram mestrado, doutorado e que falam várias línguas. Uma vez, chegou uma pessoa lá e veio comprar cordel. “Para quê?” perguntei. “Para aprender”, ele disse. “Mas aprender o quê?”. “Aprender a linguagem de vocês. A linguagem popular do sertão que está no cordel. Porque somos criados dentro do colégio, da universidade e da faculdade mas, no fim, temos um vocabulário muito científico. E a linguagem de vocês é muito popular. É onde se aprende as gírias das regiões. E tudo isso está no cordel”.
Então, o cordel hoje em dia serve de ensinamento. Além disso, serve como diversão para o povo. Por sinal, agora escrevemos mais cordéis de humor. Porém, como jornalismo, ele caiu muito, porque, agora, tem o rádio e a televisão, que mostra o “cabra” morto, com o sangue pingando. Então, o cordel não tem vez. Mas tem hora que a televisão anuncia e não pode mostrar. Por exemplo: a televisão anunciou o chupa-cabra, mas não pode mostrar porque era uma coisa que não existia de fato, não é? Então, fizemos um cordel sobre isso e vendemos disparado. Todo mundo comprava.
No Recife surgiu a história da perna cabeluda. Inventaram que a perna cabeluda estava andando de Recife até Carpina. A televisão anunciava e quase todo dia falava nisso, mas não mostrava porque não tinha o que mostrar. Aí, o poeta José Soares escreveu um cordel sobre isso e vendeu duzentos e tantos mil em uma semana. Depois, inventaram a história da mulher-vampiro, que estava sangrando o povo. Aí, peguei e escrevi o cordel. Era uma época em que as mulheres estavam seguindo aquela moda das costas nuas. Aí, escrevi “A mulher-vampiro e o exemplo das costas nuas”. Fiz esse cordel e nele as mulheres que usavam as costas nuas saíam sangrando. Vendi muito. Dentro de um mês, vendi mais de vinte mil cordéis. Então, a gente aproveita aquilo que a televisão anuncia, mas não pode mostrar.
O cordel mostra o que a TV não pode.
Sim. E, de qualquer maneira, ele está mantendo esse capricho de jornalismo ainda por causa disso. E tem uns acontecimentos também que a televisão mostra, mas ainda se faz o cordel e vende.
O cordel, portanto, continua ativo
atualmente?
Sim, está bem ativo. Em 1990, mais ou menos, fui para Brasília. Lá tinha um amigo que era jornalista e escrevia muito sobre poetas populares. Na época ele trabalhava no Ministério do Interior e atuava na parte de divulgação do Banco do Nordeste. Aí, chegando em Brasília, ele me levou para a sua casa, me perguntou muitas coisas, fez pesquisa e, depois, disse que o cordel do Nordeste estava acabando, estava morrendo. Aí, depois de alguns dias, o Jornal de Brasília fez uma matéria e me considerou um “poeta maldito”.
Com isso, fiquei bravo. Aí o jornalista disse “Por que você ficou bravo, Borges? Disse: “Por levar esse nome de poeta maldito. Não fiz nada mal”. “Não, Borges. Escrevemos isso porque você trouxe uma notícia que chocou a gente. O rapaz vai vir falar com você”. Depois de um tempo, ele veio e disse “Mas você ficou chateado?”. “Fiquei, rapaz. Não muito, mas fiquei”. “Não, a gente te chamou de poeta maldito porque você trouxe uma notícia muito chocante. A gente, que mora aqui na cidade grande, não sabe de tudo o que acontece no Nordeste. E essa notícia que o cordel está morrendo, está na beira da cova, é uma notícia que a gente recebe com muita tristeza. Por isso é que te chamei de poeta maldito”.
Após essa conversa continuei por mais um tempo em Brasília e, até por conta disso, arranjaram, entre o Ministério da Cultura e Banco do Nordeste, uma pessoa que se interessou por essa situação. Um grupo de amigos jornalistas, interessados com o que viram na notícia, envolveram o Marcos Vilaça na história. Na época, o Marcos era diretor da Pró-Memória e todo mundo o conhecia. Com isso, fizeram um projeto de ajuda ao cordel. Depois de três dias, chegou a notícia de que assinaram o pedido do Vilaça e que iriam sair quatro milhões de cruzeiros para mim. Eu disse “Não acredito, não”. Ele disse “Mas não é dado. Você vai pagar para o Banco com uma divulgação, uma gravura, um cordel, etc. Alguma coisa você faz para o banco”. Após dois meses, chegou o dinheiro do banco na minha conta. Com esse dinheiro, comprei máquina, comprei tinta e melhorei a situação do cordel, mas a vendagem ainda era pouca demais.
