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A CASA E O MUNDO

ENTREVISTA

CRISTIANA BARRETO

Publicado por A CASA em 2 de Setembto de 2015
Por Ivan Vieira

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"Temos que pensar as tradições culturais de forma dinâmica"

Cristiana Barreto é arqueóloga e estuda as tradições ceramistas da Amazônia


Você é graduada em História, com mestrado em Antropologia Social e doutorado e pós-doutorado em Arqueologia pela Universidade de São Paulo. É professora do curso de pós-graduação em História da Arte da Fundação Armando Álvares Penteado e também pesquisadora do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. De onde vem seu interesse pela arte, cultura e arqueologia e como se desenvolveu sua trajetória nessa área?
Esta formação, com passagem pela história, antropologia social e arqueologia, desde o início seguiu uma trajetória em direção à arqueologia. Logo no meu primeiro ano de faculdade, tive a sorte e o privilégio de encontrar o Ulpiano Bezerra de Meneses, então professor do Departamento de História da USP, arqueólogo, mas também historiador, e hoje em dia, uma voz muito importante na museologia. 
Neste primeiro encontro, ele me apontou duas direções. Primeiro, eu tinha aquela visão romântica de todo jovem que quer fazer arqueologia, de ir para a Grécia ou para o Egito. Porém, ele falou “Se você quiser fazer arqueologia, você vai fazer arqueologia no Brasil, porque nós precisamos estudar a nosso passado indígena pré-colonial”. A segunda direção apontada foi para os estudos de cultura material em seu sentido mais amplo, e da Arqueologia como parte disso. A arqueologia pode ser uma coisa muito maçante, muito técnica, que às vezes fica muito restrita aos aspectos físicos dos objetos, mas ele me ensinou a ver os objetos como vetores de relações sociais.
Então, a minha trajetória na arqueologia é um pouco diferente da maioria dos arqueólogos da minha geração, porque sempre mantive este olhar de que estudamos os objetos porque queremos entender as pessoas, os objetos estão imbuídos de intenções, ações, reações e muitos têm agência própria: intermedeiam relações sociais e nos fazem agir, sobretudo aqueles objetos-gatilho, como os objetos rituais, religiosos ou de arte, que possuem “um poder” além das esferas do cotidiano. Estes são os objetos que tenho estudado mais recentemente. Então, a minha trajetória dentro da arqueologia se desenvolveu um pouco nessa linha de pensamento de estudos da cultura material, de partir do objeto para entender como se dão as relações sociais em torno deles, e porque alguns objetos são mais especiais do que outros. 
Outro aspecto importante que me fez avançar neste caminho foram as curadorias de exposições, a maioria sobre arqueologia da Amazônia, mas também sobre artes indígenas e cultura popular. Estas atividades, que iniciei um pouco ao acaso, hoje repercutem muito no meu trabalho acadêmico, sobretudo com os estudos de acervos da Amazônia. Sempre me fascinou o efeito que os objetos encontrados nesta região tinham sobre o público. Então, isso me levou também a estudar os aspectos da estética do objeto, da estética nativa e como ela pode extrapolar para um olhar ocidental. Além disso, mais do que nunca, vivemos numa sociedade supermaterialista, onde os objetos têm significados e poderes diferentes. Desse modo, acabei saindo um pouco da arqueologia pré-colonial brasileira, desse passado indígena, para olhar os objetos da cultura popular – enfim, sair um pouco da caixinha da arqueologia e passar a olhar outras tecnologias e estéticas que também ainda são pouco conhecidas. Então, essa foi a trajetória que me levou a ter interesse por arte, cultura popular e arqueologia.

Considerável parte da sua produção profissional e acadêmica se refere a assuntos sobre o artesanato indígena brasileiro. Quais as características, valores e manifestações que despertam o seu interesse por este gênero da produção artesanal nacional?
Quando estudamos arqueologia, trabalhamos com o testemunho material bastante incompleto das atividades realizadas nos locais, com apenas aquilo que sobreviveu ao uso e ao tempo.  Então basicamente se trabalha com fragmentos de cerâmica e com objetos feitos de pedra e, é claro, com seus contextos espaciais, ambientais, etc. Contudo, o estudo dos objetos e de seus sistemas tecnológicos envolve muitos outros materiais, técnicas e produtos. Por isso, tive sempre interesse em olhar a produção indígena atual, que envolve cestaria, plumária e uma série de outros sistemas tecnológicos que trabalham diferentes matérias primas, e que podemos observar na sua forma mais íntegra. Este olhar também tem que ser cuidadoso, para não projetarmos o presente no passado de forma reducionista; e também temos que considerar que, de certa forma, as tecnologias do presente também estão incompletas (em relação às do passado), uma vez que muitas delas já foram esquecidas, abandonadas ou muito alteradas. Assim, na verdade, acabo lidando com duas pontas de uma mesma história. Tento muito no meu trabalho fazer esse diálogo entre a arqueologia e a etnologia, entre o passado e o presente. 
E ao longo destas histórias indígenas, acredito que o que menos muda é a estética de cada povo; porque é através da estética compartilhada pelo grupo que suas identidades tradicionais são reatualizadas. A maneira de fazer as coisas, o que é considerado bonito, bem feito e admirado por todos, pode ser uma síntese do que é pertencer àquele grupo.    

