Em Portugal, país de grande litoral, há uma significativa tradição no fabrico de rendas e estas chegam ao Brasil pelos nossos colonizadores lusitanos. O tecer em pontos abertos das redes de pesca assemelha-se tecnicamente à origem dos pontos ornamentais, também abertos, das rendas e daí entende-se a razão das rendas serem especialmente produzidas em regiões litorâneas ou ribeirinhas. A renda está presente no artesanato de ambos os países separados fisicamente e, ao mesmo tempo, unidos pelo Oceano Atlântico.
A renda é de origem europeia e antes de percorrer um pouco do seu histórico, vale entender seu significado e sua etimologia. O famoso Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda nos dá diferentes significados para a palavra renda. O primeiro deles diz que renda, entre outras explicações, é a “importância recebida por pessoas ou entidade, geralmente de forma periódica, como remuneração do trabalho, lucro de operações comerciais, juro de investimento, etc.” O segundo significado mostra que renda é o tecido de malhas abertas e contextura em geral delicada, cujos fios (de linho, algodão, seda, etc) trabalhados à mão ou à maquina, se entrelaçam formando desenhos, e que é usado para guarnecer ou confeccionar peças do vestuário, alfaias, roupa de cama e mesa, etc”. Deduz-se então que no que tange ao aspecto artesanal requer habilidade, domínio técnico e disponibilidade de tempo para a execução das rendas. Por isso, é comum na região Nordeste do Brasil a expressão “fazer renda” com o significado de “tomar chá de cadeira”, como o próprio Aurélio complementa no final do verbete renda.
No caso deste artigo vale esclarecer o previsível e dizer que o objeto de pesquisa e foco deste breve escrito é o segundo significado de renda, ou seja, o tecido de pontos abertos e desenhados.
No que diz respeito à etimologia da palavra renda como acepção de rendimentos, essa aparece na língua portuguesa em meados do século XII originando-se do latim clássico reddere ou rendere. Palavras semelhantes, com o mesmo étimo, também são usadas em outras línguas neolatinas como o espanhol, italiano e francês. Na etimologia de renda como tecido é sabido que se relaciona com o espanhol renda e o catalão randa, já presentes na língua nos séculos XV e XIV, respectivamente. Indo um pouco mais anteriormente, a origem da palavra é bem provável que seja celta, de influência provençal, pois o verbo randar nesta língua significa “adornar, fazer orlas”, dando a palavra randa o significado de “limite, fim”. Em compensação, na língua espanhola moderna outras palavras sinônimas vão aparecer tais como encaje (do século XV, do verbo encajar, que se origina do latim capsa que quer dizer “caixa” e em espanhol cajá) ou pantillas (do século XVIII, como diminutivo de punto [ponto], por influência da palavra francesa pointe que já aparece desde o século XII). Todavia a palavra usada em língua francesa para o tecido renda é dentelle que é extensão linguística das palavras latinas dens, dentis (dente), que no diminutivo da língua gálica (dentelle) vai indicar a semelhança visual das rendas com algo mordido, mordiscado. Na língua italiana vai ser usada a palavra laccio e na língua inglesa lace, ambas com étimo no latim culto laqueum, e no latim popular lacium, que quer dizer “laço”. Já no alemão, renda é Spitze, do adjetivo spitz, significando “pontudo” que, possivelmente, tenha se originado na translação do francês medieval da palavra pointe (ponto) do século XII.
Entendendo melhor a renda por intermédio do seu significado e de sua etimologia, vale agora compreendê-la como técnica, como conceito e também como processo histórico.
A renda é diferente do bordado, apesar do seu surgimento dever muito a esta técnica bem mais antiga, uma vez que o bordado requer uma base têxtil como suporte para execução, diferentemente da renda que é um tecido em si elaborado com fios contínuos ou uma série de fios que se sustentam entrelaçados uns aos outros e com pontos no ar. Não é a toa que, na sua origem europeia, na Itália foi chamada de “punti in aere” e na França de “point en l’air”.
Partindo do conceito sobre rendas, trata-se de um tecido cuja tecitura é aberta com fios entrelaçados, não tendo assim nem trama nem urdume, formando desenhos e texturas, no qual são empregados vários tipos de fios, tanto de fibra natural quanto de fibra sintética e até mesmo fios metálicos, sem falar das cores dos fios que são de incontáveis possibilidades. É um tecido cuja finalidade é muito mais ornamental do que de proteção, e serve tanto para o vestuário – civil ou religioso – quanto para peças de decoração.