Porém, já em 1998, 1999 e 2000, as vendas voltaram a melhorar porque o movimento estudantil começou a comprar cordel para fazer trabalho e, até hoje, a tendência é só crescer. Já tem muitos vendedores de cordéis em barracas de revista e lojas de artesanato. Várias lojas compram o cordel e revendem. O modo de vender deixou de ser só o mesmo de antigamente, onde se vendia nas feiras e nas praças. Agora se vende nas barracas e nos colégios. É desse modo que escoamos a produção e o cordel vai retomando o seu papel de antigamente.
Nas minhas pesquisas, descobri que o senhor
já fez alguns cordéis para políticos. E todo candidato que recebia um cordel
feito pelo senhor, ganhava a eleição...
Pois é. Sempre que faço o candidato se elege. Nunca fiz um cordel para um candidato que não se elegeu. Mas não creio que a minha mensagem seja tão otimista assim. Acho que é porque dá sorte. Não sei. As pessoas que procuram o cordel normalmente compreendem o que ele significa, além de gostar e confiar na gente. Então, escrevo com muito gosto, porém sempre meio desconfiado, porque, afinal, vou endeusar o político, dizer que ele é uma ótima pessoa e tal. Vou pedir voto para ele. Mas, até hoje tenho dado sorte porque, para os que eu escrevi, além de serem eleitos também são pessoas ótimas, que trabalham em prol do povo e em benefício da comunidade. E eu, com isso, me dou bem. No início tinha receio, mas agora já escrevi para várias pessoas. Todos eles se tornam amigos.
Na última eleição para a prefeitura, um candidato a prefeito de Recife me encontrou na Fenearte e disse “Gostaria que o senhor fizesse um cordel para a minha candidatura. Você faz?”. Eu disse “Faço. Me mande alguns dados.” Aí, no meio da semana mandaram um e-mail com as informações dele. Escrevi e mandei o texto. Aprovaram tudo e mandaram fazer dez mil cordéis. Foi distribuído em Recife, em toda parte da cidade. E ele foi eleito no primeiro turno com 60% dos votos. Então, estou contando a história. Não foi o meu cordel que elegeu o homem. Foi a força do Eduardo Campos, que era governador do estado e uma pessoa muito querida, que o apoiou. Mas o meu cordel também deu uma ajudinha.
Deu um empurrãozinho.
É, deu um empurrãozinho e o homem foi eleito.
O senhor já fez cordéis para vários
políticos?
Sim. Fiz três vezes para o Miguel Arraes. Fiz também para o Raul Henri e para o Piauí Lino, que era filho de usineiro e se candidatou a deputado federal. O Piauí pediu para fazer um cordel e eu fiz. Logo depois ele se elegeu. E esse foi o cara que, apesar de ser estranho para mim quando nos conhecemos, foi a pessoa me mais me ajudou. Quando eu chegava em Brasília, ele comprava gravuras. Quando eu estava em algum evento no Recife, chegava Piauí Lino e dizia “Escolha vinte cópias para mim. Lá em Brasília há muitos amigos que me visitam e eu dou uma cópia sua assinada”.
Outro dia fui lá em Suape, para participar de um evento, mas chegando lá acabei vendendo muito pouco. Lá estava acontecendo uma feira de arte, onde tinham muitos artesões e eu não estava vendendo bem. Aí, chegou lá a filha e o filho do Piauí Lino. O filho disse “Borges, eu vou escolher umas gravuras para mim”. Escolheu um bocado. “Essas daí vou levar para meus amigos lá em Brasília”. Aí, a irmã dele disse “Eu também quero. Tenho as minhas amizades lá na universidade e vou dar de presente um trabalho lindo desse”. Quando contei todas, vi que um comprou vinte e outro comprou vinte. Aí o filho dele disse “Mas irmã, se chegarmos em Brasília com essas gravuras, o papai vai tomar da gente”. Ela disse “Então, escolha vinte para ele também”. Aí escolheram vinte e eu vendi sessenta cópias rapidamente. Foi bom demais. Então, foi um candidato que valeu a pena. Tenho sorte com os políticos. Eles gostam de mim.
