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A CASA E O MUNDO

ENTREVISTA

CLÁUDIA LEITÃO

Publicado por A CASA em 19 de Março de 2015
Por Ivan Vieira

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"Oferecer um salário mínimo para um mestre é fundamental para a transmissão dos saberes"

Cláudia Leitão é professora da Universidade Estadual do Ceará e Ex-secretária da Economia Criativa do Ministério da Cultura.

Você é graduada em Direito e em Educação Artística, além de mestre em Sociologia Jurídica pela USP e doutora em Sociologia pela Sorbonne. Também foi Secretária de Cultura do estado do Ceará entre 2003 e 2006 e Secretária da Economia Criativa entre 2011 a 2013. Além disso, tem vários livros e artigos científicos publicados sobre cultura, desenvolvimento, turismo, políticas públicas e gestão cultural. De onde vem seu interesse pela cultura e como se desenvolveu sua trajetória nessa área?
Acredito que esse interesse tem a ver com uma vida infantil já muito entrosada com o mundo da educação e da cultura. Sou filha de bibliotecária. Minha mãe era professora da Universidade Federal de Ceará. Uma paraense  apaixonada pela Amazônia. Além de professora, fazia um pouco de crítica literária nos jornais e revistas do Ceará dos anos 60 e compartilhava comigo seus sonhos sobre as bibliotecas do futuro, onde a tecnologia iria permitir mais acesso e mais fomento à leitura e à formação de leitores. Ela estava certa! Bebi muito nessa fonte inesgotável que minha mãe representou para mim, da infância até a juventude quando, lamentavelmente, ela veio a falecer. O amor ao livro sempre foi uma realidade na minha casa.
As artes também entraram muito cedo na minha vida. Desde muito cedo fui para o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, em Fortaleza, onde estudei piano, violino e flauta doce. Participei praticamente da primeira formação do Syntagma Musicum, um grupo musical dedicado à execução de repertórios medieval, barroco e renascentista, além da música nordestina. Chegamos a gravar CDs e a termos uma atividade musical bastante intensa. Desde os meus quinze anos comecei a participar do Festival de Música de Campos do Jordão,  com o apoio do Eleazar de Carvalho, nosso grande maestro cearense e seu fundador. Nunca esquecerei de ter tocado a Nona Sinfonia de Beethoven, regida por ele! Estive em inúmeros festivais, oficinas e cursos em todo o Brasil, durante toda a minha adolescência. Antes que a expressão existisse,  fiz muito "turismo de experiência", viajando para várias cidades brasileiras (Teresópolis,  Curitiba, São Luís, Campos do Jordão, Recife...), fazendo amigos, aprendendo e compartilhando o fazer musical. Por isso, acabei me graduando também em Educação Artística, com Licenciatura em Música.

Nesse momento você já era formada em Direito?
Houve um momento em que fiz os dois cursos ao mesmo tempo. Era engraçado aquilo, porque eu vivia dois personagens bem diferentes: a aluna do Direito e a da Música. Mas, como sou geminiana, não tive a menor dificuldade em viver os dois papéis (risos). Essa vocação à multiplicidade nunca me incomodou, o que não acontecia com a minha família, que se perguntava sobre qual seria o meu futuro profissional. Acabei reunindo o Direito e a Música mais tarde, quando decidi me dedicar às políticas públicas e à gestão cultural.  Eu nunca planejei isso. Na verdade, creio que a vida me colocou nessa situação. Acredito no acaso, o que os franceses chamam de "hasard". Um "azar" que é sorte. No meu caso, sorte mesmo! Muito cedo eu fiz concurso para a Universidade. Entrei na Universidade de Fortaleza, para ser professora do Curso de Direito da disciplina de Sociologia do Direito. Eu já sabia que a Sociologia me interessava muito mais que o Direito, naquele momento. E com o tempo confirmei minhas hipóteses. Fui saindo do "núcleo duro" do Direito para áreas da Sociologia e Antropologia. Ter sido aluna do Mestrado em Direito do Largo São Francisco, tendo tido como orientador José Eduardo Faria e como professores Dalmo Dallari e Eros Grau, foi uma experiência fundamental na minha trajetória profissional e pessoal. No meu mestrado em Sociologia Jurídica fui estudar partidos políticos, Ciência Política, Teoria Geral do Estado. Minha dissertação teve por objeto uma análise dos partidos políticos após a ditadura Vargas. Essa pesquisa já demonstrava um interesse histórico e sociológico sobre o Direito.
Por isso, ao defender minha dissertação, decidi me candidatar ao doutorado em Sociologia na Sorbonne. Creio que esse doutorado teve um papel muito importante na minha aproximação do campo da cultura porque o meu objeto de estudo era uma festa do sertão do Ceará. Na verdade, qualquer festa me serviria para tentar compreender as relações políticas e religiosas do sertanejo, a partir do fenômeno da festa. Aprendi muito cedo, na fase exploratória da pesquisa, com Ariano Suassuna,  informante fundamental do meu trabalho, que todas aquelas histórias "shakesperianas" que a gente ouve (e que ele tratou na sua dramaturgia e nos seus romances picarescos) são reais. Bastaria fazer uma observação direta para produzir um "caderno de campo" capaz de narrar essas histórias e descrever seus personagens. Foi o que fiz. Gosto muito da minha tese de doutorado, porque ela é sobre uma festa brasileira. Penso que ali houve um grande e primeiro mergulho meu sobre uma expressão maior da cultura brasileira: sobre a cultura no sentido do patrimônio imaterial e suas relações com as éticas nordestinas, com as formas de viver e de se relacionar com o mundo. Fui orientada por Michel Maffesoli que, não por acaso, acabou orientando teses de vários gestores culturais brasileiros.
Depois que voltei da França, resolvi publicá-la, ao mesmo tempo em que comecei a me envolver com o departamento de Administração da Universidade Estadual do Ceará (UECE), o que poderia parecer um paradoxo! Vale dizer que fiz concurso para a UECE, desta feita, para ministrar uma disciplina de História da Arte, mas, posteriormente, depois do doutorado, aceitei um convite da Universidade para me deslocar das Ciências Sociais Básicas e compor o corpo docente das Ciências Sociais Aplicadas. Mais uma vez o "hasard" interveio, pois acabei saindo do departamento de Sociologia, convidada que fui pelo reitor, para coordenar o Curso de Mestrado em Administração. Essa mudança foi fundamental para a minha posterior militância na gestão cultural.
Penso que a gestão me deu alguns instrumentais que eu não tinha e que, em geral, quem trabalha com ciências humanas não tem. A gestão me ajudou muito. E fui me interessando aos poucos pela gestão pública. Nessa trajetória passei pelo Senac do Ceará, onde fui diretora regional por dois anos. Fui conhecendo a educação profissionalizante, técnica e tecnológica. Até que, em certo momento, recebi o convite para ser Secretária de Cultura do Ceará.
A grande divisão de águas na minha vida se dá com essa experiência de gestão pública da cultura no Ceará. Recentemente andei pelo Brasil inteiro lançando um livro que fala exatamente sobre esse período. O livro se chama "Cultura em Movimento – memórias e reflexões sobre políticas públicas e práticas de gestão". Trata-se de um relato, de uma memória da minha experiência de gestão, vivida entre os anos de 2003 e 2006. Conto essa história depois de ver a "poeira baixar". A publicação responde a uma promessa que fiz aos gestores, produtores, artistas, enfim, ao campo cultural brasileiro. No livro afirmo que aqueles quatro anos também mudaram o meu olhar de professora universitária. Depois de ter sigo gestora pública da cultura e, ao voltar à Universidade, nunca mais fui a mesma. Saí de uma zona de conforto que a Academia acaba nos dando. Sou grata à vida por isso! Acho que a universidade é um espaço que precisa se renovar. E que muitas das questões que nos ocupam na Universidade são dissociadas da realidade dos territórios em que elas se encontram  – ainda mais num estado como o meu (o Ceará), tão difícil, tão pobre, tão injusto...
Mais uma vez me desloquei dentro da Universidade, quando voltei da minha primeira experiência em gestão pública. Desta feita  fui para o Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Sociedade. Anteriormente, eu havia criado, com o Curso de Geografia da UECE, o Mestrado Profissional em Gestão de Negócios Turísticos, assim como uma Especialização em Gestão Cultural. Mas, quem me deu, como diria o ministro Gilberto Gil, "a régua e o compasso", foi a gestão da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. A impressão que tenho, até hoje, é que tudo o que eu fiz antes, fiz para chegar ali. E depois disso, tudo mudou. O que eu vivi no Ceará foi, certamente, o que me levou quatro anos depois a Brasília para criar a Secretaria da Economia Criativa.

