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A CASA E O MUNDO

ENTREVISTA

MARLÚCIA CÂNDIDA

Publicado por A CASA em 29 de Janeiro de 2015
Por Daniel Douek e Agda Sardinha

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"Se o estado não for um grande motivador, o artesanato não ganha a visibilidade necessária para o seu desenvolvimento"

Marlúcia Cândida é arquiteta e primeira dama do estado do Acre


Fale um pouco sobre sua trajetória. Você é formada em arquitetura e já desenvolveu alguns projetos na área do design e artesanato por meio do governo do Acre. Como se desenvolveu sua trajetória nessa área?
Comecei meu curso de arquitetura no Rio de Janeiro, mas terminei aqui em São Paulo, na Belas Artes. Sou pós-graduada em Planejamento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Acre (UFAC), mestre em Arquitetura pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-graduada em Light Design. Atuo constantemente com arquitetura e estou ajudando o governo do estado do Acre a introduzir políticas ligadas à gastronomia e ao design, que também se relaciona com a parte do artesanato.

Há uma questão interessante, que chama muito a nossa atenção, que é o papel muitas vezes desenvolvido por primeiras-damas em diversos governos na área da cultura. Ao pensarmos nesse ponto logo vem à cabeça a figura da Ruth Cardoso como uma pessoa que foi precursora nessa área e que promoveu projetos que ainda hoje estão vigorosos, principalmente na área do artesanato por conta do ArteSol. Então, gostaria que você falasse a respeito do papel dessas mulheres nesse setor.
Nós tivemos o prazer de receber a Ruth Cardoso no Acre quando o meu cunhado, Jorge Viana, era prefeito. Ela esteve lá pela Comunidade Solidária e, naquela época, nos ajudou muito com a questão artesanal. E a minha atuação nessa área do artesanato, assim como no design e na gastronomia, surgiu não simplesmente como um papel de primeira-dama, mas pela minha vontade de estar inserida, de alguma maneira, dentro do governo. O objetivo, então, era poder ajudar de alguma forma, mas sem estar longe da minha profissão.
Aliado a esse ideal, a questão da gastronomia e do design é algo extremamente necessário num estado que está se desenvolvendo. Estamos com índices de crescimento positivos, mas precisamos agregar alguns valores a esse desenvolvimento. Portanto, torna-se necessário valorizar à nossa gastronomia, melhorar a nossa hospitalidade. Estamos numa rota de ligação entre o Brasil com o Peru. Já temos a estrada que faz essa ligação e o Peru é um país extremamente rico na gastronomia, extremamente rico na cultura, e nós estamos ali, nesse corredor de passagem. Temos uma gastronomia também muito expressiva, mas que precisa ser melhor pesquisada.  Na verdade, precisamos estender as pesquisas em cima da nossa gastronomia e, com isso, gerar emprego e renda. Para atuar nessa área, o governo está construindo uma escola de gastronomia e hospitalidade.
E, no setor do design, uma das nossas vantagens é a grande quantidade de matéria-prima. A madeira mais certificada do Brasil está no Acre. A nossa agenda de política ambiental, sobretudo de certificação da madeira, tem sido bem desenvolvida. Hoje em dia grande parte da nossa madeira é extraída de projetos de manejos florestais. Contudo, nos falta agregar valor a essa madeira e gerar mais emprego e renda, deixando de sair do Acre somente em pranchas, para sair como um produto. E, para isso, torna-se necessário agregar o design.
Além da madeira, temos o látex, que também é uma matéria-prima da floresta que tem uma história muito rica, totalmente conectada com o processo de formação do território acreano. Foi a exploração do látex que fez com que o território acreano deixasse de ser boliviano e passasse a ser do Brasil. E, com isso, o látex foi um produto que era a razão dos homens saírem do semiárido e ocuparem a floresta amazônica. São os conhecidos “seringueiros”. E esse seringueiro extraía o látex para a indústria da guerra, para a indústria do pneu. E, acabando essa indústria, o Brasil perdendo esse mercado, o que fazer então com a atividade do seringueiro?