O Raul Henri também é muito bom. Ele foi deputado federal no tempo do Jarbas. Na época, os dois criaram um projeto em Pernambuco que deu a vários autores e vários artistas o título de Patrimônio Vivo. No dia de apresentação desse projeto, fui lá no palácio. O Jarbas leu o projeto, assinou e me colocaram para ser o orador. Eu dei uns pinotes lá, mas fiz o que me pediram. Depois, disse: “Senhor deputado e Senhor governador, me perdoem a expressão: Estou assinando esse projeto, que é louvável e muito bom, mas tenho as minhas dúvidas porque, desde a minha adolescência. participo de reuniões e de coisas relacionadas à ajuda aos poetas, porém, até hoje, que já estou de cabelo branco, nunca vi uma ajuda. Os papéis vão para a gaveta e a gente fica no beleléu. Me desculpe, mas é isso que eu penso. Talvez esse vá vingar”. Nesse momento, veio o assessor do Jarbas e disse “Você aguarde que vai sair esse projeto, sim. Não é uma brincadeira”. E realmente, o projeto passou a funcionar depois de quatro anos. A partir disso, todos os artistas que ganharam o título recebem uma pensão vitalícia até a morte. Não é muito dinheiro, mas ajuda muito. Até agora já morreu vários deles, mas hoje em dia existem 28. Cada ano mais três pessoas são contempladas. Mas, quando eu fui contemplado, eles deram 12 títulos por o projeto ficou durante 4 anos tramitando na Câmara.
E como foi para o senhor receber esse título
de Patrimônio Cultural Vivo de Pernambuco?
Para mim, esse prêmio foi muito bom. Não só porque ajuda financeiramente, mas também porque o currículo fica mais forte. O poeta e o artista, quando vira patrimônio vivo, passa a ser mais acreditado e tem mais acesso às coisas públicas. Tudo isso acontece. Ajuda de toda a maneira. É muito bom.
Agora, na minha cidade, foi concedido outro título de patrimônio vivo. É o Lula Vassoureiro, que faz máscaras de decoração para o Carnaval. Ele chegou lá na cidade doidinho, dizendo que tinha sido aposentado. Eu disse “Aposentado?”. Ele disse “Sim. Aposentei”. “Do INSS?”. “Sou, mas fui aposentado como patrimônio vivo”. Eu disse “Mas isso não é aposentado, não. Isso quer dizer que agora você é patrimônio vivo. Você foi contemplado com um título do estado, que é muito bom para nós porque o currículo fica mais forte. E, também, se vem um dinheirinho todo mês, ajuda para comprar material e tudo isso”. Ele disse “Pois eu entrei agora”. Eu disse “Pois foi sorte sua. Porque não é todo mundo não”.
Para entrar, tem que ter uma idade avançada e tem que ter divulgação através da imprensa. É necessário constatar com papéis, recortes de jornal e revista de até vinte anos passados. Quando a prefeitura chegou na minha casa, perguntaram: “O senhor tem recorte de jornal com vinte anos?” Eu disse “Tenho com vinte. Tenho com trinta. E quer com quarenta? Eu tenho também” (risos). Depois disso fizeram o documento e levaram para lá, para o Conselho de Cultura do estado avaliar.
E agora estamos lutando para levar esse projeto a nível nacional. O Ministério da Cultura pode muito bem expandir esse programa para todo o Brasil, porque tem muitos artistas por aí que se criam dentro da arte, morrem de velhice e nunca recebem uma ajuda ou reconhecimento do Estado. No Ceará também já existe essa ajudinha. Parece que os artistas que são contemplados com o título ganham um salário mínimo, mas também é para uma limitada quantidade de pessoas. Estamos lutando para levar esse projeto a nível nacional, porque tem muitos artistas bons que morrem no relento, na miséria. Já que a gente enfeita as paredes do mundo inteiro, era necessário que o Ministério nos ajudasse.
Como é que o trabalho que o senhor faz se
relaciona com a religião?
Quando toco na religião, normalmente a relaciono com sacanagem (risos). Não acredito bem em religião. Uma vez escrevi “A chegada da prostituta no céu”. Você sabe que a religião católica é quem mais condena a prostituta, né? Para eles, a prostituta não tem direito a se confessar, a ir à igreja, a batizar uma criança como madrinha, nada. Aí escrevi sobre a chegada dela no céu. Repercutiu demais e eu vendi muito esse cordel. Primeiro fiz a gravura, depois fiz o cordel.
