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A CASA E O MUNDO

ARTIGO

LOIÇA DE BARRO DO AGRESTE UM ESTUDO ETNOARQUEOLÓGICO DE CERÂMICA HISTÓRICA PERNAMBUCANA

Publicado por A CASA em 29 de Janeiro de 2015
Por Daniella Magri Amaral

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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Arqueologia
Orientador: Prof.ª Dra. Fabíola Andréa Silva


CAPÍTULO 4

A LOICEIRA DO AGRESTE E A SUA LOIÇA DE BARRO:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PRODUÇÃO CERÂMICA TRADICIONAL NO AGRESTE PERNAMBUCANO A PARTIR DE SUAS FORMAS DE ENUNCIAÇÃO E TRANSMISSÃO


“A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, apreendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.) A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão, que transparece nas palavras de Valéry, é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. ”
(BENJAMIN, 1985 [1936]:220-221)

Introdução

Conforme mencionado no capítulo anterior, durante as escavações dos sítios Tacaimbó 1 e Tacaimbó 2 a equipe teve oportunidade de encontrar, nas feiras de Tacaimbó e São Caitano, com algumas loiceiras residentes na região que ainda se dedicavam à manufatura da loiça de barro, assim como com algumas que já haviam encerrado suas atividades. Os pesquisadores realizaram quatro entrevistas com as loiceiras, duas delas já aposentadas (Dona Noêmia Alves de Lima e Dona Maria Patrícia da Silva, conhecida como Dona Nenê Patrícia, na época com 74 e 78 anos respectivamente e ambas moradoras de Tacaimbó) e dois ainda na ativa (Dona Ivonete da Silva, na época com 40 anos, moradora de Caruaru, mas que negocia a loiça na feira de São Caitano e Seu Jorge da Panela, cuja idade não foi registrada, embora idoso, morador de São Caitano e que comercializava a sua loiça na feira de Tacaimbó). Na ocasião os arqueólogos também realizaram três entrevistas com moradores de Tacaimbó, sendo um da área urbana do município (Seu Luiz José da Silva, conhecido como Seu Lula, na época com 73 anos) e dois deles moradores do sítio arqueológico Tacaimbó 2, ou sítio Melancia, como era chamado por seus antigos moradores (Dona Pertulina Joana da Silva, conhecida como Nita, com 77 anos, e Seu Santino José da Silva, na época aos 86 anos, parente da Dona Nita). De acordo com o exposto no capítulo anterior, todas as entrevistas foram gravadas em fitas mini K7, posteriormente transformadas em MP3, e as entrevistas com as duas loiceiras na ativa, Dona Ivonete e Seu Jorge da Panela, também foram filmadas, a fim de que se registrasse todo o processo tecnológico envolvido na produção da loiça de barro.

O conteúdo das entrevistas com as loiceiras difere das entrevistas com os moradores, visto que nas primeiras, a preocupação dos arqueólogos entrevistadores era registrar as cadeias operatórias[1] empregadas na manufatura da loiça de barro, os diferentes tipos confeccionados, as denominações êmicas desta loiça, as funções de cada tipo e a maneira como eram transportadas e comercializadas. Nas entrevistas com os moradores de Tacaimbó, especialmente a entrevista com Seu Lula, o objetivo era acessar a memória destas pessoas no que diz respeito à presença de mais loiceiras na região, ao tipo de loiça que produziam, às diferenças nos tipos produzidos antigamente e atualmente, à forma de comercialização destas, bem como às maneiras como estas vasilhas eram utilizadas, possíveis reusos e descarte. No limite, tanto as entrevistas com as loiceiras quanto com o Seu Lula visavam à criação de correlatos arqueológicos. Já as entrevistas com Dona Nita e Seu Santino tinham como objetivo o levantamento da história de ocupação do lugar através da memória de seus moradores e, neste sentido podem ser compreendidas dentro de uma perspectiva de história oral de vida[2].