Para valorizarmos isso, já que o estado do Acre tem duas grandes reservas extrativistas (a reserva extrativista Chico Mendes e a reserva extrativista do Juruá), a intenção é que essas pessoas continuem morando na floresta. Afinal, elas têm o direito adquirido de morar naquele local. Mas como é que elas vão morar lá sem renda? O que é que a gente pode fazer com o látex, com os produtos que são extraídos da floresta, para que essa pessoa adquira uma renda e tenha o prazer de morar dentro da floresta, sendo até um guardião?
Sobre essa questão, nós estamos motivando o seringueiro a trabalhar com o sapato de látex. Esse é um sapato de seringa, criado pelo próprio seringueiro para sobreviver dentro da floresta. Ele inventou um sapato muito rude, na verdade. Era uma bota para viver e sobreviver num ambiente úmido, encharcado, ameaçador. E esse sapato, hoje em dia, passou a ser um produto com design, com cores. Antes ele era só preto. Agora, com a tecnologia de tratamento desse látex, que não é mais defumado, acrescentasse um produto químico para ele coagular e, assim, fica pronto para receber o tingimento. Com tudo isso, a peça se transforma num sapato muito mais adequado ao clima quente. E agora ele é uma sandália de tiras, um sapatinho com tiras coloridas.
Promovemos também outros trabalhos que agregam o látex a outros componentes, como jogos americanos, painéis decorativos e pequenos objetos feitos de seringa que retratam bem a cultura do seringueiro, mostrando os animais e como que o seringueiro caminha na floresta, entre as árvores. Também são objetos do design e do artesanato em si.
Além disso, começamos a desenvolver biojoias, que são feitas de sementes que encontramos nas florestas. No Acre temos a jarina, considerado o nosso marfim da Amazônia. Então, as biojoias têm dado um resultado muito bacana, porque abre para várias possibilidades de trabalho. E agora nós estamos começando a investir também no trabalho com bambu. Dizem que o Acre é uma das regiões onde se encontra a maior floresta de bambu do mundo. Então, estamos começando esse trabalho de explorar melhor o bambu, fazendo com que ele saia do nosso estado como um produto acabado, e não em varas.
Porém, como fazer? Como agregar design em cima disso? Para nos ajudar nessa questão, temos feito uma parceira com a Itália já há alguns anos. E a partir de 2011, essa parceria ficou mais intensa. Fui à Itália em missão conversar com o governo, conversar com escolas design e buscar apoio para fomentar o nosso design. Por fim, fizemos um convênio com o Politécnico de Milão, que está conosco desde 2012. Uma das primeiras ações desse convênio foi a elaboração de um curso que foi oferecido para trinta pessoas, entre marceneiros, designers e arquitetos, com o objetivo de trabalhar a madeira. Esse curso gerou um catálogo de produtos com móveis de madeira e pequenos objetos. Depois, o Politécnico continuou com a gente fazendo um trabalho dentro de algumas marcenarias para mostrar como é que se monta uma linha de fabricação capaz de produzir peças até para exportação. E, agora, o Politécnico também está nos ajudando a formular um projeto pedagógico para uma escola de design. A ideia é criar uma instituição que carregue características brasileiras, mas que também possua a chancela do Politécnico. Com o desenvolvimento dessa parceria queremos ter o Politécnico como um braço que vai acolher os nossos alunos, quem sabe, com aulas virtuais de Milão, de dentro do Politécnico para o Acre; e também do Acre para o Politécnico. Estamos trabalhando nisso e acreditamos que em 2015 essa escola já esteja retificada.