Tem uma história engraçada: entre 1998 e 1999, mais ou menos, fui para Brasília para fazer uma apresentação na Universidade Católica de Brasília, que fica lá em Taguatinga. E lá tem um cinegrafista, o Vladimir, um cearense muito gozador, que gosta muito de mim. Ele disse: “Borges, você vai dar uma palestra para os estudantes”. Eu disse: “Vou”. “Então a sua palestra vai ser ler a história da prostituta no céu. Você leu na Universidade de Brasília, quase o povo morre de rir, e aí você vai ler também aqui”. Eu disse: “Está certo”.
Aí, fui para lá. Encheu o auditório de gente. Falei um bocado e depois comecei a ler o cordel. O povo riu demais. Compraram todos que eu levei. Mas aí, no fim, o Jeová disse: “Olha, vai dar uma bronca, porque aqui essa universidade é dirigida por padres e freiras. E você pegar uma prostituta e botar ela no céu. Você é louco?”. Eu disse: “Foi Vladimir”. ”Vladimir mandou fazer isso só para gozar de tu, mangar de tu”. Eu disse: “Bem, o que eles podem fazer é retirar a exposição. Eu vou-me embora e acabou. Não perdi nada”.
Mais tarde chegou o diretor, que era o Milton Cabral, e disse: “Jeová está aqui?” Eu disse: “Está. Ele foi lá fora na lanchonete”. Ele disse: “Vou deixar um recado para ele e para você também. Vim aqui convidar você para irmos almoçar no Buffalo Bill e eu pago toda a despesa. Vamos para lá almoçar, bater papo, contar história, tomar cerveja. A tarde é nossa. Quem paga tudo sou eu”. Quando Jeová chegou duas horas depois já me deu uma bronca: “Eu bem que falei a você que não daria certo. O que foi que disseram?” Eu disse: “O Milton Cabral, o diretor, veio aqui e convidou eu e você para almoçar no Buffalo Bill e lá ele paga tudo. O que gastarmos lá, a despesa é dele”. Aí Jeová deu uma risada: “Foi esse o castigo que tu recebeste?”. Eu disse: “Foi. Recebi esse castigo. Agora, nós vamos?” Ele disse: “Vamos”. O Buffalo Bill é lá entre Brasília e Tabatinga. É um dos maiores restaurantes da região. Até uma banda de boi assado num carro sai no meio da mesa. “Quero um pedaço daqui, um pedaço daqui.” É carne demais. E é carne de todo o tipo. Comi carne de javali. Tem carne de coelho, de bode, de carneiro, de boi, de galinha. De tudo tem. É monstruoso. Passei uma tarde todinha lá. Comendo, tomando cerveja, conversando, o povo batendo palma e eu contando mentira também. Foi muito bom.
Quando vivia pelas feiras, propagando o cordel, escrevia muita sobre religião. Escrevi muito cordel relativo à previsão do tempo, aos três dias de escuro e que o ano 2000 não chegaria. Então, nós escrevíamos muito palavras de frei Damião e de padre Cícero, como a carta misteriosa que padre Cícero mandou e o sermão de frei Damião. Até tenho uma história da mulher de topless que falou com o frei Damião. O frei Damião não podia ver uma mulher mostrar o braço (se estivesse com uma blusa sem manga, por exemplo), que ele nem queria passar perto. Aí, botei uma mulher de topless que foi se confessar com ele (risos).
Então, hoje publico essas histórias e o povo compra só para rir. Não estou mais propagando, mas mantenho só algumas histórias de religião que o povo mais gosta.
O senhor mencionou agora a questão da “mentira”.
Qual é a relação da mentira com o cordel?
A maioria das histórias de cordel são mentiras. Falei isso em Passo Fundo, numa palestra, explicando que o poeta vive de escrever mentiras porque quem escreve a verdade passa fome (risos). Aí o povo deu uma risada geral e, depois, no meio das 5 mil pessoas que estavam lá, um homem levantou o braço e pediu um exemplo disso que disse. Falei: “Dou um agora! O exemplo é o seguinte: o cordel Pavão Misterioso foi escrito em 1920 e, até hoje, é o mais vendido, de geração para geração. E tudo isso ocorreu porque a história é uma mentira. Agora, não é uma mentira seca não.” Aí, o cabra disse: “O que é uma mentira seca?”. Aí eu disse que uma mentira seca é aquela que diz logo que é mentira. Quando a mentira é muito seca, ela diz logo a todo mundo que aquilo é impossível. Essa mentira impossível não presta. No cordel, os poetas escrevem histórias que deixam as pessoas em cima do muro. É a mentira que deixa dúvida. Quando o cara termina de ler, ele diz: “isso é uma mentira”, mas o outro fala “não, mas pode ter acontecido. Tem condição de acontecer aqui, agora, ou depois.” É essa a mentira que o poeta se agarra e vive escrevendo: a que não dá a entender que é mentira.