Uma trajetória muito interdisciplinar.
Muito. Muito transversal.

Desde que surgiu, a expressão “Economia Criativa” tem sido usada de várias formas e com diversos sentidos. No plano mundial, por exemplo, a Economia Criativa é compreendida pelos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Ásia como uma etapa mais avançada do sistema capitalista na produção de bens e serviços protegidos pelo Copyright. No Brasil, para fazer um contraponto a essa visão, temos o Plano Nacional da Secretaria da Economia Criativa, além da visão apresentada por Ana Carla Fonseca Reis, que nos concedeu uma entrevista em 2011. Levando essas divergências em consideração, para você, o que é Economia Criativa?
Antes de chegar ao MinC, eu coordenava na Universidade um Grupo de Pesquisas ligado ao CNPq para estudar a temática das Políticas Públicas e das Indústrias Criativas. Nosso foco e enfoque diziam respeito às políticas públicas para a Economia Criativa. Nas nossas leituras e discussões, procurávamos refletir sobre as contradições entre as indústrias e as economias criativas nas sociedades contemporâneas. Nossa primeira preocupação era a de não tratar os setores culturais e criativos ao sabor dos desígnios do mercado, ou ainda, de evitarmos as armadilhas de considerarmos a economia da cultura como um business qualquer, ao serviço da especulação, do lucro, e do sistema capitalista. A preocupação do nosso Grupo sempre foi a de pensar a construção de um conceito de Economia Criativa no qual nós, brasileiros, nos reconhecêssemos.
Fui à Austrália em 2010, com bolsa do CNPq, para fazer pesquisa com esses dois colegas, que participavam do Grupo de Estudos e que depois foram comigo para Brasília. Fomos para Brisbane, que é a capital do estado de Queensland, sede da Universidade Tecnológica de Queensland, que possui Graduação e Pós-Graduação em Indústrias Criativas. Nós já conhecíamos os textos de John Hawkins, Stuart Cunningham,  Michael Keene, enfim, de professores que já vinham desenvolvendo o conceito de "Indústrias Criativas" desde a proposta formulada pelo primeiro-ministro australiano Paul Keating: a criação de uma "creative nation". Esse conceito trazia em si o resgate de uma identidade cultural australiana, assim como o papel estratégico da cultura para o desenvolvimento daquele país.
O que me interessava na Austrália e em suas possíveis afinidades com o Brasil era o fato de que ambos os países são ex-colônias, não é? Somos países jovens. Eles muito mais do que nós. Tinha muita curiosidade em compreender as nossas diferenças e as possíveis afinidades. Quando fiz perguntas sobre a cultura aborígene, por exemplo, criei um certo mal-estar com os professores que trabalham com as Indústrias Criativas porque, também lá, as Indústrias Culturais trataram de uma forma muito pouco cuidadosa a cultura aborígene. Então, há galerias de arte aborígene  lindas, com trabalhos magníficos, mas não são os aborígenes que realmente ganham com sua própria produção, mas os atravessadores. Só vi um catador de lixo na rua em Brisbane e era um aborígene, não um australiano!
Ao observar todas essas questões, voltei convencida que o Brasil deveria produzir algo novo sobre essa temática. Produzimos em dezembro de 2010, em Fortaleza, um grande seminário sobre "Economia Criativa e o Nordeste Brasileiro", com apoio do Banco do Nordeste e do Governo do Ceará. Trouxemos a Edna dos Santos-Duisenberg, brasileira, que era naquele momento a pessoa responsável pela área das Indústrias Criativas na UNCTAD, em Genebra. Também vieram os professores  australianos, além do campo criativo brasileiro, representantes dos setores criativos, das agências de fomento, das organizações educacionais, de pesquisa, entre outros convidados. Em janeiro, fui convidada pela Ministra da Cultura, Ana de Hollanda, para criar a Secretaria da Economia Criativa.
Cheguei em Brasília consciente de que a temática da Economia Criativa era complexa e repleta de paradoxos. Tínhamos muito mais perguntas do que respostas, naquele primeiro momento. Sabíamos, de antemão, que a compreensão anglo-saxã ou australiana sobre as Indústrias Criativas não se adaptariam à Economia Criativa no Brasil. O conceito de Economia Criativa deveria, portanto, ser um conceito aberto, em construção. Ele não poderia estar fechado, pronto, concluído. Afinal, gostaríamos que o conceito de Economia Criativa adotado pelo Ministério da Cultura contribuísse nas discussões sobre os rumos do desenvolvimento brasileiro. Afinal, que modelo de desenvolvimento deveríamos perseguir no Brasil? Um modelo exógeno ou endógeno de desenvolvimento? Será que nós não poderíamos queimar etapas, a partir dos insumos culturais que possuímos, e dos avanços obtidos nos setores da ciência e tecnologia, para construirmos um desenvolvimento sustentável que permitisse a inclusão dos ribeirinhos da Amazônia, dos sertanejos do nordeste, enfim, da juventude que está trabalhando com a cultura digital, o hip-hop, o grafite e outras expresões culturais nas grandes cidades brasileiras?