A produção artística de comunidades tradicionais, em determinados casos, é marcada pela dicotomia da tradição e da mudança. Na sua opinião, qual o papel destas duas dimensões no contexto contemporâneo da produção do artesanato indígena brasileiro? Se possível, poderia mencionar experiências positivas e negativas?
Em minha opinião, temos que relativizar um pouco esses conceitos de tradição e mudança. Às vezes, no mesmo objeto ou na mesma tradição tecnológica, você vê que determinadas mudanças não implicam em perda de tradição, mas numa reatualização da tradição. Numa tradição cerâmica, por exemplo, podem surgir novas formas, ou novas decorações, e outras serem abandonadas, mas a maneira de fazer os potes, os desenhos sobre eles, e tudo o mais que envolve o ciclo de fazer e usar a cerâmica, desde a coleta da argila até o descarte dos potes, incluindo o aprendizado de como fazer os potes pelos mais jovens, todo o ciclo de processamento de alimentos, os tabus alimentares, as comidas e bebidas que são servidas neles, os significados que eles podem adquirir nas festas e cerimônias, e etc. , tudo isso pode estar continuando uma tradição. 
Esta relativização do que é tradicional é necessária também porque hoje, entre o público brasileiro em geral, há um equívoco muito grande em se achar que o índio, aquele ser primitivo que não pode ser contaminado pela sociedade contemporânea, vai deixar de ser autêntico se ele começar a incorporar coisas modernas. A questão principal não é essa. A questão é: os objetos continuam a ter o mesmo significado para eles independente da matéria-prima ou da técnica que eles usam? O que importa, primordialmente, é o significado. Eu até já trabalhei em algumas exposições com alguns objetos que provocam e incomodam mesmo as pessoas, como, por exemplo, os cocares feitos de canudos de plástico pelos Kayapó do Mato Grosso, que apesar de serem grandes plumistas, hoje nem sempre têm acesso às plumas. Ou as tangas de miçangas feitas pelos índios Tiryió do Amapá.  Como estes objetos podem ser expostos como objetos tradicionais? O importante é que a tradição do uso do cocar e o esquema de cores em que são feitos continua sendo mantidos entre os Kaiapó, e tem o mesmo efeito cenográfico durante as festas em que são usados; e que os Titryió consideram o trabalho com miçangas entre o que há de mais tradicional em sua produção, uma vez que têm acesso a este material há mais dois séculos.  
Sendo assim, temos que pensar as tradições culturais de forma dinâmica. Elas mudam, mas não necessariamente “empobrecem” ou deixam de ser autênticas. Acredito que é importante as pessoas deixarem de ter essa visão idílica do índio. Vivemos no século XXI e não podemos querer que o índio continue vivendo no passado. Não devemos mantê-los na categoria do antigo, do antes, do pré-civilizado. Isto seria, na verdade, replicar a base da ideologia de dominação colonialista. 
Por isso, o que acho mais interessante nessa produção material indígena brasileira é justamente a dimensão histórica. Estamos em uma situação privilegiada para entender o que de fato mudou ao longo da história na cultura material deles, e em função do quê. Mas tem pouca gente se ocupando dessas investigações. Os antropólogos estão interessados no aqui e agora, em tentar entender como funciona aquele sistema no presente. E os arqueólogos trabalham num passado muito distante. 
Para alguns grupos indígenas temos o registro do histórico dos primeiros contatos até os dias de hoje, e também coleções guardadas em museus da sua produção material em diferentes momentos ao longo desta história. Por exemplo, para as comunidades indígenas do Alto Xingu, temos toda essa história contada, desde os primeiros contatos, mas ainda não foi feito uma história do que mudou na cultura material deles em função da criação do Parque Nacional do Xingu e de todas as implicações que isto gerou em termos de convivência entre os diferentes grupos e com a sociedade nacional. Quando o parque foi criado, começou a existir uma interação maior com outros grupos que foram trazidos para ali, às vezes nem sempre eram grupos que tradicionalmente interagiam entre si. O que mudou na cultura material deles com este processo? Como é que aquele sistema de troca e de compartilhamento de objetos, de ideias e outras coisas afetou a produção material das comunidades? 
Talvez só assim consigamos realmente construir uma teoria para entendermos o que é uma tradição de cultura material. Este é um estudo que em poucos lugares no mundo é possível de ser feito, e no Brasil existe este potencial, ainda muito inexplorado. E ainda podemos fazer isso junto com os índios.

