A transformação do barro está presente com muita força na cultura brasileira. Vários povos indígenas têm uma requintada produção de utensílios cerâmicos; em todos os estados do país há comunidades artesanais dedicadas ao material; e nas últimas décadas cresceu a sua utilização por artistas e designers urbanos.
Cerâmicas do Brasil , em cartaz em A CASA de 12 de agosto a 18 de outubro, quer apresentar um olhar transversal sobre essa produção. Nos concentrarmos no momento atual, século 21, procurando pontuar algumas vertentes dos trabalhos que vem sendo desenvolvidos. A exposição junta em pé de igualdade criações de indígenas, artistas e designers populares e artistas e designers eruditos, universos tantas vezes vistos de maneira estanque.
Da produção indígena pinçamos os Wauja, tradicionais ceramistas do Parque Nacional do Xingu, muito conhecidos por suas panelas de vários formatos e tamanhos, algumas enormes, e com ricos grafismos. No processo recente de interação entre os vários grupos xinguanos, houve uma absorção da técnica pelos Mehinako. Na exposição apresentamos uma panela e um torrador de beiju de autoria de Iamony Mehinako e uma panela zoomorfa elaborada por Uleialu Mehinako.
As peças do povo indígena Paiter Surui, de Rondônia não apresentam qualquer ornamento. A única preocupação é com a forma, que atende a diferentes funções. Os utensílios revelam grande primor técnico e chegam a espessuras muito finas e delicadas e a texturas lisas e suaves.
Os legados culturais indígenas muitas vezes sofrem processos de recriação e continuidade. Foi o que aconteceu com a comunidade de mulheres dedicadas à produção artesanal de panelas de barro no bairro de Goiabeiras, em Vitória, no Espírito Santo, herdeiras de tradições indígenas. O Ofício das Paneleiras de Goiabeiras integrou o primeiro registro de Patrimônio Imaterial no Brasil, em 2002. As panelas são indispensáveis no preparo e na apresentação de pratos típicos capixabas e se tornaram o principal ícone da identidade cultural do estado.
Outra comunidade artesanal representada na mostra é o povoado do Muquém, antigo quilombo localizado no município de União dos Palmares, Alagoas, onde há pelo menos cinco gerações alguns moradores se dedicam à produção de utensílios em cerâmica. Embora continuem fazendo panelas para uso próprio e para venda, Irinéia Nunes da Silva e o marido Antônio Nunes se descolaram do utilitário e passaram a fazer obras com forte valor simbólico.
Inês Antonini e Heloísa Galvão também trafegam entre o utilitário e o artístico. De Inês escolhemos a série Fragmentos, uma reinterpretação contemporânea da tradição barroca mineira. Sua produção busca uma linguagem brasileira na queima a lenha no forno Anagama, em geral associado à influência japonesa. Já Heloísa desenvolveu uma linguagem muito própria utilizando a porcelana líquida para a criação de objetos em série. As superfícies de algumas peças exibem serigrafias de imagens capturadas em fotos. Nas bordas irregulares e nas gotas escorridas, cada obra traz o registro do momento fugaz em que surgiram – não por acaso, tal como na fotografia.
Sara Carone vem da pintura, desenho e escultura. A partir dos anos 1980 elege a cerâmica como suporte, fazendo objetos que são como telas tridimensionais, sobre as quais ela desenha. Nesta mostra buscamos uma faceta nova de seu trabalho. Cacos em diversas fases de queima e sobras destinadas ao lixo do ateliê são amarrados e/ ou colados ganhando poeticamente uma nova vida.
Quem também dá vida nova a um material é o designer Brunno Jahara. Brunno empilha os vasos e pratos de terracota fabricados em série por olarias para o mercado de jardinagem e com eles compõe luminárias, fruteiras, candelabros e vasos. As peças da série Conterrâneos saem do banal para galgar o mercado recente e crescente dos colecionadores de design.
Colocar lado a lado no mesmo espaço expositivo peças tão diversas permite, a meu ver, que uma ilumine a outra, compondo um mosaico de enorme riqueza. Esta reunião também mostra como, na contemporaneidade, os limites entre artesanato, design e arte perderam a rigidez e passaram a se interpenetrar, abrindo novas possibilidades no universo criativo.