Sempre acreditei que o que existe de produção cultural nas periferias das grandes cidades, no cerrado, nos pampas, no semiárido, na Amazônia poderia ser estratégico para a economia dessas populações. Essa diversidade cultural poderia ser não só patrimônio a ser valorizado e protegido, mas também ser a possibilidade de desenvolvimento das pessoas. Essas eram as questões que nos ocupavam quando chegamos em Brasília. Tenho muito orgulho do Plano da Secretaria da Economia Criativa (2011-2014), porque ele é um documento responsável, competente e polifônico, como deve ser qualquer documento fundador de uma política pública. Ele não teve nenhuma ambição de se tornar um documento definitivo. Ele simplesmente representou a necessária oitiva dos setores, segmentos, secretários de cultura, agências de fomento e de pesquisa, universidades, ministérios. Nós lideramos a construção de um Plano aberto para o futuro, mas consentâneo com os desafios do seu tempo.
Vale ressaltar o que nós retiramos do conceito de economia criativa no Plano, o que para os anglo-saxões é a essência das Indústrias Criativas: o copyright. Exatamente porque os direitos do autor têm que ser revistos e ampliados a partir de uma contextualização espacial e temporal, ou seja, em uma perspectiva brasileira e do século 21. Estamos ainda diante do desafio de aprovar uma nova legislação dos direitos culturais e intelectuais no Congresso Nacional. No entanto, ela continua na Casa Civil! Nossa legislação relativa aos direitos do autor é velha e completamente ultrapassada. Temos uma produção comunitária que não é protegida pelo direito autoral, em um país que, de um lado, uma cultura digital é potencialmente cada vez mais importante e, do outro, tem uma cultura tradicional feita a muitas mãos. Os direitos coletivos no campo da cultura precisam ser desenvolvidos para que possamos mitigar a figura do atravessador, ou seja, desse indivíduo que é o único a lucrar com a produção e comercialização dos bens culturais e criativos.
Por isso, nossa maior preocupação foi definir os princípios e as diretrizes que deveriam fundamentar e legitimar a Economia Criativa brasileira. Assim, nós definimos o princípio da diversidade cultural, considerando que só denominar de criativa, a economia que fomentar a diversidade, e não aquela que a pasteuriza. O segundo princípio é o da sustentabilidade, que não é somente  econômica mas, sobretudo, social. Ou seja, é preciso "costurar" o tecido social esgarçado que o Brasil, de certa forma, no seu modelo de desenvolvimento, não está conseguindo resolver. O terceiro princípio é o da inclusão social, na perspectiva da inclusão produtiva. Na verdade, nós estamos falando de um novo trabalho, de novos empreendedores, de novas competências e de uma inclusão de perfis profissionais os mais variados, dos mais simples aos mais complexos. Por último, precisamos ressignificar a inovação, como princípio da Economia Criativa brasileira. Inovação que não significa somente a produção de um bem que encontra um mercado. Na perspectiva da cultura, inúmeros bens são inovadores e, exatamente por isso, não têm interesse para os mercados!
Houve, recentemente, um grande encontro sobre Economia Criativa produzido pela UNESCO em Florença, entre 04 e 08 de outubro de 2014. Irina Bokova, que é a diretora geral da Instituição, abriu o encontro chamando a atenção para os Objetivos do Milênio, afirmando que a cultura terá um lugar fundamental no novo desenvolvimento do planeta. Enfim, a cultura será considerada nas próximas décadas como o quarto pilar de desenvolvimento. E quando você observa a carta de Florença, vê que na carta estão todos os princípios que a SEC adotou em 2011.
A Secretaria deveria desenvolver políticas macro e microeconômicas. Na sua estrutura macroeconômica, ele foi pensada com um núcleo de estudos e pesquisas, de território e de marcos legais. Cada núcleo enfrentaria os grandes desafios macroeconômicos da Economia Criativa brasileira, constituindo a Diretoria de Desenvolvimento, que também era responsável pelo Observatório Brasileiro da Economia Criativa (OBEC). O grande desafio dessa diretoria foi o de retomar a parceria com o IBGE para a construção da Conta-Satélite da Cultura. A Secretaria também estruturou uma área microeconômica, voltada à formulação e implantação de políticas para o micro e pequeno empreendedor cultural e criativo brasileiro, fosse ele formalizado ou não. Na Diretoria de Gestão, Empreendedorismo e Inovação, estruturamos núcleos de fomento e educação para esses profissionais. Quando nos referíamos ao fomento, pensávamos na formulação de políticas públicas voltadas também à consultoria, à assessoria aos empreendimentos culturais e criativos. Mesmo o Sebrae, com sua vasta experiência, não domina todos os setores da Economia Criativa. Há uma série de desconhecimentos ou uma ausência de diagnósticos desses setores, de como funcionam as etapas de criação, produção, distribuição, comercialização de consumo dos mesmos, enfim, de como funcionam esses arranjos, cadeias ou redes, assim como de seus elos. A Secretaria da Economia Criativa foi criada para ampliar a interlocução do MinC, por exemplo, com o Ministério da Fazenda, para discutir quais as políticas tributárias necessárias para transformar o Brasil em uma liderança na produção dos games. E no campo das artes visuais, poderíamos desonerar a tinta? E na fotografia? As câmeras? E na arquitetura? E no design? Os softwares? Por outro lado, no que diz respeito à formação, grande parte dos profissionais dos setores criativos não possuem formação adequada. O Brasil ainda é um país com imaginário "bacharelesco", o que prejudica a formação para o novo trabalho. Podemos imaginar nossos filhos se formarem para serem chefes de cozinha, mas poucos se interessam em se tornar bons padeiros ou cozinheiros...