Recentemente, devido ao desenvolvimento de projetos que unem o artesanato ao design, tem crescido o número de designers que vão até essas comunidades indígenas e interferem, em maior ou menor grau, na produção material desses grupos. Como é que você avalia essas interações? Se possível, poderia dar exemplos de experiências positivas ou negativas?
Hoje em dia vemos estes projetos realmente se multiplicando. Houve uma espécie de boom depois que o design descobriu essa produção artesanal indígena – que é de fato muito cativante. Vejo nisso uma vontade de valorizar nossas raízes brasileiras, mas vem muito também de fora do Brasil, de uma moda de “arte étnica” em que o exótico é valorizado, e mesmo fetichizado, na busca de se agregar valor às marcas com conceitos como “autêntico”, “natural”, “orgânico”, “sustentável”, etc. Existe até uma rede de lojas de roupas femininas que se chama Anthropologie. Sobretudo na área de design e da moda, está crescendo muito essa inspiração na produção indígena. E, por outro lado, essa aproximação não é só do lado do “branco”, digamos. É também do lado dos índios, que têm percebido cada vez mais que a arte deles é o melhor cartão de visita para mostrar a sua própria identidade. 
Agora estamos num momento dentro do Brasil em que essas sociedades indígenas já passaram pela pior crise. Nos anos 1960 previa-se que os índios iam acabar. Darcy Ribeiro falava, alarmado, que nós precisávamos documentar tudo porque estas as populações iriam acabar. E, no entanto, elas estão aí, crescendo em toda a sua diversidade. Hoje são cerca de 240 povos indígenas falando 180 línguas diferentes!
É claro que ainda temos casos críticos de chacinas, dizimações, invasões de terras indígenas. Mas, uma vez assegurado o território, que é um direito básico que lhes garante a sobrevivência, um segundo passo natural é justamente retomar as tradições culturais e usar essa produção material como cartão postal ou como cartão de identidade para a sociedade nacional, para mostrar: “Olha, nós somos assim. E nós não somos índios genéricos. Somos Guarani, somos Kayapó, etc.” É talvez a melhor maneira de mostrar estas tradições para o público. Isso, para eles, é muito importante. Vemos que a maioria dos povos indígenas que tem suas organizações e representações bem articuladas acaba criando cooperativas de artesanato como forma de viabilizar o contato com a sociedade nacional. 
Sobre essa aproximação que tem tido entre o design, a moda e a produção indígena, eu acho positivo no geral. Contudo, possuo muitas reservas, porque tenho visto alguns projetos que vão às aldeias, fazem uma aproximação muito cuidadosa e respeitosa, fazem uma pesquisa interessante sobre essa produção artesanal e acabam produzindo objetos inspirados nessa tradição artesanal – repassando inclusive recursos concretos para os índios, para de alguma forma fazer um uso “autorizado” deste material. Mas, além do dinheiro, qual o retorno para as comunidades indígenas? Em geral, no produto que é vendido, inspirado na produção indígena, nada é divulgado sobre o significado que aquilo tem para os próprios índios. Então, acaba sendo uma reapropriação estética, do ponto de vista ocidental. São raros os produtos que você vê uma etiqueta que, por exemplo, explica o motivo gráfico ou que fale “esse é o motivo gráfico da cobra, que é importante para os índios tal, de acordo com tal mito”. Isso é raro de se ver. Na maioria dos casos passa um motivo gráfico muito bonito, às vezes até tem o nome do grupo, mas não contribui nada na divulgação dessa identidade indígena que, para eles, é muito importante.
Então, acho que temos que ser impiedosos na crítica, pois, a rigor, continua-se fazendo o mesmo que se fazia desde 1500: o escambo. Estão lá dando o espelhinho para conseguir usar o conhecimento ou a tradição indígena. Não estão ajudando em nada para que os povos indígenas e suas tradições sejam reconhecidos e admirados pelo público que compra estes produtos, mas simplesmente, agregando capital simbólico às suas marcas. Por isso, devemos ter muito cuidado nos meios e nos fins deste tipo de relação.
Recentemente teve um caso de um designer que se inspirou nos padrões gráficos dos Wajãpi para fazer papel de parede. Estes são padrões que foram registrados como patrimônio imaterial nacional e da humanidade pelo IPHAN e pela UNESCO. São motivos gráficos muito bonitos que se relacionam diretamente com suas narrativas orais, seus mitos, e sua cosmologia, enfim. Eles têm reservas muito peculiares sobre o uso destes motivos por terceiros, pois eles não se consideram seus donos, mas apenas os guardiões do que lhes foi mostrado por seres mitológicos primordiais, em um passado muito distante. Se eles não usarem direito aqueles padrões, estes seres, verdadeiros donos dos padrões, podem agir de forma maléfica contra os Wajãpi. O uso indevido, portanto, pode ser muito perigoso. Assim, a reprodução destes motivos em papel de parede, a ser utilizado indiscriminadamente por qualquer pessoa que o comprasse, demonstra que, no mínimo, do ponto de vista do design de produto não houve um entendimento do real significado daquela arte gráfica.  E do ponto de vista ético, foi ignorado o papel dos índios como detentores de um saber tradicional e a importância do seu papel particular na salvaguarda deste bem imaterial. O projeto não foi à frente; os índios reclamaram e o IPHAN interveio. Mas e aqueles bens tradicionais que não estão protegidos pelo IPHAN? Tivesse sido este um projeto mais colaborativo, onde o diálogo entre comunidade indígena e design buscasse a melhor maneira para ambos os lados de se desenvolver um produto, o desfecho talvez tivesse sido diferentes. Acredito muito em formas mais colaborativas, mais simétricas de se trabalhar com os índios.