Você ilustrou muito bem como a relação entre design e artesanato pode gerar frutos interessantes para a população do Acre, para o seringueiro e para outras pessoas que trabalham com as matérias-primas locais. Queria que você falasse um pouco dessa relação, principalmente no que se refere aos cuidados que devem ser tomados quando você coloca designers, arquitetos, “pessoas da metrópole”, vamos dizer assim, em contato com populações locais, muitas vezes não escolarizadas. Quais são os cuidados que precisam ser tomados para que seja uma relação real de troca, equilibrada, e não uma coisa de fora para dentro, de cima para baixo?
O principal cuidado que nós tomamos é o respeito á cultura local. O acreano é um povo muito consciente e até muito politizado, eu diria. Com isso, ele tem a sua cultura própria e uma personalidade muito bem definida. É um povo muito acolhedor, que recebe o estrangeiro muito bem, seja ele de outro país seja de outro estado brasileiro. E acolhe ideias e propostas com bastante desejo também. Mas, ao mesmo tempo, é um povo guardador da sua opinião e que se sente muito ofendido quando a coisa vem mesmo de cima para baixo, ou quando sente que se quer só tirar e não trabalhar em conjunto, harmoniosamente.
Assim sendo, nós sempre tivemos esse cuidado de trabalhar de uma forma mais horizontal. Temos desenvolvido iniciativas com comunidades que estão dentro da floresta e até comunidades indígenas também, com o intuito de resguardar a cultura desse povo. Por exemplo: o tempo todo nós estamos tendo o cuidado de dizer que não fomos nós que inventamos o sapato de seringa. Esse sapato tem uma história que começou há muito tempo. O que nós estamos fazendo é auxiliar as comunidades atuais a reproduzir esse objeto com um olhar contemporâneo.
Portanto, não foi o governo que inventou o sapato. O nosso papel é auxiliar o artesão para que ele desenvolva o seu produto e consiga vende-lo. Afinal, o que é que acontecia com o nosso sapato? Você olha o produto e diz “quero um do número 37”. Porém, não existe uma numeração definida, então o “correto” acaba sendo dizer “quero mais ou menos de tal número”. É só experimentando que dá para saber se vai caber ou não. Assim, precisamos auxiliar os produtores nessas coisas mais técnicas.
E ainda existem outras questões relacionadas ao sapato, além da numeração. O látex, por exemplo, tem um pequeno cheiro que para algumas pessoas incomoda, para outras não. Então, o estado entra para auxiliar nesse ponto. Também ajudamos o produtor a embalar e a etiquetar melhor esse produto para que não fique igual a um produto de barraca de rua. Não queremos isso. Nós queremos que o sapato seja uma orquídea que dá na floresta e que todo mundo quer ter; que todo mundo quer olhar porque acha muito bonito.
E é assim com tudo que é feito dentro da floresta também. Nos últimos anos temos tido parcerias muito bacanas. O Marcelo Rosenbaum esteve lá com os nossos índios fazendo um trabalho lindo com as miçangas. E tem uma comunidade lá na região de Cazumbá-Iracema que faz um trabalho muito legal também, produzindo jogo americano com peças de látex e outros componentes.
E eu diria a você que o governo tem ajudado essas comunidades através do Pronatec. Com esse programa do governo federal nós temos conseguido dar formação a várias comunidades. Todos os que participam do curso recebem um certificado, seja de artesão, costureira, etc. O Pronatec dá cursos também na área da alimentação e até para barqueiro. A comunidade solicita um treinamento, e a gente organiza o curso através do Pronatec para atender aquela demanda.
Esses dias mesmo eu estava em São Paulo e me ligou uma pessoa de uma comunidade lá do meio da floresta, de uma área chamada rio Croa - eu sempre falo que, se existem fadas e gnomos, estão lá no rio Croa. É um rio de águas pretas com vitórias-régias e capim verde em cima. Lá há uma comunidade onde eles estão fazendo um curso de costura. Então, essa pessoa me ligou e disse: “Marlúcia, o Pronatec não está liberando combustível para as mulheres virem de barco para participar das aulas”. “Elas não podem faltar ao curso. Então vamos providenciar o combustível para elas chegarem aí de barco”.
No geral, portanto, é esse o cuidado que nós temos ao chegar numa comunidade. Saber que a comunidade tem o seu conhecimento e que seus integrantes estão muito conectados com o mundo aqui fora, já que nossos índios possuem acesso à internet. E não é no meio da estrada: eles têm internet dentro da floresta. Para você chegar lá, o caminho mais fácil é ou ir de helicóptero (que nós não temos) ou pegar um avião, chegar até certa cidade, depois pegar um ônibus ou um carro e descer na beira de um rio para, enfim, encarar oito horas num barquinho com motor de popa. E aí você chega lá e tem internet. Você chega lá e tem índio formado, índio fazendo medicina em Cuba, índio que está indo agora fazer uma formação para ser Buda. Então, os nossos índios são muito mais antenados e sabem do que está ocorrendo ao seu redor. Você tem índio lá que fala dois ou três idiomas.