Poucos pensam na licenciatura.
Exatamente. Ou, então, você vai ser um grande designer de moda, mas não se valoriza o ofício da costureira, da modelista.  Essa seria uma das grandes tarefas da Secretaria: diagnosticar todos esses setores para termos uma visão ampla e, assim, formularmos políticas e programas voltados às suas necessidades. A maior utopia, foi imaginar que nós, dentro do Ministério da. Cultura, conseguiríamos construir uma Secretaria tão transversal como é a temática da Economia Criativa, uma Secretaria que integrasse suas políticas a todas as demais secretarias vinculadas do MinC e, ainda, aos demais ministérios da Esplanada. Porque a economia criativa brasileira só poderia ser objeto de uma Política de Estado se ela for expressão de políticas conectadas entre várias pastas. Mas, para que isso ocorresse, nós precisaríamos de um plano que integrasse as políticas dessas pastas.
Ao redigirmos o Plano da Secretaria, percebemos que o passo seguinte seria se elaborar um Plano  (que denominamos "Brasil Criativo") que envolvesse desde as políticas da agricultura, até as da ciência e tecnologia, educação, trabalho e emprego, relações exteriores, indústria e comércio, turismo, esportes, entre outras pastas.

Vocês focaram em quinze ministérios?
Exatamente. Essa foi a ideia. E foi essa a proposta que eu levei à presidenta Dilma Rousseff.

Quando?
Estive com a presidenta em outubro de 2011, antes da viagem que ela faria para a ONU. Apresentei um pré-projeto onde descrevíamos  as bases do que seria um "Plano Brasil Criativo".

Conforme você mencionou, em 2011 o Plano Brasil Criativo foi entregue à Casa Civil da Presidência da República. O objetivo principal do projeto era "promover a produção, distribuição e consumo de riquezas resultantes da Economia Criativa Brasileira, reconhecendo-a como vetor estratégico para o desenvolvimento do país, através da integração e potencialização de políticas públicas de quinze ministérios". Levando em consideração a dificuldade de diálogo com os outros ministérios, como a realização desse objetivo é possível? Quais foram os resultados já alcançados?
Lamentavelmente o Plano não aconteceu, apesar do esforço que fizemos. A presidenta ouviu atentamente minha exposição, fez perguntas e elogios ao trabalho e, ao final, me convocou para trabalhar nele junto com a Casa Civil, na articulação com os quinze ministérios. Nós passamos um ano e meio praticamente visitando e trabalhando em reuniões específicas com cada ministério envolvido para a construção do Plano. O "Brasil Criativo" era um Plano para dez anos, com orçamento fundamentado nos Planos Plurianuais (os chamados PPAs), de cada ministério. Ou seja, nós juntaríamos orçamentos de todos os ministérios envolvidos para que o plano pudesse ser implantado. Construímos tudo isso de forma processual e compartilhada, durante meses e meses de muito trabalho. Contudo, quando o Plano estava esboçado, houve mudança na liderança do MinC e a nova ministra me disse que aquele Plano não lhe interessava. Mandou-me arquivá-lo.
O Plano Brasil Criativo nos permitiu dialogar com ministérios historicamente muito distantes do MinC. Por exemplo, o Ministério das Cidades, que tem sua importância muito pouco compreendida. O século XXI é o século das cidades. Porém, acho que não se entendeu, dado que ele se tornou num ministério esvaziado. Mas ele deveria ter um papel muito mais estratégico dentro de um governo. O Ministério da Educação é esse paquiderme institucional. O Ministério do Desenvolvimento Agrário é interessantíssimo e tem um grande viés de Economia Criativa que poderia ser trabalhado. O Ministério da Ciência e Tecnologia deveria ser colado na cultura. Eu fico imaginando se nós tivéssemos um ministério, talvez, de Cultura, Ciência e Tecnologia. Seria muito interessante juntar o conteúdo cultural com o suporte, com as questões da distribuição, da circulação e do acesso. Outro ministério, que nós saímos de dentro dele e depois nos perdemos, é o MEC. Quer dizer, a relação da Educação com a Cultura é muito pequena. O Turismo não discute nada com a Cultura. O Turismo vai pra cá e a Cultura vai pra lá. Não é uma pena que nós não consigamos ser um destino cultural no mundo? É ridículo, com o potencial que temos.
Espero, agora em 2015, publicar um livro sobre a Economia Criativa e seus desafios no Brasil. No apêndice reproduzirei o "Plano Brasil Criativo". Acho que é um legado importante para o Brasil. Quem sabe um dia ele poderá ser retomado. Afinal,  essa temática veio para ficar e carece de políticas públicas. Todos nós conhecemos alguém que trabalha em algum setor criativo. Tenho uma irmã que é chefe de cozinha. Ela é casada com um ilustrador. Tenho outro irmão que trabalha com planejamento e urbanismo. Outro que cria aplicativos. Esse grande contingente de brasileiros precisa há muito tempo de políticas específicas.
Por isso, a Secretaria da Economia Criativa definia no seu Plano original o seu público-alvo: os milhões de brasileiros (grande parte são jovens!) que vivem e sobrevivem no Brasil trabalhando nos setores culturais e criativos. Uma força econômica subterrânea ainda incompreendida pelos Governos. Tínhamos a convicção de que a indústria cultural não precisaria de uma Secretaria, pois ela possui lobbies que chegam ao Congresso defendendo seus interesses. O papel da SEC era o de formular, implantar e avaliar políticas públicas para os micro e pequenos empreendedores culturais e criativos, aqueles que realmente precisam do Estado para criar, produzir e distribuir seus bens e serviços.
Penso que o Plano Brasil Criativo seria de uma imensa importância. Mas, entendo também que não se trata só de vontade política, embora vontade política seja fundamental. Um Plano como esse implicaria na existência de uma estrutura de Estado que permitisse um modelo de governança capaz de envolver todos os atores necessários à sua implantação. Afinal, o Plano Brasil Criativo não era apenas um plano de quinze ministérios. Ele não seria exitoso sem a presença das universidades, sem o CNPq, sem a CAPES, sem a Finep, sem o BNDES, a CEF, o Banco do Brasil. Nós precisaríamos, ainda, de parcerias público-privadas, dos institutos de pesquisa, como o IBGE e o IPEA, além de todo o Sistema S, entre outros parceiros.
Quando a presidenta Dilma lançou o Plano Brasil sem Miséria, dividiu o palanque com um dos seus maiores parceiros, o presidente das Associações dos Supermercados do Brasil. No Brasil sem Miséria buscou-se garantir uma espécie de política "compre da gente", ou seja, uma política capaz de incentivar os brasileiros a comprarem alimentos de quem planta, colhe e produz no seu território para vender no supermercado da região, o que movimenta a economia e é bom para todos. Ora, porque nas gôndolas dos supermercados brasileiros não poderíamos ter CDs, DVDs, artigos da moda, do design, do nosso artesanato, da nossa gastronomia?  Por que não produzirmos um "compre da gente" dos nossos produtos culturais? Ao invés de apostarmos unicamente no fomento industrial de geladeiras, fogões, micro-ondas, carros, não deveríamos investir na produção, circulação e comercialização de bens simbólicos, incentivando suas dinâmicas econômicas regionais?