Eu gosto de escrever a mentira. Agora, bem criada, de uma maneira que deixa uma dúvida.
Aquela mentira que dá para acontecer um
dia.
É. Aquela que é impossível, essa não se escreve, porque todo mundo já sabe e não dá valor.
Como é a sua rotina de trabalho? Quais são
os materiais utilizados? Sua família auxilia na produção?
Trabalho com meus quatro filhos: o Pablo; o Joaquim, que é o mais novo, com treze anos, só que é meio preguiçoso, (risos); e tem dois filhos adotivos que já são casados, mas que me ajudam. E também meu cunhado e a minha nora que cuida do serviço de computação: mandar e-mail, responder carta, essas coisa todas. Todo mundo trabalha, toma café e almoça lá em casa. Quando é sexta-feira, eu pago a todo mundo de tarde e digo “Façam a patota aí para comprar uma bebidinha, mandar comprar uma passarinha, uma bisteca para nós assarmos”. E, à noite, nós fazemos a festa até sete, oito horas da noite”. Vivo e trabalho assim: brincando com a família unida, todo mundo fazendo alguma coisa.
As novas gerações também estão aprendendo a
fazer o cordel?
O cordel tem alguns poetas novos, mas não crianças. Porém, os colégios estão incentivando, então desses alunos deve sair alguns poetas, não é? Conheço algumas pessoas que fazem cordel da faixa de 25 a 30 anos, que inclusive estão escrevendo bem. Mas tem uns poetas urbanos que não escrevem nada que preste. É uma tristeza os cordéis deles.
O cordel está muito badalado, sabe? Todos os colégios e universidades fazem trabalhos de pesquisa sobre o cordel. Então, isso chama a atenção das pessoas que vivem sem fazer nada e, com isso, falam “vou escrever um cordel”. Mas chegam e escrevem sem obedecer as regras, fazendo tudo de qualquer jeito.
Mas agora encontrei um poeta de Goiânia que esteve lá em Pernambuco. Encontrei esse rapaz e vi que ele escreve muito bem. Li uma página do cordel dele e ele perguntou: “Que tal?”. Eu disse: “Não quero nem ler o resto. Você é um poeta”. Quando é ruim, eu digo logo: “Está tudo errado aqui. Não presta não”. Mas ele é bom. Ele obedece a escrita do cordel, com a métrica, a rima, a concordância de assunto, de palavra.
Tem também o filho do “poeta repórter”, o Zé Soares. Ele se intitulava o poeta repórter porque tudo que acontecia em Recife ele contava através dos cordéis. E o filho dele, o Marcelo, escreve e faz gravura. Ele é jovem, tem vinte e poucos anos, mas tem um trabalho muito bem feito. Tem até um cordel dele que me chamou a atenção, que se chama O que tem na bolsa da mulher. Rapaz, o que ele arranjou na bolsa da mulher... Eu ri tanto. Até bilhete de namorado tem dentro da bolsa da mulher. Depois encontrei com ele e disse: “mas Marcelo, aonde foste buscar aquele assunto da bolsa da mulher?” Ele disse que na bolsa da mulher tem muita geringonça, tem muita bugiganga. Tudo o que a mulher pega ela bota lá: telefone, espelho, rouge, batom, escova de dente. E ele botou tudo no cordel. Ficou bem engraçado.
Então, no geral, tem uns poetas novos que estão escrevendo bem, mas tem alguns poetas urbanos que são o oposto: não tem nada; é uma porcaria. Mas, entre uma coisa e outra, o cordel está ativo. O cordel urbano, ele é muito mal feito e tudo, mas, pelo menos, incentiva as pessoas a continuar lendo.
Como e quando o senhor vira ilustrador e
começa a fazer as gravuras?
Entrei para o ramo da gravura pela necessidade de ilustrar o cordel. Quando escrevi o meu primeiro cordel, tinha um amigo que leu a história e disse que dava para vender. Porém, faltava uma gravura, que naquele tempo se chamava “crichê”. “Falta um crichê, não é, Borges?”. “Pois é, rapaz. Quem é que faz?”. Ele disse “Você pode conseguir em Recife, no Jornal do Comércio e no Diário de Pernambuco. Você arranja uma foto, leva lá e eles fazem. Mas eu tenho um crichê em casa de um cordel meu de muito tempo atrás. Posso lhe emprestar”. O crichê que ele tinha era do mestre Dila, de Caruaru. Era um vaqueiro correndo atrás de um boi. E, aí, coloquei essa gravura na capa do meu cordel e vendeu que foi uma beleza.