Dentro da área acadêmica, existem alguns estudiosos que dizem que o atual processo de globalização pode colocar em risco a preservação e manutenção de culturas tradicionais. Entretanto, alguns antropólogos - como Marshall Sahlins, por exemplo - dizem que o desenvolvimento dessa integração global é acompanhada por um aumento das diferenciações locais, em que comunidades tradicionais passam por um processo criativo de geração de uma nova auto-identidade, o que impede que esse grupo passe por um procedimento de “deculturação”. Na sua opinião, é possível situar as comunidades indígenas brasileiras da atualidade em algum ponto deste debate?
Acho que podemos situá-los em todos os pontos desse debate. Hoje em dia, no Brasil, observamos sociedades indígenas em diferentes momentos históricos desse contato com a sociedade nacional, com o capitalismo. Temos desde grupos ainda não contatados, até grupos muito integrados, que inclusive já têm sua representação política bem articulada. Então, temos um amplo espectro de como se dá a criatividade dentro desses contextos. Sendo assim, o fato de estar mais ou menos situado nesse debate depende muito da história de cada grupo.
Existem dois efeitos que temos visto em direções opostas. Um que eu acho bem negativo, no sentido de que, apesar de integrá-los na sociedade nacional, o faz de uma maneira que realmente afeta de forma irreversível sua identidade, pois subverte sua maneira particular de explicar o mundo, e que é o processo de evangelização – que tem sido muito forte na Amazônia. A maior parte dos grupos indígenas hoje vive nesta região e atualmente temos uma quantidade enorme de religiões evangélicas, levadas por missionários ou pequenas igrejas, estrangeiros e brasileiros, trabalhando muita agressivamente na conversão das comunidades indígenas. Isso acaba afetando uma coisa que é o core, é o núcleo da tradição deles. Surgem até alguns sincretismos, com uma tendência a equiparar certos rituais indígenas tradicionais aos evangélicos e etc., mas isso acaba tendo um efeito empobrecedor e irreversível na cultura deles. Infelizmente, isto está acontecendo muito rápido. Pode-se perguntar, mas isto vem acontecendo desde os primórdios da colonização, com os jesuítas e tal, mas as técnicas de conversão hoje talvez sejam mais engenhosas. 
De outro lado, temos os processos dos índios chamados renascidos, que já tinham perdido completamente a sua identidade indígena e que no meio dos tantos conflitos que assistimos hoje na Amazônia – sobretudo nesta dinâmica de capitalismo selvagem das frentes de desenvolvimento, por exemplo, com a construção de grandes hidroelétricas ameaçando as comunidades ribeirinhas e tradicionais que vivem na beira dos rios – eles passam a reclamar a identidade indígena, quer seja porque eles vão conseguir reivindicar direitos sobre suas terras, quer porque, realmente, esses conflitos fazem com que eles questionem as suas identidades e retomem a sua história. Com certeza naquelas sociedades caboclas amazônicas, todos tem uma herança indígena e, por fim, eles acabam reinventando a sua cultura material como indígena. E é um processo criativo muito rico, porque eles podem começar do zero. Na verdade, eles acabam emprestando coisas daqui e dali de grupos indígenas de áreas próximas, e que é um processo muito natural entre os índios da Amazônia. Acho este um processo muito positivo. Tivemos isso na Bahia no final do século passado, e agora estamos vendo este processo acontecer também na Amazônia.
Portanto, acredito que essas comunidades indígenas brasileiras estão nesse debate de recriar a sua identidade de várias maneiras: ou virando índio evangélico, ou virando índio ex-caboclo. Eu acho que tem um pouco de tudo entre estes dois exemplos. Muitos antropólogos vem há tempos estudando estes processos. Agora, o que não dá mais é para a gente ficar ignorando esses processos e dizer aos índios para “serem índios”, isto é, ficarem lá no passado, continuar a andar nus, ou não usar aparelhos eletrônicos. Eu acho ótimo que as aldeias indígenas hoje tenham internet. No Xingu, por exemplo, eles têm uma tradição estética que lhes torna cineastas maravilhosos, porque eles têm preocupação particular com enquadramento e com a linguagem imagética em geral.  Faz parte da estética xinguana. Então, quando você dá uma câmera na mão de um índio xinguano, saem filmes maravilhosos. Temos visto aí essa produção cinematográfica incentivada pelo projeto Vídeo nas Aldeias há mais de 20 anos.  
Então, em minha opinião, temos que abrir a oportunidade aos índios de se inserirem na modernidade, mas sempre lhe dando o direito de continuar a ser índio, dado que isso é garantido pela Constituição Federal de 1988. E mais ainda, temos que reconhecer de uma forma mais simétrica, a diferença e a autonomia do pensamento indígena. 