Interessante. Você lembrou que também existem trabalhos feitos com os indígenas. Embora sejam indígenas, por aquilo que você relata, eles já estão bastante integrados, conectados, etc. Existem especificidades no trabalho feito com os indígenas em comparação ao trabalho desenvolvido com os artesãos não índios?
É uma mistura do índio com o branco. Então, temos cacique que é casado com mulher branca, por exemplo. Temos pessoas brancas casadas com os índios e que moram dentro da aldeia, ou moram na cidade.

Mas o trabalho que é desenvolvido com as comunidades indígenas é diferente daquele feito com comunidades não indígenas (de ribeirinhos, de povos da floresta, dos seringueiros)?
Os trabalhos são bem diferentes, e acaba mudando de etnia para etnia também. Na região existem os Hunikuins, por exemplo, que trabalham mais com as miçangas. Há também os Yawanawa que produzem peças com miçangas e penas. Além disso, eles possuem uma cerâmica própria – que é rude, mas muito bonita. Existem outras comunidades que trabalham com palha também.
Desse modo, cada etnia acaba tendo o seu próprio tipo de artesanato. Há outra comunidade, das mulheres Ashaninkas, que elaboram um tecido de algodão e produzem roupas bem interessantes. Elas produzem os seus próprios vestidos. Elas fazem o tecido com o algodão, tingem com tinta de urucum ou jatobá e depois costuram à mão ou na máquina de costura. Diria que 99% delas usam essa roupa constantemente. É uma característica própria delas, e, além disso, a costura é muito bonita.
Fora do contexto indígena, também existe a produção dos ribeirinhos e de outros que moram dentro da floresta. O artesanato deles, contudo, é diferente daquele feito pelos indígenas. É o caso do Doutor da Borracha, por exemplo, que faz o sapato de seringa. E, agora, ele está fazendo um colar a partir da sobra do sapato. Há também o caso do Cazumbá e Iracema, que é também uma comunidade bem distante e que trabalha com um tipo diferente de látex. E, no geral, essas são as comunidades que receberam bastante incentivo do estado.
Além desse artesanato com o látex, sem ser indígena, existe a produção de biojoias, que acontece geralmente dentro das cidades. Nas áreas mais urbanas também se vê a confecção de pequenos objetos feitos com o reaproveitamento de madeira. Os artesãos pegam uma madeira que estava caída, por exemplo, e transformam em bowls, vasos.