A constatação de que a produção da loiça de barro se constituía numa prática em vias de extinção, como já discutido anteriormente, estimulou os pesquisadores a registrar este conhecimento tradicional por meio das entrevistas. Tal preocupação se confirmou no município de Tacaimbó, quando da realização da segunda etapa de campo (entre o início de setembro e o final de novembro de 2009), com o fim da produção e comercialização neste local. Segundo informações obtidas com transeuntes, feirantes e demais comerciantes na feira-livre do município, todas as loiceiras conhecidas haviam falecido e não havia mais ninguém nas feiras, negociando loiça de barro, nem mesmo loiça com origem em outros municípios, vendida por atravessadores. Podemos dizer que em Tacaimbó o conhecimento tradicional da produção da loiça de barro morreu junto com as loiceiras. Neste sentido, a análise destas entrevistas obtidas em 2003 com as loiceiras se torna ainda mais emblemática e significativa.

Na segunda etapa de campo, as entrevistas foram realizadas exclusivamente com as loiceiras. A escolha por registrar apenas as falas das loiceiras se deve principalmente ao interesse no registro da tecnologia da produção da cerâmica, no saber-fazer loiça de barro, e nos registros de suas formas de enunciação e transmissão pelas próprias loiceiras, bem como pela possibilidade de, desta forma, construirmos uma narrativa sobre este saber-fazer mais inclusiva e multivocal. Isso também orientou a forma como foram conduzidas as entrevistas, pois optamos por não trabalhar com um roteiro de perguntas estático, mas sim, com algumas orientações sobre perguntas relativas a toda cadeia operatória da produção, desde questões ligadas a genealogia e a aprendizagem, passando pela forma de aquisição das matérias-primas, técnicas de manufatura, formas e tipos, até sua comercialização (de certa forma, as mesmas questões que orientaram o trabalho de campo em 2003), que foram surgindo à medida que as loiceiras executavam suas atividades produtivas, num diálogo estabelecido com as mesmas, sem interrupções nas suas rotinas de trabalho. Foram entrevistadas 26 loiceiras, de ambos os sexos (algumas entrevistas obtidas com mais de uma simultaneamente, uma vez que algumas executavam suas atividades em conjunto), e destas, apenas 3 estavam aposentadas, embora confessassem que, as vezes, ainda produziam alguma coisa para se manterem ocupadas. Estas entrevistas foram gravadas em arquivos de áudio MP3 e foram transcritas.

Algumas destas entrevistas também foram filmadas com auxílio de câmeras digitais, gravadas em arquivo de vídeo WAV, no entanto, na maior parte dos vídeos o foco se dá exclusivamente no registro das cadeias operatórias, contando com poucas formas verbais de transmissão deste conhecimento tradicional, servindo de base para a elaboração dos Capítulo 3 e Capítulo 5.

Tendo em vista que, como dissemos, o conhecimento tradicional da manufatura da loiça de barro em Tacaimbó morreu com as últimas loiceiras, optamos por apresentar aqui apenas as entrevistas realizadas na etapa de campo de 2003. Ainda que as informações obtidas com os moradores de Tacaimbó na época da primeira etapa de campo sejam fundamentais para compreensão da história de ocupação da região a partir da perspectiva de seus próprios ocupantes, e não das narrativas históricas oficiais hegemônicas, homogeneizantes e excludentes, e contribuam, assim, para a construção de uma narrativa histórica multivocal, neste capítulo, nos deteremos na análise das entrevistas com as loiceiras. A escolha destes discursos em detrimento dos discursos dos moradores, parte, em primeiro lugar, do interesse na relação entre o conhecimento da manufatura cerâmica, isto é, o saber-fazer loiça de barro e as formas de enunciação e transmissão deste saber-fazer através da utilização da linguagem e dos gestos. Mão, voz e alma (o conhecimento) são indissociáveis tanto na arte de narrar quanto na arte de moldar os objetos, conforme sugere o texto de Benjamim na epígrafe deste capítulo e, destarte, devem ser analisadas em conjunto.