Depois, escrevi um segundo cordel, mas dessa vez não tinha mais o crichê para tomar emprestado e nem tinha quem fizesse. Assim, resolvi fazer. Lixei a madeira, risquei, cortei e fiz a gravurinha pequena. Levei na tipografia. O cara tirou uma cópia para teste e disse: “Dá para imprimir bem. Está bem lixada, bem no esquadro. Está ótima. Quem fez?” Eu disse: “Fui eu”. “Rapaz, você faz um crichê bom”. Aí, do terceiro cordel em diante, já não precisei pedir gravura para ninguém. Eu mesmo fui fazendo.
Depois que fiz uns cinco ou seis crichês, os outros cordelistas foram vendo e começaram a pedir gravuras para mim.: “Eu quero um do vaqueiro”. “Quero o casal se beijando”. “Eu quero uma moça dançando”. Cada um dizia o seu motivo e eu fazia.
Porém, no começo, só fazia crichê preto e branco. Mas aí algumas pessoas começaram a dizer: “Você não faz nenhum em cor?” Eu disse “Não. Nunca fiz não”. Mas como o povo queria que eu fizesse alguma coisa colorida, resolvi tentar. Fiz do modo tradicional, mas não deu certo porque os encaixes se desencontravam. Aí, um dia, preparei algumas tintas, comprei uns pinceizinhos finos e pintei uma parte de amarelo, outra vermelha, outra marrom, outra aqui verde e, aí, levei o papel e deixei o resto preto. Botei no papel, passei o rolo, imprimi, passei a colher e quando eu levantei, ficou colorido. O estilo é esse. Deixei lá secando. Fiz umas cinco ou seis. Depois de uns dois ou três dias, chegou lá uma mulher e querendo comprar duas gravuras. Ela disse: “Oh, ele agora está fazendo colorido. Está bonito”. Hoje, noventa por cento das gravuras que eu vendo são coloridas.
O povo adora o colorido. E já ensinei os meninos a fazerem as gravuras com cor também. Meu cunhado que trabalha lá também me ajuda muito, fazendo uma pintura bem delicada. Ele trabalha com muito cuidado e pinta bem direitinho. É devagar, mas quando termina, sai uma gravura muito bonita.
Agora, todo
mundo já sabe que nós fazemos as gravuras coloridas. Haja trabalho (risos), porque
enquanto a gente produz duas gravuras coloridas, se faz dez preto e branco. Enquanto
no preto e branco é só passar o rolo, na colorida passa-se uma hora ou duas
pintando as partes com muito cuidado. E, aí, com muito cuidado dá para tirar
duas cópias. Uma pintura colorida só dá duas cópias. Depois tem que pintar de
novo.
O que influencia o trabalho que o senhor
desenvolve? Existe alguma inspiração?
O que me inspira é a vida, é a continuação, é o movimento. É aquilo que eu vejo, aquilo que eu sinto. Também trabalho muito com o povo. Sempre faço coisas relacionadas ao popular. Gosto de retratar os acontecimentos, as tristezas e as consequências da região, além da alegria e das festas do povo. Tudo isso é que me dá inspiração.
Sem querer imitar o Ariano Suassuna, mas agindo mais ou menos como ele, procuro ser muito patriota. Ele dizia que só era brasileiro o que era popular, e eu tenho esse capricho também. Tudo o que faço é ligado à região. Já andei por vários países por aí. Vi muita coisa. Mas, mesmo assim, quero fazer coisas da minha terra, do meu lugar. Quando o turista vem de outro lugar, ele quer levar coisa daqui. Ele não quer levar coisa de lá feita aqui. Esse, então, é o capricho que tenho de trabalhar dentro da minha região e dentro do meu país. Mantenho também muita ligação com o dia a dia do povo.
Minha inspiração vem daquilo que vejo no povo. Relaciono às vezes a religião com a sociedade e vice versa. Ou coloco a boniteza e a feiura, mas sempre dentro das coisas relacionadas à vida do povo. Afinal, é disso que eles gostam. E é desse jeito que eu gosto de trabalhar. Me inspiro no povo e faço para o povo. E ali, dentro do meu trabalho, eles encontram uma coisa que toca no íntimo. E, aí, já é negócio feito. Trabalho porque eu também estou interessado em vender. Se souber que não estou vendendo o trabalho, não faço não.