Um ponto interessante é que, nas propagandas políticas, você até vê nas músicas, por exemplo, referências à riqueza e diversidade cultural brasileira. Mas nas propostas em si parece que a ideia de valorização da cultura fica um pouco distante, não é?
Nem a ciência e tecnologia é referida nessas propagandas! E a ciência e tecnologia é fundamental para a qualidade e as dinâmicas de difusão, distribuição, comercialização e exportação. Hoje a gente não pode mais falar do criador ou do produtor sem fundir esses atores. Nestor García Canclini fala do “prossumidor”: “eu produzo, eu distribuo, eu consumo, eu faço download na internet, mas faço upload também”. É um mundo em que a tecnologia pode permitir cada vez mais acessos e, por conseguinte, a democratização. Celso Furtado afirmava: “A ciência e tecnologia é importante se ela permitir o acesso”. Mas, se se restringir ao domínio de poucos, ela manterá as coisas como estão. Aí sempre manteremos a hegemonia da lógica dos meios em função da lógica dos fins. “Não é só a lógica da acumulação que interessa ao Brasil”,  dizia Furtado há cinquenta anos. Trocando em miúdos, em uma Economia Criativa sustentável, eu preciso ganhar na quantidade e, ao mesmo tempo, também posso desenvolver uma economia de nichos, trabalhar pequenas produções, diferentemente da lógica industrial do produto em série. E na visão de uma economia de pequenos para pequenos, você teria uma economia fundamentada na lógica dos nichos. Porém, nós ainda teremos muito que avançar, porque ainda não há marcos legais que garantam isso. O Brasil tem uma grande ausência de marcos regulatórios que garantam ao bem e ao serviço cultural sua criação, produção, difusão e fruição. Lamentavelmente o Ministério da Cultura limita praticamente suas políticas ao fomento à criação, em geral a partir de editais. Mas edital não é política, é um instrumento sazonal, voluntarista. Não resolve. O que é estruturante para a sustentabilidade dos setores culturais e criativos ainda não acontece.
Então, nós precisaríamos pensar em todos os ciclos e numa política estruturante que envolvesse criar, produzir, distribuir, difundir, exportar, comercializar, fruir, consumir. Se pensássemos nisso como um ciclo virtuoso, no qual o indivíduo que é artista, por exemplo, ou aquele que quer empreender no campo cultural, tivessem ao seu lado um gestor que os apoiassem em todas essas etapas que citei. Um artista não deve necessariamente entender de gestão financeira, de planejamento etc. Nós precisamos entender que há lugar para todos nessas redes produtivas. O interessante dessa economia é que ela permite que o dançarino possa trabalhar ao lado do empreendedor do empreendimento “dança”. E aí nós vamos começar a ter profissionais específicos para cada elo dessas redes.
Enfim, gestão cultural é um tema muito sério. Precisamos entender que um gestor da área de música, um empreendedor da área de música, precisa de uma série de profissionais para que o seu empreendimento dê certo. Eu preciso para o meu empreendimento de um músico, mas posso precisar também de um professor de música, ou ainda, de um gestor competente que conheça o mercado musical. Isso exige dos governantes uma compreensão do que estamos falando.
Mas alguma coisa vem sendo conquistada. O tema da Economia Criativa vem se ampliando. Mas há sempre o risco que ele se banalize. E aí, corremos outro perigo: se tudo for economia criativa, nada será. Temos, portanto, problemas da banalização, dos estereótipos da comunicação, da tentação de copiarmos modelos. Isso não quer dizer que devemos nos fechar e não conhecer o que está acontecendo no mundo, mas o Brasil, no hemisfério Sul, tem um papel. E ele já deveria estar exercitando, a partir e através da Economia Criativa, um lugar de liderança e de diálogo com a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), por exemplo. Temos uma língua em comum e isso tem sido subestimado.
Precisamos também dialogar com a África, onde temos mercados e possibilidades de cooperação muito interessantes. Acabei de fazer um trabalho para Cabo Verde pela Organização Mundial do Comércio. Tenho estado próxima ao Ministério da Cultura de lá. Eles querem construir um "Cabo Verde Criativo".  Os caboverdeanos percebem que não há possibilidade de outra economia que não seja essa, porque eles não têm gás, não têm petróleo, não têm pré-sal, não têm aço. Então, eles entram direto no século XXI com o que têm: a Cesária Évora, grandes músicos, diversidade cultural, gastronomia, turismo, festas populares, artesanato.
Se estamos falando de sustentabilidade, ou ainda, sobre a agenda da ONU para 2015, nós vamos ter que avançar nessa discussão sobre os atributos do desenvolvimento. Que qualidade de desenvolvimento nós queremos? Ninguém falou disso na última campanha presidencial. Não se trata somente do desenvolvimento das infraestruturas. É certo que precisamos de estradas, portos, navios, siderúrgicas. Não estou discutindo isso. O que quero dizer é o seguinte: no novo século, é só nessa infraestrutura que investiremos? Além da economia produzida pelas commodities, não deveríamos ampliar nosso modelo de desenvolvimento para a uma economia de produtos com valor agregado? Será que o Nordeste só tem que discutir políticas para a construção de siderurgias, metalurgias e portos enquanto ignora a força estratégica dos roteiros das festas de São João, por exemplo? Por que não formular políticas de fomento aos arranjos produtivos que envolvem o turismo cultural, a música, a dança ou a cultura tradicional popular?
Uma vez cheguei em Belém do Pará e constatei que a cidade vivia seis meses da festa Círio de Nazaré. Não é à toa que essa festa, hoje, é patrimônio da humanidade. Mas ela é um patrimônio que, ao mesmo tempo, move a economia de Belém, além de comover as pessoas que dela participam. Tudo está afetado por aquela festa: a gastronomia, o turismo, a religiosidade, os barcos, o artesanato, as biojóias.