Deste modo, neste capítulo, num primeiro momento caracterizaremos o tipo de conhecimento por elas transmitido como tradicional, assim como o tipo de sociedade em que elas estão inseridas, posteriormente definindo os contextos de transmissão do conhecimento (gestual ou oral) na interlocução com os entrevistadores e, no limite, com aprendizes, abordaremos a relação entre a memória e o saber-fazer, caracterizado nas cadeias operatórias.

A loiceira e a loiça de barro

A profissão da minha família era essa, minha avó fazia, minhas tias... lembra Dona Nenê Patrícia que desde os 7 anos já fazia loiça de barro. Dona Ivonete aprendeu a fazer com a mãe e com a avó, também desde bem pequena, aos 8 anos de idade, ao contrário de Dona Noêmia que aprendeu com a mãe de sua cunhada, Dona Jarmilina, depois dos 25 anos,
Dona Jarmilina disse: “você vai aprendê... eu vô orá e você vai aprendê”. Aí eu fiquei que ela orô muito que eu aprendi. Viu minha vontade di aprendê e eu sei qui ela orô muito e que quando foi um dia eu comecei fazê uma jarra e levantei ela, que ela é uma peça muito ruim de se levantá... Eu levantei a jarra aí ela disse “eu não disse qui você ia aprendê!” Aí pronto! Depois disso eu aprendi a levantá tudo. Eu faço panela, faço torra-café, caqueira, chaleira de barro dessas do mesmo jeito da de alumínio, tudo, cavalinho, a cobra, tudo num monte de barro eu faço.
Cozinhar na panela de barro já era hábito dos antigos. Dona Noêmia conta que o povo comprava muita panela no tempo qui [ela] num era nem nascida. Purque num existia gás. Segundo Dona Nenê Patrícia num tinha essa história de comprar alumínio. Todo mundo comprava panela de barro... Não existia alumínio. Mas hoje em dia Dona Ivonete, que ainda faz loiça de barro pra vender na feira de São Caitano, se queixa que faz assim, mas não vende mutcho não, sabe?! Antes ela e a mãe faziam e vendiam bastante. Faziam de 90 a 100 peças por semana ia pra feira e vendia muito. As veiz quando era meio dia já não tinha mais... naquela época vendia bastante, mas hoje em dia quase ninguém compra mais. Antigamente muita gentche fazia, agora só quem faz agora é eu.
Fazer loiça de barro, cozinhar e comer em loiça de barro é coisa cujo tempo se perdeu na memória do povo, ainda que hoje seja diferente. Como lembra Dona Noêmia depois qui existiu o gás o povo dos sítios todo mundo tem o seu fugão e seu bujão. Aí...num adianta mais somente trabalhá pa barro. Além disso, os jovens também não se interessam pelo trabalho com o barro. Dona Ivonete tem três filhas moças, mas ninguém faiz. Não quiseram aprender porque acham sujo... suja as unhas.

O conhecimento envolvido na produção das loiças de barro pelas loiceiras desta região do agreste pernambucano era repetido há gerações, bem como a maneira de ensinar este conhecimento (no ambiente familiar, de pais, avós, tios e cunhados, para filhos, netos, sobrinhos e cunhados, através da experimentação e da tentativa e erro, desde muito cedo, na maioria dos casos), e a maneira como ele era apropriado tanto pelas loiceiras quanto pela população que utilizava e utiliza a loiça produzida por elas. Segundo Menget e Molinié (1992) o conhecimento tradicional envolve três propriedades, quais sejam a repetição (ainda que haja transformações idiossincráticas ou temporais), a focalização da atenção (visto que aquilo que é tradicional chama mais atenção e convence mais) e a autoridade. Fazer loiça de barro é um conhecimento tradicional, não apenas porque este conhecimento é reproduzido há gerações, no agreste pernambucano, em uma sociedade sertaneja em que os modos de vida e a relação com o meio, são bem particulares[3], mas também porque atribui a quem detém o conhecimento deste saber-fazer, a loiceira, a autoridade para criá-lo, reproduzi-lo, reinventá-lo, ensiná-lo, difundi-lo, atribuindo também identidade tanto à loiceira quanto a comunidade da qual ela faz parte e que se apropria deste conhecimento.