Você já efetuou inúmeras pesquisas sobre acervos documentais no exterior, e inclusive já participou de várias mostras internacionais que trabalharam com temas ligados à produção material e imaterial dos povos indígenas brasileiros, como as exposições Unknown Amazon, em Londres (2001), Brazil, native traditions, em Pequim (2003) e Brésil Indien, em Paris (2005). Na sua visão, como e qual é a receptividade dos objetos indígenas brasileiros no exterior?
Depende um pouco de qual exterior estamos nos referindo. De uma maneira geral, existe um estereótipo muito forte e muito grande sobre o que é a Amazônia e o que é o índio da floresta tropical, na maioria das vezes visto como esse índio idílico que vive no meio da floresta e é “primitivo”, “não civilizado”. Então, em todas as exposições que fizemos tivemos que lidar com estas pré-concepções e expectativas, e procuramos mostrar que nós não estamos tratando de um índio “desprovido”. Ao contrário. Estas sociedades tem uma tradição estética absolutamente complexa, interessante e diferente. O público em geral, tanto no exterior como no Brasil, conhece muito pouco dessas culturas. No exterior, existe um certo fetiche com determinados objetos, como com a plumária. Então, nestas exposições as pessoas queriam ver as plumas, porque tem um colorido e elas associam aquilo ao carnaval, à latinidade e ao calor dos trópicos. Assim, este trabalho acaba sendo um pouco difícil, pois há uma dupla tradução a fazer: a tradução curatorial do conhecimento antropológico para o publico em geral, mas também a tradução antropológica de um olhar brasileiro para um olhar estrangeiro.
Procuramos lidar com estas expectativas de forma a poder aprofundar o olhar, mostrar não só o brilho e as cores da plumária, mas todo o sistema tecnológico de com elas são amarradas, os diferentes gêneros de adornos plumários, o que eles simbolizam, e etc. E em seguida vamos mostrando outras produções, do cotidiano ao ritual, das cestarias às máscaras, procurando sempre trabalhar a relação entre a arte, os atributos formais e as cosmologias. 
Acho que a arte é um tema muito positivo para mostrar as sociedades indígenas brasileiras; é um partido museológico que tem dado muito certo. As pessoas realmente se surpreendem e aprendem de maneira mais sensorial conteúdos que ficam muito maçantes nas teses de antropologia (não que estas não sejam necessárias!). Nestas exposições na Inglaterra, França e China, tivemos um retorno muito bom do público. Infelizmente não teve uma pesquisa formal de público, ou uma avaliação museológica, mas o pouco que vimos foi que as pessoas aprenderam muito e de fato mudaram um pouco a sua visão sobre os índios. 
Na França, sobretudo, foi muito instigante, pois trabalhamos com a fetichização ao contrário: foi exposto o trabalho do Lévi-Strauss mostrando os objetos que ele coletou, sua fotos e filmes, e pudemos prender o olhar do público francês sobre os objetos indígenas envoltos pela aura de seu coletor. Lévi-Strauss estava vivo ainda e foi ver a exposição, o que adicionou ainda mais uma camada de glamour a objetos que há muito não viam a luz fora de uma reserva técnica de museu.  
Agora, na China foi desafiador, porque a gente foi mostrar a arqueologia da Amazônia, que tem cinco mil anos, e eles diziam “Só? Nós temos quinze mil.” Mas uma das coisas mais interessantes foi o fato da exposição ocorrer dentro da Cidade Proibida, que é um espaço museológico com vários pavilhões. E essa foi a primeira exposição feita dentro da Cidade Proibida que não dizia respeito à China. Além disso, ficamos no último pavilhão, onde você podia entrar ou sair por ele para conhecer todo o complexo. E o público da Cidade Proibida é muito grande, recebem milhões de pessoas por dia, então a mostra foi visitadíssima. As pessoas entendiam a Amazônia como um mundo selvagem e gostavam de ver as coisas feitas com partes de animais, os adornos com pele de onça, plumas de pássaros, asas de besouro, etc. 