Essas ideias, pelo que imagino, são diferentes do que, por exemplo, o Ministério do Planejamento, da Fazenda ou o Itamaraty seguem hoje em dia. Como foi a receptividade dessas ideias nesses outros ministérios?
Alguns são mais e outros menos abertos. Uns ministérios são grandes demais e com muito pouca flexibilidade para realizar parcerias. Isso é uma outra discussão relevante. Se nós estamos falando de desenvolvimento, vamos ter que falar de modelo de Estado. É impossível, ao se falar de um sistema federativo, não se aprofundar discussões, por exemplo, sobre as competências dos municípios, estados e da União. Quando o Ministério da Educação dá um passo, ele movimenta a economia criativa. Quando ele compra livros escolares, ele está movimentando a economia do livro. Quando ele compra instrumentos musicais, ele movimenta a economia da música. O problema é que esses instrumentos na sua grande parte são chineses. E por que são chineses? Porque a lei de licitação define que o Estado deve comprar o produto mais barato. Como é que a confecção do Brasil pode dar certo se a gente só exporta para eles o algodão e recebe o vestuário pronto? O Brasil só exporta matérias primas.  É um modelo que deu certo no século XX, mas que está esgotado.

Qual seria o novo papel do MinC nessa discussão sobre o que o Brasil precisa fazer em relação aos modelos de desenvolvimento?
Houve uma inflexão muito interessante do MinC em 2003, um divisor de águas, com a chegada do Gil. Eu diria que houveram dois grandes ministros da Cultura. É lógico que teve um com uma passagem muito rápida, de dois anos.

O Celso Furtado?
Sim, o Celso. O seu pensamento sobre as conexões entre a cultura e o desenvolvimento brasileiro continuam atuais. Há quem não entenda isso, porque também nunca leu Furtado. Acho que nós, através da criação da Secretária da Economia Criativa, ajudamos muito a divulgar o pensamento cultural do Celso Furtado. Procurei, logo na minha chegada, o Centro Internacional Celso Furtado, especialmente, Rosa Freire de Aguiar, viúva do Celso, e criamos os Colóquios Celso Furtado em todo o Brasil. Ao mesmo tempo, começamos a publicar trabalhos e pesquisas voltados à Economia da Cultura.
O MinC cresce com o Gil na criação do Sistema Nacional, graças ao grande capital simbólico do ministro, além da sua capacidade de formulação no campo da cultura. Gil sempre foi maior que o ministério. Seu protagonismo e liderança foram fundamentais na aprovação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO.