Menget e Molinié (1992) destacam que a tradição é ignorada por quem a segue e que aparece quando desaparece. Este parece ser o caso com estas loiceiras do agreste, que apesar de partilharem deste conhecimento desde há muito, agora se preocupam com a diminuição das loiceiras e de suas produção e venda, não só por motivos econômicos, já que a produção da loiça é apenas uma complementação da renda e segundo Dona Noêmia se dependesse de trabaio de barro [ela] tinha morrido de fome há muito tempo, mas porque com pesar, se lembram do desinteresse dos jovens e que ninguém mais cozinha em panela de barro depois que chegou o gás e o alumínio.

No entanto, como aponta Lenclud (1994), tradição não se liga apenas a ancestralidade, mas se conjuga no presente, e pode ser entendida como a continuidade dentro da transformação. Assim, tanto a diminuição do número de loiceiras, já que apenas Dona Ivonete e Seu Jorge da Panela ainda produziam loiça de barro, quanto algumas modificações na produção, como o aumento da procura pelas caqueiras[4] e por vasos para cemitério em detrimento da queda na procura por panelas e, especialmente, pratos, representam um risco à continuidade deste conhecimento (sobretudo a diminuição das loiceiras e de sua produção) ao mesmo tempo, que se constituem em transformações internas necessárias à manutenção e perpetuação deste conhecimento tradicional. As transformações no conhecimento, efetuadas na prática cotidiana das loiceiras em resposta às mudanças na sociedade, dão continuidade a ele, e é essa continuidade, ou a repetição do transformado, que permite que ele se mantenha como tradicional. É preciso, no entanto, não perder de vista que é o desinteresse dos jovens o principal fator de risco à continuidade e sobrevivência desta tradição.
Autores como Boyer (1990) definem a tradição como um tipo de interação que resulta na repetição de certos eventos comunicativos. Extrapolando a definição de Boyer, temos que a relação entre o processo de produção da loiça de barro e as formas de enunciação deste saber-fazer, através da linguagem e dos gestos, bem como a relação entre o artesão e seus interlocutores, e entre ele e seus objetos, pode ser compreendida como eventos comunicativos em si, visto que transmitem um saber e uma prática, que é a produção da loiça e que, desta forma, são igualmente compreendidos enquanto tradição.

Considerando que os eventos comunicativos não podem ser concebidos fora de seus contextos de interlocução (BAUMAN, 1986), o processo de transmissão do saber-fazer loiça de barro difere em função tanto destes contextos como dos interlocutores, isto é, dos eventos comunicativos. Do mesmo modo, a transmissão do saber-fazer será diversa, em função das performances discursivas[5], isto é, da maneira como este conhecimento será transmitido.

Assim, as informações obtidas sobre a manufatura da loiça durante as entrevistas certamente são diferentes das obtidas por eventuais aprendizes das loiceiras, assim como diferem da maneira como elas aprenderam a fazer a loiça. Esta constatação é fundamental para a compreensão, nas entrevistas, de quais discursos foram construídos na relação dialógica[6] (CRAPANZANO, 1991 e TEDLOCK, 1992) entre o artesão e o seu interlocutor (a arqueóloga), e que não fazem parte das prescrições e fórmulas ensinadas durante a aprendizagem do saber-fazer loiça de barro; quais destes discursos estão dentro destas normas prescritivas; quais performances discursivas utilizadas em cada tipo de interlocução e de prescrição; quais discursos correspondem à memória dos artesãos e à relação entre memória e esquecimento (seja sobre o saber-fazer ou sobre sua própria história), evidenciando e diferenciando os aspectos do não dito (se se enuncia ou se silencia conscientemente, ou não); abordando, assim, a tradição a partir do seu próprio discurso (Bauman e Sherzer, 1975) como forma de compreendê-la.