Você também já atuou em diversos órgãos de defesa do patrimônio histórico e artístico, como o DPH, da Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo, o CONDEPHAAT, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e o IPHAN, onde participa do Conselho Consultivo desde 2013. De modo geral, qual é a importância da concessão desses registros que visam salvaguardar o patrimônio material e imaterial? Como eles podem contribuir para o desenvolvimento das comunidades e para o reconhecimento da identidade cultural brasileira? 
Na minha opinião, a história do nosso patrimônio histórico-artístico é dividida em antes e depois de reconhecermos o patrimônio imaterial. A maior parte da cultura brasileira, da cultura popular brasileira, ou das culturas indígenas e afrobrasileiras, é imaterial. E até termos instrumentos para registrá-la, isso tudo ficava de fato muito subrepresentado nas nossas políticas públicas de preservação e vingava mais um conceito europeu de patrimônio cultural que privilegia o arquitetônico e o monumental. Até hoje a maior parte dos funcionários do Iphan são arquitetos. A arqueologia sempre foi o “primo pobre”, porque trabalha com itens pouco visíveis: não são monumentos ou prédios históricos. É um monte de cacos de cerâmica, de pedrinhas, quando muito uns sambaquis...  Nossa legislação de proteção aos sítios arqueológicos é na verdade muito boa, os bens arqueológicos são protegidos pela lei 3.924 desde 1961. Contudo a preservação na prática é um grande desafio, sobretudo diante da enorme quantidade de sítios arqueológicos hoje conhecidos no país. Além disso, perante as ameaças trazidas pelas grandes obras de infra-estrutura, as políticas de arqueologia preventiva e de salvamento enfrentam grandes dificuldades. Na Amazônia áreas arqueológicas muito importantes, como o Rio Tapajós, que é o berço da cultura arqueológica tapajônica, ou o baixo Xingu, serão completamente comprometidas para futuras pesquisas pelas obras hidroelétricas. Sem falarmos de como isto está afetando as populações ribeirinhas e tradicionais em geral.
Agora, do ponto de vista da cultura imaterial, as experiências são interessantíssimas. E, sobretudo, o que eu tenho aprendido fazendo parte do Conselho Consultivo do Iphan é que por trás de cada registro efetuado, existem coletivos e grupos muito organizados que batalham por essas salvaguardas, e que para eles o trabalho que a gente faz no Iphan tem um valor imenso. Estes bens são inventariados, pesquisados, documentados e finalmente quando se chega ao registro formal, estes grupos vêm a Brasília, para comemorar e celebrar. Aí percebe-se o trabalho, a história de luta que tem por trás desta ação para manter uma tradição que para eles é muito importante, seja uma dança tradicional, um modo de fazer uma comida, um lugar sagrado, enfim, são histórias de comunidades inteiras que estão em jogo. Percebe-se como aquele bem ali reconhecido é importante para afirmar a identidade das comunidades. 
Assim, acredito que esse tipo de trabalho siga uma linha muito acertada, mas que tem muito ainda por ser feito e ajustado à medida que novos questionamentos surgem. E, por ser imaterial também, é complicado, porque tem essa possibilidade de engessar uma coisa que é muito dinâmica. Mas existem alguns mecanismos para se evitar esta cristalização. Já faz dez anos que foram registrados os primeiros bens imateriais e agora, depois desse período, começaram as pesquisas para um novo registro. Os pesquisadores voltam a campo, veem como é que está sendo praticado aquele conhecimento e como é que ele está sendo salvaguardado, além de verificar se ele mudou ou não. Esse processo está acontecendo agora com a arte gráfica dos Wajãpi. E vai ser bem interessante ver o que aconteceu, porque eu sempre tenho isso como exemplo muito positivo de bem imaterial indígena, dado que o processo de registro teve um protagonismo dos índios muito positivo: eles se organizaram, fizeram a pesquisa, produziram um dossiê, mandaram para a UNESCO e conseguiram o reconhecimento. E isso movimenta recursos também. Eles acabam ganhando recursos da UNESCO para continuar a pesquisa de outros bens imateriais deles, não só o grafismo. E isso faz com que os jovens vão aos velhos fazer descobrir coisas do passado, investigando suas tradições. Assim, isso mobiliza muita gente e muitos recursos. 
Portanto, o registro dos bens imateriais não é só o registro. É muito mais. E isso eu acho muito positivo.