Tecnicamente falando existem duas principais categorias entre as rendas manuais: a renda de bilro (ou almofada) e a renda de agulha, porém há outras modalidades de rendas diversas (macramê, filé, labirinto, frivolitê etc) e também o crochê e o tricô – que por serem executados em fios contínuos com pontos também abertos, podem ser considerados como rendas. Além, obviamente das rendas produzidas mecanicamente.
Na sua construção, diversos são os pontos com os quais as rendas podem ser elaboradas, especialmente aquelas de agulha, que servem tanto para formar os motivos ornamentais quanto também para preenchê-los, e ainda os pontos de hastes, sendo estas as bases para que pontos outros possam ter um suporte para serem executados.
No que tange ao seu histórico, as redes e os bordados antecedem as rendas e, para ser bem mais preciso, os domínios técnicos destas duas artes favoreceram o surgimentos das rendas como nós as conhecemos. As tais redes, especialmente as de pesca, que já existiam há longa data, tanto no Oriente quanto no Ocidente, vão servir de essência para aquilo que, de fato, só vai ser fundamentado como tal no final do período da Baixa Idade Média e concretizado já no período do Renascimento. Os galões e passamanarias, que ornavam as roupas do final do período Gótico, associados aos excessivos bordados das mesmas, ajudaram a formatar as rendas. Se o tecido fosse cortado onde não houvesse o bordado daria a ideia de um tecido perfurado, aberto, vazado, à semelhança do que viriam a ser as rendas. Se o próprio bordado, feito com agulhas, abrisse os fios e vazasse o tecido como são os diversos tipos dos pontos ajours (ponto aberto, em francês), o resultado visual também era com a aparência de perfurado.
Todo este domínio técnico incrementado pela sensibilização dos ornamentos foi associado e assemelhado à técnica da tecitura de redes, que são confeccionadas em pontos abertos. Conclui-se então que no desenvolvimento de diversos pontos abertos distintos, dependendo de onde eram realizados, fez surgir de fato a renda.
Alguns teóricos citam que técnicas semelhantes primitivas já tinham surgido bem anteriormente no Oriente e que veio para o Ocidente. Todavia, há um consenso maior em dizer que a renda é europeia e da segunda metade do século XV. Não é exata a época nem o local específico do seu surgimento, porém acredita-se que a renda de agulha tenha surgido na Itália (região de Veneza, que é litorânea) e a de bilro tenha surgido em Flandres (atual norte da Bélgica, que também é litorânea). Ambas as conclusões ocorreram devido a registros iconográficos nos quais aparecem este artesanato. A técnica foi espalhada por todo o Mar Mediterrâneo e atingiu outros lugares europeus e também suas colônias além-mar. A renda chegou à França, Espanha, Portugal, Inglaterra, Irlanda, entre outros países litorâneos e atravessou o Atlântico chegando também às então chamadas “Índias Ocidentais”, que é exatamente a América do Sul de hoje. Sendo assim, há mais uma comprovação das rendas também estarem associadas às técnicas de elaboração das redes. Tanto é que em Portugal há uma citação que nos diz: “Onde há redes, há rendas”.
Em solo europeu, a renda ganhou corpo, fez escola, foi desenvolvida em diversos lugares, normalmente ganhando o nome do topônimo onde era elaborada. Tornou-se patrimônio cultural de cada lugar que disputavam entre eles não só o domínio técnico como também, especialmente, a beleza dos pontos e os resultados em motivos fantasias e alegóricos que despertavam a experiência estética em si. Havia inclusive espécies de patentes dos pontos e que não podiam ser desenvolvidos fora do seu lugar de origem. As rendas tornaram-se tão cobiçadas e caras, que eram consideradas formas de patrimônio financeiro. Algumas nações ganharam muito dinheiro exportando seus respectivos “pontos no ar”.
O predomínio das rendas na cor branca é justificado por duas razões, a saber: a primeira é que quando da sua origem muito foi aplicada nas roupas de baixo e estas deveriam sempre ser brancas e em linho, pois facilitava a denúncia da sujeira e indicava a hora de lavar; a segunda é que no período do Renascimento houve uma predileção pelo branco, especialmente nas esculturas, uma vez que os ideais estéticos do período privilegiavam mais a forma em detrimento da cor.