Diante disso, temos que o pesquisador dificilmente acessará completamente o conteúdo desta tradição, seja através da memória das loiceiras, acionada na interlocução com os entrevistadores, ou na observação por parte destes da relação entre a memória e as cadeias operatórias envolvidas neste saber-fazer, uma vez que ele não é parte integrante desta sociedade. No entanto, a partir destes dois procedimentos é possível acessar e compreender os processos de transformação pelos quais este conhecimento têm passado.
As diferenças nos discursos decorrentes dos contextos de interlocução e dos interlocutores ficam latentes, por exemplo, na necessidade constante das loiceiras explicarem termos utilizados para definir instrumentos de trabalho, espécies vegetais, objetos, e todo o tipo de regionalismo[7] utilizado por elas no momento da interlocução, especialmente quando explicam as sequências de gestos e atividades empregadas na manufatura da loiça de barro, a ponto de considerarem suas performances discursivas como outra língua, como quando Dona Noêmia diz que o vaso de planta se chama caqueira na língua da gente.

Quando mostra como colocar as vasilhas dentro do forno para iniciar a queima, Seu Jorge da Panela alerta: Aí coloca todinhas as vasilhas assim. Presta a atenção, viu!
A performance dos eventos comunicativos é um elemento importante tanto no que diz respeito às maneiras de dizer como fazer, como na necessidade da prescrição correta das sequências operatórias. Ao mostrar as sequências corretas e pedir para que se prestasse a atenção nos procedimentos adotados Seu Jorge reconhece, mesmo que inconscientemente, a sua autoridade diante deste conhecimento e o desconhecimento do seu interlocutor. Ao mesmo tempo, a autoridade que o conhecimento tradicional lhe confere é suficiente para que ele se empenhe em não permitir que este seja distorcido por quem ignora as fórmulas corretas. Ainda que a linguagem e os gestos empregados por Seu Jorge aproximem seu interlocutor do seu conhecimento, elas também o distanciam dele.

Qualquer que seja o conteúdo destes eventos comunicativos obtidos na interlocução com as loiceiras, seja sobre a maneira como se escolhe o barro; o tipo de barro utilizado; como preparar o barro; como levantar a panela; quais instrumentos utilizar; quais formas são feitas; quais funções da loiça; como, onde e por quanto tempo secá-las; como preparar o forno; como queimar as loiça; como transportá-las; onde e por quanto vendê-las; como utilizá-las; qualquer aspecto relacionado à produção e uso das loiças de barro comunicado durante as entrevistas e, independente de quem é a loiceira, a comunicação segue sempre as mesmas fórmulas instrutivas que, como vimos no caso do Seu Jorge da Panela, dão autoridade a ela e a distanciam do seu interlocutor, o pesquisador. Isso se deve não só ao contexto de enunciação destas fórmulas, que é diverso dos contextos em que elas aprenderam a fazer a loiça de barro, mas também da necessidade de manutenção do conhecimento através das prescrições (num processo de valorização deste conhecimento) expressa na relação entre cadeia operatória e memória e entre memória e esquecimento, bem como na construção dialógica destes discursos, que nunca é equivalente.

Leroi-Gourhan (1983 [1964-65]), quem primeiro apresenta o conceito de cadeia operatória, inicialmente como experiências do indivíduo que levam ao condicionamento através de tentativa e erro, isto é, do processo de ensino-aprendizagem, demonstra que cadeia operatória, memória e linguagem são indissociáveis. Para ele os comportamentos operatórios se inscrevem na memória (coletiva e individual) através das experiências e esta memória, por sua vez, se constitui através da linguagem.
Segundo este autor, o comportamento operatório pode ser dividido em três planos, a saber: o plano das cadeias operatórias profundas, relacionadas aos comportamentos automáticos e biologicamente determinados; o plano das cadeias operatórias maquinais, relativas às cadeias operatórias adquiridas pela experiência e pela educação, em geral ainda durante a infância; e o plano do comportamento lúcido, que permite, através de linguagem, a intervenção nas cadeias operatórias maquinais, que pode conduzir a rupturas das cadeias existentes e a criação de novas cadeias operatórias. Interessam neste trabalho os planos do comportamento operatório maquinal e do comportamento lúcido, que são aqueles que aparecem no comportamento técnico nos processos de manufatura das loiças de barro.