Uma das coisas que a gente sempre se questiona quando pensa na questão da sustentabilidade, principalmente no caso de comunidades que trabalham com matérias-primas naturais, como é o caso desses que você cita, é que a própria valorização do artesanato, o próprio desejo que esses objetos despertam, por exemplo, numa cidade como São Paulo, poderia fazer com que o aumento da demanda gerasse certo desequilíbrio na outra ponta. A gente verificou casos como esse, por exemplo, quando determinados modos de fazer foram registrados como patrimônio imaterial brasileiro. Em algumas situações isso levou a um aumento muito significativo da produção. Por exemplo, as panelas de barro em Goiabeiras, no Espírito Santo. De repente, começam a ser vender muitas panelas e disponibilidade de argila começou a ficar numa situação muito crítica, porque estava acabando o barro. Vocês se deparam com esse problema? Existe uma preocupação em relação a esse problema?
O látex, para a nossa realidade, não é um problema. Afinal, o látex está lá: nós temos mais de 80% da nossa floresta nativa preservada. E você não precisa derrubar a árvore para extrair o látex. Você só precisa saber tirar o látex para não sangrar, para não matar a árvore. É necessário saber o momento de dar o descanso para que aquela árvore “descanse” e produza mais látex.
Hoje a gente já abastece a segunda maior fábrica de preservativos do Brasil – que fica no Acre e recebe o látex dessas comunidades. Então, o látex é um produto que para a gente é como água na Amazônia. E também temos cuidado das nossas florestas. Grande parte dela está preservada. E motivar o seringueiro a trabalhar com o látex é muito interessante, porque naturalmente ele já é o guardião da floresta; e ao incentivá-lo a produzir e a usar materiais do local onde ele mesmo vive, o seringueiro passa a se sentir mais guardião ainda. E hoje em dia há vários projetos do governo dentro da floresta que dão uma condição de vida formidável. Você tem escola. Você tem saúde itinerante, que são médicos e equipes médicas que vão para dentro da floresta prestar atendimento. Existem várias ações do governo lá dentro não deixando essas comunidades sozinhas, sempre oferecendo algum amparo.
E também não temos grandes problemas com o artesanato feito em madeira. Sempre incentivamos o uso da madeira certificada, proveniente do manejo florestal sustentável. Além disso, o artesão não trabalha com uma tora grande de madeira. Ele trabalha com sobras, com aquilo que iria virar lenha. Ele trabalha com pequenos pedaços de madeira.
E a questão da semente também não é problema, porque, se a floresta está viva e dando semente, temos uma fonte sustentável de onde podemos retirar nossa matéria prima. Sobre esse ponto, o nosso maior problema é evitar que sacos de semente sejam vendidos para a produção de biojoias em outros lugares. Além de querermos que a produção local se desenvolva, é importante mostrar para quem vai adquirir o nosso produto que ele tem origem, que tem uma história. E o mais interessante ainda é comprar de quem está lá dentro da floresta, produzindo. Há uma energia proveniente da floresta que se agrega ao produto artesanal. E esse é o charme do produto. Afinal, a peça pode ser feita em qualquer lugar. Em São Paulo, por exemplo, há floresta de seringa plantada. Então, não estou falando de um sapato que só pode ser feito no Acre. Estou falando de um apelo ambiental. Se o mundo quer que a floresta seja preservada, então vamos olhar para esse homem que está lá dentro. Ele precisa de coisas como nós. Ele precisa fazer uma cirurgia do coração como nós. Precisa usar óculos. Ele quer formar um filho, ele quer ter um carro, ele quer energia, ele quer ter geladeira. Ele quer televisão como a gente. Ele quer viajar.
Em 2014 levei o Doutor da Borracha para Milão. Ele nunca imaginava vender o sapato dele na Europa. Era uma coisa que nunca passou pela cabeça dele. Então, ao promovermos essas ações, ele volta muito mais motivado e com vontade trabalhar, de viver e de ser feliz. E o mundo tem que agradecer porque ele está cuidando de um pedaço importante da floresta.

Estamos assistindo nesse exato momento a construção de um plano setorial para o artesanato, que deve sair agora em 2015. As sessões estão acontecendo agora e já ocorreu uma série de consultas públicas. Esse é um ponto que a gente também vem acompanhando, ou pelo menos tentando acompanhar, que são as políticas públicas na área do artesanato. Embora a gente tenha hoje um Programa do Artesanato Brasileiro, não sei como é que isso está no Acre, mas aqui em São Paulo a gente sente uma certa fragilidade em relação a esse programa. Temos, inclusive, até um pouco de dificuldade de falar com os responsáveis por esse programa em Brasília. Então, queria que você falasse rapidamente a respeito do papel do governo nessas políticas. Além desses exemplos específicos da atuação lá no Acre que você citou, de que forma o governo poderia trabalhar de modo a promover o artesanato brasileiro de maneira geral? E, eventualmente, quais seriam talvez as principais estratégias que poderiam ser endereçadas nesse plano setorial do artesanato?
O governo tem um papel fundamental nesse tipo de atuação. Se o estado não for um grande motivador, o artesanato não ganha a visibilidade necessária para o seu desenvolvimento. O artesão começa a trabalhar na produção de alguma peça quando surge uma curiosidade, ou quando aquilo é uma tradição de família, ou ainda quando ele aprende aquela atividade em algum lugar. Mas se ele não tiver o governo incentivando com cursos, com formação, com aprimoramento, com participação em feiras, com promoção de catálogos, com compras antecipadas desse produto (para depois coloca-lo em locais de comercialização), ou ainda com a construção das casas de artesanato e de museus, o artesão e o seu trabalho não aparecem. Sem o apoio do estado o trabalho dele acaba sendo caracterizado como algo de fundo de quintal, mesmo.
E, nesse sentido, o que temos feito é fortalecer cada vez mais o artesanato, levando-o para as feiras, eventos e ajudando o artesão com a sua formação. Nós agora vamos dar uma ordem de serviço para construir e reformar um edifício antigo que será o Mercado do Artesão. Já temos a Casa do Artesão, porém ela está um pouco antiga. O governo também alugou um colégio antigo, construído no começo do século XX e feito pelos padres servos de Maria, para transformá-lo no Museu da Gente Acreana. É um projeto que está começando a ser escrito e nós, a partir de 2015, pretendemos começar essa reforma.
O estado precisar estar junto, motivando, fazendo com que o artesanato gere renda para o artesão e, consequentemente, concedendo-lhe autonomia. É necessário dar as condições para que a pessoa caminhe com as próprias pernas. E o governo do Acre, pensando nisso, criou a Secretaria de Pequenos Negócios, que é um órgão estatal formulado para motivar e auxiliar essas pessoas que hoje não tem condição de comprar um equipamento ou de fazer um curso. E, através do Pronatec, a Secretaria de Pequenos Negócios, junto com o Instituto Dom Moacyr, que também é do estado, dão a formação e dão o equipamento para essa pessoa trabalhar. E eles também fazem um monitoramento de como está esse trabalho, para saber como os equipamentos estão sendo utilizados e se o objetivo foi atingido. Com essas ações, o governo já atingiu cerca de oito mil pequenos negócios dentro do estado do Acre, que estão dentro das cidades, dentro da floresta e até nas aldeias indígenas.