De que forma a atividade artesanal está representada no Plano Brasil Criativo? Quais são as propostas previstas nesse documento para o fomento da produção, comercialização e distribuição do artesanato?
O Plano trata o artesanato como um setor estratégico da Economia Criativa brasileira. Há artesanatos e artesanatos. Se, de um lado, o Estado deve fomentar o artesanato que trabalha de uma forma sustentável com materiais recicláveis, de outro, deve combater o artesanato pasteurizado que, segundo Renato Ortiz, é aquele que nós podemos chamar de" folclore internacional popular", que representa o esvaziamento de imaginários e a produção de "não lugares" no Brasil.
Um dos problemas do artesanato brasileiro é que ele é objeto de políticas descoordenadas entre ministérios e outras instituições. O IPHAN, por exemplo, administra de forma exemplar o Museu do Índio. Estou citando essa política porque representa o cuidado e a valorização do artesanato indígena realizados por uma Instituição ciosa do valor cultural do artesanato brasileiro.
Por outro lado, o Plano buscava criar canais de diálogo entre o artesanato e o design. Muitos designers vão beber em fontes e em territórios ancestrais, ao exemplo de comunidades quilombolas, outras da cultura tradicional popular. Muitos se apropriam de seus símbolos e de sua iconografia, desconsiderando os direitos comunitários daqueles mananciais. Por outro lado, também não se trata de "congelar" o artesanato tradicional e não permitir que este dialogue com o design. Eu disse à presidenta Dilma que o Brasil poderia ser uma referência mundial no design. E por que não é? E por que a Itália é? Essas são perguntas que nós temos que nos fazer. Além do mais, o design brasileiro deve ser acessível  a pessoas de baixa renda. O Programa Minha Casa, Minha Vida, não poderia conter um Programa Meus móveis, Minha Vida? E pensar como o design brasileiro poderia baratear custos e também embelezar as residências de milhões de brasileiros e brasileiras! Poderíamos estar dando sustentabilidade ao design brasileiro somente com o nosso mercado interno.
O Plano também se dedica ao design de biojoias. Hoje, como vemos em alguns núcleos pelo país, como é o caso do São José Liberto, em Belém do Pará, há um sem número de jóias produzidas com sementes, raízes, frutas, cascas de árvores, entre outros materiais. É lógico que é preciso de tecnologia para avançar e garantir a qualidade, além da durabilidade. Mas jamais esses desafios serão resolvidos se a ciência, tecnologia e a educação estiverem de um lado, e a cultura, o design e o artesanato, do outro.
Embora a “marca Brasil” faça sonhar, ela não se traduz em produtos brasileiros com certificação de origem. Então, tudo isso estava presente no Plano Brasil Criativo. Temos que avançar em uma política de marcas e patentes brasileiras porque temos que entender que natureza é cultura. Por isso,  precisamos transfigurar da própria estrutura do que hoje é o Conselho Nacional de Política Cultural, mas essa renovação necessita de um aprofundamento e de uma reconexão das temáticas e dos setores. Afinal, o que é um setor cultural? Onde termina o artesanato e onde começa a ação do design, se o primeiro é considerado patrimônio imaterial e o segundo, criação funcional? As categorias estão velhas, porque os setores já estão se fundindo e se (con)fundindo.
Quando você vê o Peru e observa a imagem que esse país construiu a partir do seu artesanato, constatamos que o Brasil ainda está longe de ser um país reconhecido pelas suas artesanías. Mas o Brasil é um país feito à mão! É mesmo inacreditável. Se você tomar a Pesquisa Municipal de Cultura, que saiu em 2007, produzida pelo IBGE, vai ver que o Brasil borda do Oiapoque ao Chuí. Mas que políticas temos para o bordado brasileiro?
Quando estava na Secretaria de Cultura do Ceará, em 2003, criei uma lei para a valorização dos mestres da cultura tradicional. Foi a primeira lei brasileira de regulamentação e valorização desses saberes e fazeres ancestrais. Por que o Estado deve valorizar esses saberes? Bem, todos sabemos que a filha de uma mestra bordadeira não quer bordar.  E com razão. Por que? Porque ela vai preferir trabalhar em qualquer call working, em qualquer supermercado. A nova geração observa que seus pais produzem, mas não conseguem distribuir. O que será do Brasil se perdermos essas matrizes culturais? Muitos dos mestres da cultura estão nos territórios de extrema pobreza do Brasil. Nós temos que realizar uma busca ativa para sabermos onde eles estão. Era uma das propostas do Plano Brasil Criativo: realizar uma busca ativa capaz de mapear os mestres da cultura que estão no Brasil profundo, para que possam agregar e potencializar o valor da cultura e da criatividade aos seus territórios.
Acredito em território criativo: um território onde haja políticas capazes de reconhecer quem são os personagens criativos daqueles lugares e de facilitar a transmissão do saber ancestral, assim como o diálogo com o contemporâneo. Seria interessante, por exemplo, você pegar uma moçada nova que está estudando design na Universidade e reuni-las com o mestre Espedito Celeiro, lá de Nova Olinda.

Em 2013 ele esteve aqui, no museu A CASA, para a exposição “Da Sela à Passarela”.
O mestre Espedito me dizia: “Cláudia, por que é que eu não posso aumentar minha pequena fábrica? Daqui a pouco eu estou velho. Eu preciso ter alunos. Demanda eu tenho muito, mas não dou conta. Eu não tenho estrutura”. Por que o BNDES, por que os bancos não investem nos mestres da cultura? Por que o fomento creditício não chega a essas pessoas? E por que essas pessoas que são simples, que não têm estrutura e nem capacidade de gestão, não são assessorados? Hoje, turistas vão a Nova Olinda por quê? Porque tem dois grandes empreendedores culturais na cidade: Mestre Espedito e Alemberg Quindins, da Fundação Casa Grande, que trabalha com produção de áudio visual, comunicação, rádio e TV. Quem vai a Nova Olinda, vai por isso. Em Nova Olinda, tem turismo. Tem até "bed and breakfast", que o Sebrae organizou. Nova Olinda é um municio criativo! Mas, a verdade é que nós estamos  perdendo esses mestres. A Europa já destruiu essa cultura tradicional. E é por isso que quando falam em economia criativa só se referem às indústrias culturais (e seus conteúdos  científicos e tecnológicos) e não às artesanías. Se a gente mata o que eles já mataram, eu me pergunto o que será de nós. Temos uma oportunidade que o continente europeu já não tem.

O problema é o timing.
Sim, é o timing. É verdade.

Como você mencionou, a Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, em 2003, na época em que você era secretária, aprovou a Lei 13.351, que instituiu o Registro dos Mestres da Cultura Tradicional Popular do estado. Qual a importância dos mestres da cultura no desenvolvimento da cultura regional e nacional? É papel do Estado reconhecer sua atuação? De que forma isso pode ser feito?
Sou uma pessoa que acredita no estado intervencionista. Não acredito em um Estado liberal no Brasil. Não acredito em um Estado mínimo. Não acredito em um Estado que diz que o mercado resolve. Portanto, minha opinião parte de uma visão que construo a partir do meu lugar no mundo.