Para Leroi-Gourhan (op.cit.) a fixação das cadeias operatórias maquinais, responsáveis pela execução de qualquer atividade, na memória dos indivíduos se dá com o uso de fórmulas específicas de linguagem, como músicas, receitas, provérbios, conversas, entre outros, além dos gestos específicos a cada atividade. Os detentores desta memória acabam adquirindo a função de mantenedores desta tradição. Isto é o que, de certa maneira, ocorre com Seu Jorge da Panela e com Dona Ivonete, já que eram os únicos que ainda faziam  loiça de barro – quando da pesquisa de campo em 2003, em São Caitano e Caruaru – o que também explicaria a preocupação de Seu Jorge em instruir seus interlocutores a prestarem a atenção em seu conhecimento.
Neste sentido, é possível afirmar que tanto as performances orais, quanto gestuais verificadas nas cadeias operatórias de produção da loiça de barro entre as loiceiras do agreste são interdependentes e estão inscritas na memória individual de cada loiceira desde a infância. Também é possível supor que estas operações estejam inscritas na memória coletiva daquela sociedade sertaneja, na medida em que reproduzem aquele conhecimento ao comprar e utilizar a loiça de barro, ao encomendar formas específicas, ao forçar mudanças na produção (sejam de caráter formal, qualitativo ou quantitativo).

Semelhantemente ao proposto por Leroi-Gourhan, Severi (2000, 2002, 2003) aponta que a oposição entre oralidade e escrita é equivocada, visto que as sociedades sem escrita possuem formas de expressão iconográfica associadas à oralidade, e podemos dizer também, às formas de expressão materiais, como a produção de objetos rituais, ornamentais, utilitários (como a cerâmica), entre outros. Assim como Leroi-Gourhan, Severi relaciona a memória aos motivos iconográficos, através da utilização do conceito de paralelismo. O paralelismo pode ser compreendido de duas maneiras complementares: primeiro, como estruturas mentais paralelísticas que se constituem como séries de repetições, que podem ser mentais ou de estruturas orais; depois, o conceito pode ser entendido como imagens associativas entre memória e oralidade, entre imagens mentais e registros gráficos, bem como entre imagens mentais e objetos. Revel (2005) propõe a existência de princípios associativos da memória, que se constituem em imagens mentais que funcionam como pequenos lembretes da memória no momento da narrativa, num conceito muito próximo ao paralelismo formulado por Severi.

Pensando nos conceitos de paralelismo, de princípios associativos da memória e de cadeia operatória é possível afirmar que quando as loiceiras produzem sua loiça de barro se utilizam de imagens formadas na memória, que permitem que antes mesmo de levantarem a panela, no momento em que selecionam o barro, já saibam qual será o resultado final. A formação destas imagens em suas memórias, além disso, contribui tanto para a continuidade, quanto para a transformação deste conhecimento, na medida em que é através dela que o saber-fazer atua em suas mãos reproduzindo velhas fórmulas e criando novas formas.
Neste ponto podemos voltar a Walter Benjamin, segundo o qual é impossível dissociar o que é narrado, da memória, do saber-fazer, da linguagem e dos gestos (a alma, o olho, a voz e a mão), num processo de transmissão de conhecimentos que ele considera como artesanal. A relação entre o saber-fazer loiça de barro e as formas de transmissão deste conhecimento, através da linguagem, dos gestos, da visão e de todas as sensações, pelas loiceiras do agreste também não pode ser separado, pois que é uma memória apreendida, aprendida e transmitida a partir de todos os sentidos.