Quando um bem material é tombado, algumas medidas são tomadas para impedir que ele seja destruído ou modificado. Entretanto, o tombamento de um bem imaterial segue outros parâmetros. Se compreendermos os bens imateriais como algo dinâmico, que se transforma com o tempo, é importante que o registro garanta certa fluidez. Sendo assim, na sua opinião, há o risco do registro/tombamento impedir que o saber tenha essa flexibilidade?
Como estes registros ainda são muito recentes (completaram 10 anos agora), acredito que ainda estamos aprendendo sobre isso. É lógico que toda a receita de bolo, uma vez que você escreve, ela fica mais pobre, porque aquela criatividade espontânea de “ah, eu ponho mais uma pitadinha disso” ou “ah, o de hoje acho que vou fazer com sabor de baunilha” fica mesmo engessada.
No caso das culturas indígenas, mais ainda, porque são culturas de tradição oral. Não está escrito no papel e nunca esteve. Mas agora vai estar. E isso é bom, porque, de certa maneira, cria uma referência para os jovens. E eu acredito que os profissionais envolvidos, tanto do Iphan quanto os antropólogos que ajudam nas investigações, estão muito atentos para não usar esses registros escritos de uma forma engessada, permitindo assim que, enfim, a cultura continue sendo dinâmica e criativa.
Agora, uma coisa que ajuda é que as sociedades indígenas são muito tradicionais. Por serem sociedades de tradição oral, elas têm que repetir muitas vezes aquelas expressões em inúmeros rituais, porque é uma maneira de transmitir e reatualizar as tradições. A antropóloga Lux Vidal escreveu sobre isso em uma revista do Iphan, ou seja, de como se dá a criatividade dentro de sociedades indígenas que são muito tradicionais, ocorrendo basicamente duas situações: quando você é um indivíduo ou um artesão que faz uma coisa diferente e aquilo é aceito, pega e vira moda; ou quando justamente você tem ameaças externas e, aí, precisa reagir e começar a fazer coisas diferentes. Então, todos esses fenômenos são interessantes. Podemos, inclusive, até ver esses registros como uma ação externa que pode provocar mudanças em uma ou outra direção. Porém, acho que ainda estamos aprendendo sobre isso. Temos que pesquisar melhor estas questões. 