Onde vai ficar localizado esse Museu da Gente Acreana?
Em Rio Branco. No centro.

A Casa do Artesão é a que fica no Parque da Modernidade?
Isso. Atrás da Casa do Artesão tem um prédio que hoje funciona a administração do parque.

O Museu da Gente Acreana é inspirado um pouco no Museu da Gente Sergipana?
Sim.

Porque o governador Tião Viana, do Acre, recentemente visitou o local. Saíram algumas notícias sobre isso.
Pois é. Fomos lá em 2013. É um museu muito impressionante. Muito gracioso, não é? E é muito interessante pensar num projeto como esse porque, atualmente, nós não temos um museu que trate somente da cultura acreana. Temos o Museu da borracha; o Palácio Rio Branco, que conta um pouco a história da formação do estado e apresenta quais foram os povos que formaram a região; e o Memorial da Cultura dos Autonomistas, que não chega a ser um museu, mas é um lugar que recebe exposições e que, lá embaixo, abriga o túmulo do governador e de sua esposa.

Há alguma previsão de quando deve sair o Museu da Gente Acreana?
Tudo com o estado é muito burocrático. Você tem que entrar nas leis, nas normas, justificar o porquê alugar aquele edifício e não outro. Tem sempre que responder muitos porquês. Assim, estamos no processo para conseguir esse local, dado também que no momento o estado não tem condições de comprar. Mas, agora, estamos fazendo a parte escrita para formar a comissão do museu, elaborar o projeto e buscar apoio para a efetivação do projeto. Porém, para receber esse apoio, o estado terá que comprar o edifício. A Fundação Banco do Brasil, por exemplo, fez a restauração do Palácio Rio Branco. Mas a diferença é que o Palácio Rio Branco já era um imóvel do estado. Como esse colégio ainda não é, temos que trabalhar esses meios jurídicos. Mas a intenção é urgente, porque a vontade de ver esse projeto acontecer é imensa.