Ao tempo do Rei Luís XIV, a França investia tanto no setor que o ministro das finanças do Rei Sol, Jean-Baptiste Colbert, abriu manufaturas específicas de rendas para gerar trabalho, aumentar a produção e, obviamente, engrossar os cofres nacionais. Colbert trouxe inclusive artesãos venezianos e flamengos para aprimorar as técnicas tanto da renda de agulha quanto da de bilro (fuseau, em francês). Desenvolveram pontos, em especial o point de France (ponto de França), que foram impostos aos ateliês franceses em funcionamento. Essa produção era centralizada em Paris, na chamada “Manufacture Royal de point de France” (Manufatura Real do ponto de França).
Nos séculos XVII e XVIII as rendas manuais já estavam completamente integradas às roupas femininas e masculinas, além dos trajes litúrgicos e também nos tecidos de decoração.
O processo da Revolução Industrial mesmo em sua incipiência no início do século XIX trouxe mudanças gerais, inclusive no setor têxtil. Na década de 1810 foi inventado o filó a máquina, ou seja, um tecido já todo vazadinho, e isto ocasionou uma grande mudança no fabrico das rendas, pois as bases vazadas ou com aparência de vazada, já estavam praticamente prontas. A partir de então, estes filós de algodão substituíram os de linho (mais caros e mais duráveis), uma vez que eram mais baratos, de melhor processamento e mais rápidos na produção.
Os fios de algodão, agora melhores, substituíram as rendas de fios finos de linho e, mais do que isso, os efeitos da forma de produção industrializada vieram substituir o trabalho artesanal, além de aumentar a produção e baratear o produto. Na realidade as máquinas de produzir rendas já existiam desde o final do século XVIII, porém foram aperfeiçoadas nas duas primeiras décadas do século XIX e, de lá para cá, as rendas cada vez mais mecanizadas, em fios cada vez mais aprimorados, colocam o trabalho manual do artesanato em segundo plano, mas em compensação, acabam valorizando mais ainda o trabalho do artesão, cada vez mais raro, cada vez mais inacessível e consequentemente mais luxuoso e mais valorizado cultural e tecnicamente falando.
Descrevendo um pouco sobre o Brasil, a renda nacional foi e é desenvolvida em várias regiões também litorâneas do nosso gigante território, sendo elaborados pontos distintos, de belo resultado visual e de reconhecimento nacional e internacional.
Os nossos colonizadores portugueses trouxeram a técnica, difundiram-na em várias cidades, especialmente nas do Nordeste do país – nos estados do Ceará, Alagoas, Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Bahia e Sergipe –, e também no estado de Santa Catarina, na região Sul do país, onde há uma grande tradição da colonização portuguesa.
Desenvolvemos nossos próprios pontos tanto em renda de agulha como em renda de bilro com motivos genuínos e que na grande maioria das vezes são inspirados nas formas de nossa rica natureza vegetal. São diversos os nomes que adjetivam as rendas brasileiras (alguns até com nítida influência da língua francesa, como frivolitê, filé, entre outros, além de crochê e tricô), mas uma delas é bem conhecida e renomada, a renda Renascença. Sua origem é datada na Europa do século XVI (período da Renascença ou Renascimento, daí o seu nome) e que chegou ao Brasil pelo estado de Pernambuco, especialmente ensinada como ofício feminino nos colégios internos e conventos. Esta e inúmeras outras foram desenvolvidas e ainda são elaboradas de Norte a Sul do país fazendo com que as rendas sejam um patrimônio cultural dos ofícios brasileiros.
Tanto é que em Maio de 2009 foi criado o dia da rendeira no Nordeste do Brasil, em homenagem às mães e avós que ensinam e preservam a arte das rendas em território nacional. Segundo consta, são quatro as operações básicas de manuseio técnico do material para produzir as rendas por isso, o dia 04 do mês das mães foi o escolhido para essa comemoração. Já em Florianópolis, capital de Santa Catarina, o dia da rendeira é comemorado em 21 de Outubro.
Seja Maio ou Outubro, é louvável e respeitoso ter um dia em que seja comemorado o dia das rendeiras, estas que preservam parte da memória cultural artesanal do Brasil.
João Braga
SP, 30/3/2015