Contra o neoliberalismo?
Totalmente. Porque eu acho que essa visão neoliberal só acentua diferenças. Não posso mais acreditar num modelo concentrador. Isso é insustentável. A concentração de renda é insustentável. Ela, no final, vai destruir a nós todos. É uma ilusão imaginar que podemos construir um país para alguns e não para todos.
Nasci numa região onde a sobrevivência é historicamente muito dura. O cearense é um nômade. Ele sai do interior quando não chove. Aí vem para São Paulo. Ele vai aprender a fazer sushi e vira sushiman. Aí ele vai para um prédio e vai aprender a ser vigia. Ele vai cozinhar. Ele faz se virar pra sobreviver. A criatividade vive também da necessidade.
Quando nós criamos o Livro dos Mestres da Cultura, o livro do patrimônio imaterial, e começamos a registrar, nós não tínhamos recursos importantes. Então, o Conselho de Patrimônio Cultural do Estado abriu um edital para doze mestres. E foi o que nós fizemos na primeira experiência, em 2003. E eu disse para o ministro da cultura: Ministro, devem existir outras leis. Vou fazer uma pesquisa. Se alguém já fez, vamos replicar. E o que me impressionou é que não havia nenhuma lei no país com regulamentação voltada aos mestres. Eu disse: “Ministro, não há nada”. E ele disse: “Então, faça”. E eu fiz. Lembro que no mesmo ano, em 2003, nós já fizemos a diplomação dos primeiros doze mestres. Só havia orçamento para doze. Uma coisa tão pequena. Mas era tão simbólico! Tenho certeza que no dia que o ministro  Gil resolver escrever um livro sobre sua gestão, ele falará do Cariri, daquela noite da primeira diplomação dos primeiros doze mestres da cultura popular do Brasil.
Oferecer um salário mínimo para um mestre é fundamental para a transmissão dos saberes. É o caso do mestre Aldenir, mestre do reisado do Crato. Ele tem grupos de reisados infantis. O que a escola brasileira não faz, o mestre Aldenir faz na casa dele. Porque o pessoal chega lá, come um sanduíche que a mulher dele prepara e o reisado acontece. Ora, essas crianças crescem, e no dia que o mestre Aldenir morrer, haverá adultos, que um dia foram crianças, e que conheceram e dançaram o reisado no terreiro do mestre Aldenir.
Então, é papel do Estado reconhecer. Lembro que os prefeitos do Ceará começaram a chamar os mestres para os palanques políticos. Ele já era mestre, mas quando o estado diz que ele é, isso dá para aquele indivíduo uma maior autoestima. Qual o papel de uma política pública se não for, antes de tudo, garantir a autoestima dos indivíduos?
Acho que a primeira missão da política publica é permitir que você se reconheça.  Em um mundo globalizado, você vai se destituindo de tudo o que você é: você não come mais as coisas do seu lugar; você não se veste mais com as roupas do seu lugar; você não fala mais com o linguajar do seu lugar, porque a novela (a indústria cultural) te ensina como você deve comer, se vestir, falar e...pensar! Você é capturado. Você se aliena de si próprio.

Em sua visão, quais são as maiores dificuldades enfrentadas pelos gestores culturais na atualidade?
Talvez a primeiríssima questão seja o desafio de um novo Estado, capaz de permitir uma maior eficiência, eficácia e efetividade ao gestor. A estrutura do Direito Administrativo brasileiro, ao tratar todos os gestores da mesma forma, impactam de forma negativa sobre a gestão cultural. O meu livro, "Cultura em Movimento", reflete sobre o "day after" do gestor público, momento em que ele está sozinho e vai prestar contas da sua administração. É muito mais complexo, de certa forma, gerir cultura do que gerir hospitais, onde você compra medicamentos, camas, lençóis... Tudo isso até é passível de licitação. Mas quando você envolve bens simbólicos e intangíveis, é um problema. Quer dizer, ser um gestor cultural hoje no Brasil, é ter que lidar com uma legislação muito inadaptada à sua função. Portanto, se você realizar pouco, não sofrerá. Se você resolver fazer, acabará sendo sancionado pela sua ousadia. Esse é um aspecto que merece uma discussão com o Ministério Público, com os Tribunais de Contas, com o Poder Judiciário, para que sejam discutidas as especificidades da legislação pública e de como ela poderia ser aplicada à gestão cultural.
O segundo ponto é a qualificação do gestor. Temos que formar e informar gestores. Porque não adianta a formulação de políticas, com todo o esforço de participação social, se eu não conseguir traduzir aquelas políticas em programas com metas, que tenham impactos que sejam monitorados e avaliados. Então, o gestor tem que ser capaz de dominar todas essas etapas.
Acho que um terceiro aspecto que tem que envolver o gestor será  a sua capacidade de tratar a cultura de forma transversal, na perspectiva do desenvolvimento local. Acredito muito que essa tem que ser a visão da nova gestão pública.
Agora, é muito difícil fazer tudo isso sem dados. Sem dados, não há política pública. Acho que muita gente não entende isso. Há ainda aquelas lideranças que subestimam o valor da informação. Todos nós sabemos de um ministro ou de um secretário que, no início do seu mandato, afirma: “Eu vou fazer isso”. Poderíamos nos perguntar: Fundamentado em que? Por quê? E a resposta nem sempre é satisfatória: “Porque é bom, porque eu quero!”. São rompantes, caprichos e voluntarismos descolados dos interesses e das demandas das populações.
Outra questão maior ainda, para terminar, é a de que políticas de governo vêm, gestores produzem, e quando termina aquela gestão, se apaga tudo e a história começa do zero. A roda vai ser rodada novamente. Já vivi isso duas vezes. Confesso a você que eu já cumpri a minha odisseia e que não voltaria à gestão pública, mas acho lamentável que isso ocorra. Precisamos de arranjos institucionais um pouco mais sólidos que garantam a continuidade das políticas.
Talvez, isso se dê num momento em que a Cultura ganhe maior prestígio. Nós precisamos acreditar que a Cultura importa, que ela é estratégica e qualifica o nosso desenvolvimento. Porque, se ela continuar sempre sendo vista como a cereja do bolo, como dizia o ministro Gilberto Gil, ela continuará marginal às decisões de governo. Pior para o Brasil