O Brasil é um país de dimensões continentais. As grandes distâncias talvez sejam uma das marcas do nosso país e o Acre é um estado, assim como uma série de outros, que está distante em relação a outras regiões nacionais. Sendo assim, gostaria que você falasse um pouco a respeito dessas distâncias em relação a centros como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Isso traz algum tipo de dificuldade para o escoamento da produção, ou problemas até mesmo para que as pessoas cheguem ao estado e conheçam a produção artesanal?
Hoje nós já temos outro olhar sobre isso. Nós não nos achamos tão distantes. Tudo depende do seu ponto geográfico, do seu ponto de vista. Hoje nós estamos estrategicamente num lugar onde o mundo inteiro quer olhar, quer vigiar, quer controlar e quer opinar. E nós estamos geograficamente ligados com o mundo. Estamos conectados com o Peru, via terrestre, e ligados com a costa Oeste americana. Há uns dois meses passou por lá o Amyr Klink, que foi dar uma palestra. Durante um certo momento ele disse: “A minha mulher está passando por aqui hoje de carro. Está vindo dos EUA.” Eu disse “o quê?” Ele disse “É. Eu vou pegar o avião agora à tarde”. Ela veio dos EUA de carro. E vai chegar pelo Acre. Então, você vê: estamos num ponto estratégico.
E eu falo lá para os nossos índios: “Olha, vocês saem daqui de barco, descem oito horas, pegam uma estradinha, pegam um avião e chegam em outro país”. Então, o que é difícil? É caro ir para o Acre? É. E isso é ruim, porque dificulta tudo. Mas também nos preserva de muitas coisas que o progresso traz que às vezes é bom e às vezes não é. Quando você pede para passar uma rua com asfalto na porta da sua casa, você tem que estar pronto para as coisas boas e para as coisas ruins. Quando você pede a luz elétrica, você tem que estar preparado para as duas coisas, não é? E é caro chegar no Acre, então, não são todos que chegam lá. A pessoa que vai normalmente sabe exatamente o que está fazendo.

E, agora, o que acho muito interessante é esse sentimento de acreanidade. O acreano lutou muito para ser brasileiro. A história desse povo é marcada por lutas, por conquistas. O estado do Acre já foi um estado independente de Gálvez, com todas as leis escritas com o que é que tinha que ter naquele país. O Acre também já lutou contra a Bolívia. Um gaúcho, Plácido de Castro, saiu do Rio Grande do Sul e foi lá comprar essa batalha. Então, vejo esse sentimento como algo muito rico.
E, depois, vem o Chico Mendes, que já é uma luta contemporânea. Lutar para que a floresta seja preservada, para que o homem que mora na floresta seja respeitado, para que ele não seja expulso da floresta. E, agora, a gente está num momento de desenvolver o estado: com tudo isso, com toda essa carga cultural, com essa floresta preservada. Estamos caminhando para a industrialização, mas sempre conscientes da questão ambiental e da questão social. Nós não podemos falhar no ambiental. E se nós não olharmos o social, seremos engolidos por grandes especuladores.
A gente não pode achar que os nossos vizinhos de floresta pensam igual à gente. Não pensam. Então, nós somos meio que uma ilha nisso. Os países vizinhos ao nosso não tem a mesma legislação ambiental. E nem podemos fazer com que eles tenham. Muitas vezes a gente sofre pela queimada deles. A fumaça deles vem para o lado de cá. Acabam dizendo que nós estamos queimando, mas não, a fumaça que está vindo para o lado de cá. E o nosso estado vizinho também não tem a mesma consciência que nós temos. E, aí, a gente acaba sendo mesmo uma ilha no meio disso tudo, mas com muita personalidade. Nós queremos industrializar o estado com essa consciência ambiental. Criamos uma ZPE (Zona de Processamento de Exportação), onde haverá incentivos para a compra de equipamentos e insumos para as indústrias que se instalarem ali. E essas empresas terão que exportar 80% e internalizar 20% da sua produção. Ações como essa são importantes, pois como é que gente vai fazer design e colocar no mundo se a gente não tem esse tipo incentivo?
Temos que avançar em algumas coisas para tornar mais viável os projetos de artesanato e design. O estado agora está investindo muito na indústria do peixe. E nós construímos, recentemente, a maior fábrica de ração de peixe do Brasil. O que isso vai gerar para o design? O couro. Hoje ele vai para a ração de peixe, mas a gente quer pegar esse mesmo material, proveniente de peixes como pirarucu, tambaqui e surubim, e agregar isso a algum projeto de design.
Então, é esse o olhar atual do estado do Acre. Temos que industrializar para termos mais autonomia. Hoje nós somos muito dependentes de repasse, mas não podemos nos acomodar nessa situação. Já que temos água, temos terra, temos pessoas que querem trabalhar e temos essa consciência ambiental, agora queremos mais autonomia e liberdade