Considerações Finais

Como vimos no discurso de algumas loiceiras as mudanças na produção da loiça de barro ocorreram mais fortemente a partir da introdução do fogão a gás – visto que a loiça de barro não aguenta as altas temperaturas deste tipo de fogo e se quebram em poucos dias – bem como com a introdução subsequente de panelas de alumínio –  uma vez que a loiça de barro, embora mantenha o calor por mais tempo do que as de alumínio, se quebram com muita facilidade e tenham que ser repostas com mais frequência (em virtude da grande quantidade de grãos de quartzo encontrados no barro com que se faz panela, especialmente selecionado por este motivo).
Embora a proposta deste capítulo seja a interpretação dos discursos das loiceiras no momento de enunciação e transmissão do saber-fazer loiça de barro, a pesquisa etnográfica desenvolvida com estas loiceiras visa, em última instância, a interpretação da cerâmica arqueológica encontrada nos sítio Tacaimbó 1 e Tacaimbó 2, e a caracterização de artefatos cerâmicos históricos, através da abordagem etnoarqueológica, conforme afirmamos na Introdução deste trabalho.
Deste modo, no Capítulo 5, com a análise da loiça de barro arqueológica resgatada nos sítios Tacaimbó 1 e Tacaimbó 2, bem como a análise pormenorizada das cadeias operatórias envolvidas na produção da loiça de barro no Agreste Central Pernambucano atualmente e de todos os discursos envolvidos na enunciação deste saber-fazer tradicional, iniciaremos a reflexão acerca das continuidades e mudanças ocorridas neste conhecimento e nesta tecnologia verificadas atualmente e no passado, apontando a validade do uso de correlatos entre o registro etnográfico e o registro arqueológico através da abordagem etnoarqueológica.


Notas

1. Como visto no Capítulo 3, definimos cadeia operatória como a série de operações empreendidas numa determinada matéria-prima, transformando-a de seu estado natural em outro manufaturado (LEMONNIER, 1986: 149), conceito este que será ampliado em outros capítulos.

2. Como proposto por historiadores da História Oral, como Bom Meihy (1996) e Thompson (1992).

3. Para uma melhor caracterização do modo de vida do sertanejo ver Ribeiro (1997) e Diegues (2001).

4. Aqui mesmo o povo só gosta mesmo di caqueira, diz Dona Noêmia, que explica que caqueira é um tipo de vaso de planta que é colocado diretamente na terra, em que a planta é colocada no orifício central e em volta dela, isto é, dentro da caqueira, é colocada água, o que impede a infestação de formigas nas plantas.

5. No conceito de performance formulado por Bauman (1986) eventos narrativos (a forma de narrar) e eventos narrados (o conteúdo narrado) devem ser considerados conjuntamente e é a forma como as histórias são contadas que caracterizam as sociedades. Aqui nos apropriamos deste conceito não só em referência a forma como histórias são contadas, mas a maneira como o saber-fazer é transmitido, na relação entre a linguagem e os gestos.

6. Entendendo o diálogo como um objeto da etnografia e não como um método (Crapanzano, 1991 e Tedlock, 1992).

7. A presença de termos como xerém (pedrinhas pequenas ou comida típica de milho pilado grosso, carne e molho), espragatadinha (rasa), cacúlo (como escama de peixe), borna (borda), calvão de jurema preta (carvão feito de um tipo de planta típico da caatinga - Mimosa tenuiflora), avaiado (pó branco utilizado para misturar na argila e pintar as vasilhas de branco, como um engobo), buchuda (panela para cozinhar feijão, milho, xerém, pirão, mais alta e com bojo maior), mucunã (se referindo à semente desta trepadeira - Dioclea grandiflora - que sobrevive às secas intensas e é utilizada para alisar as panelas depois de secas), paieta (faca de pau ou palheta), garrancho (pequenos galhos) e levantar a panela (se referindo a todo o processo de manufatura da vasilha, desde a argila até a forma pronta), entre outros, são constantemente explicados pelas loiceiras.