Nos últimos anos você tem se dedicado ao estudo da relação entre os estilos das cerâmicas e as identidades culturais. Inclusive, na exposição Cerâmicas do Brasil - edição 2015, você auxiliou a curadora Adélia Borges nas investigações sobre cerâmica indígena. Como você avaliaria, de modo geral, a produção da cerâmica indígena no Brasil? Quais são as principais características observadas? E quais foram as principais mudanças constatadas ao longo do tempo, no que se refere aos usos e as técnicas?
As cerâmicas são muito interessantes. Eu as estudo desde meu primeiro ano de faculdade quando estagiei no Setor de Etnologia do Museu Paulista. Minha atribuição era ajudar na recatalogação de uma coleção de cerâmicas xinguanas (Wauja) e logo percebi o enorme potencial destes objetos como documentos, testemunhos de histórias particulares. Eu acho que as cerâmicas são objetos resistentes, no sentido de que você não consegue eliminá-las tão facilmente do seio de uma cultura. Entretanto, teria mil motivos, não é? Alguns grupos indígenas chegaram a abandonar a tradição de fazer a cerâmica em função da entrada das panelas de ferro, de aço e de alumínio. Mas temos alguns grupos que mantiveram, como, por exemplo, os Asurini, os Wauja e os Surui, todos de tradições muito distintas.
Na verdade, acredito que esses objetos acabaram sobrevivendo e sendo resistentes porque eles são muito mais do que objetos. A função deles não é de ser meros vasilhames. E até pela maneira como eles são feitos, vemos que eles são bastante ritualizados. Então, a cerâmica é muito interessante porque ela serve de instrumento para processar e preparar alimento, ela é recipiente para servir comida e bebida, serve para guardar e estocar coisas, para transmitir mensagens através dos grafismos e dos desenhos, pode replicar seres através de esculturas, ela pode ser reaproveitada quando quebrada de várias maneiras, e etc. Sem falar da enorme plasticidade que ela possibilita em termos de formas, texturas, qualidades isolantes e condutoras, qualidades sonoras e outras mais. Então, além de ser um objeto resistente, em termos de tradição cultural, é também um objeto de múltiplos significados, entrando em vários momentos da vida do cotidiano e do ritual. 
E nas tradições cerâmicas indígenas, apesar de se usar uma tecnologia muito simples na sua confecção, ela é feita por roletes, sem usar torno, sendo quase toda ela queimada em fornos a céu aberto (portanto, não atingindo uma temperatura muito alta), assim mesmo, elas são trabalhadas com uma maestria técnica incrível. As ceramistas conseguem fazer vasos de espessuras muito finas, mas com pastas muito resistentes. E depois que aquele objeto está queimado, é muito difícil de quebrar, de fraturar. Também encontramos técnicas muito sofisticadas de decoração, como nos Asurini, que fazem grafismos absolutamente complexos, e que depois ainda passam uma resina para a peça ficar com aquele aspecto vitrificado, brilhante. E são todas tradições bem diferentes, quando comparamos.
E o que eu estudo na arqueologia é um pouco a origem e a história dessas tradições. Tentamos entender as grandes matrizes ancestrais desses sistemas tecnológicos de cerâmica. Passei uma boa parte da minha carreira como arqueóloga trabalhando pelo Brasil central, na região de Tocantins e Mato Grosso, onde as cerâmicas arqueológicas não são decoradas - e são poucas, relativamente. Desse modo, quando cheguei na Amazônia, fiquei impressionada, pois o primeiro sítio arqueológico que vi estava repleto de cacos cerâmicos. Você mal conseguia andar sem pisar em um caco. Aí pensei, “essa cerâmica aqui tem um significado especial.” E, de fato, eles usavam cerâmica para construir aqueles tesos, aterros. Eles usavam cerâmica para melhorar o solo para plantar. Além disso, eles faziam muito mais cerâmica do que precisavam. E aí comecei a desenvolver uma pesquisa para entender qual eram os significados das cerâmicas para aqueles povos indígenas que as fabricaram. 
Os arqueólogos usam muito os aspectos físicos das cerâmicas, as formas das vasilhas, as decorações, enfim os diferentes estilos, para classificá-las como testemunhos de diferentes culturas. Mas às vezes esquecemos que além de serem um documento para nós arqueólogos, elas também eram documentos repletos de significados para as próprias populações indígenas. É esta relação com a cerâmica que eu tento recuperar. Eles faziam daquele jeito porque era um objeto feito para ser usado de uma certa maneira, ser visto em determinadas circunstâncias, enfim responder a uma certa performance pensada para o objeto. E que, por exemplo, se uma nova aldeia era construída em área anteriormente habitada por outro grupo, eles reconheciam a identidade do grupo pela cerâmica encontrada no local. 
Portanto, procuro recuperar e explicar essa diversidade de tecnologias e de aspectos das cerâmicas indígenas do passado, também a partir do que é possível observar na cerâmica indígena atual. Eu acho isso um tema fascinante e acho que vou passar o resto da minha vida estudando isso. E uma coisa que me intriga muito é, justamente, apesar de termos essas grandes tradições e essas matrizes ancestrais, existe um fluxo estilístico entre essas tradições muito interessantes. 
Um caso bem interessante, por exemplo, talvez seja o dos Kadiwéu, aquele grupo estudado pelo Lévi-Strauss, que tinha uma pintura ou tatuagem corporal bem complexa. Depois, o Darcy Ribeiro também estudou e compilou esses motivos gráficos. Enfim, vários antropólogos fizeram isso e são os grafismos que eles reproduzem também nas suas cerâmicas. As cerâmicas etnográficas Kadiwéu mais antigas, as primeiras de que temos notícia, são de 1789, coletadas pelo Alexandre Rodrigues Ferreira. Eles, além de fazerem a cerâmica e pintarem esses motivos gráficos, faziam uma divisão entre as cores utilizando um cordão. Nas bordas, eles costuravam contas de madrepérola, de concha. Então, você via que tinha um investimento ali enorme. Os Kadiwéu ainda fazem cerâmica. Hoje em dia eles usam pigmento industrial, não usam mais o cordãozinho para delimitar os campos decorativos, além de não costurar mais as conchas, que no início foram substituídas por miçangas de plástico e depois foram abandonadas. Atualmente, eles fazem peças para vender como artesanato, com forma e cores diferentes, mas os motivos gráficos continuam exatamente os mesmos.
Então, para mim, interessa saber um pouco o que é essa gramática. O que é realmente importante no objeto para manter a identidade deles. Isso é o que eu estou estudando agora com várias cerâmicas amazônicas. E eu acho que é um campo muito frutífero para discutirmos essa relação entre objeto e identidade. 

É através do objeto que essa identidade se reproduz, não?
Sim. Agora, o que no objeto é que representa a identidade? É todo ele, é a maneira de fazer, a maneira de usar, é o grafismo, é a concha? Enfim, como é que entendemos essa gramática do objeto em relação à identidade desses povos? Temos ainda muito a aprender com isso. Eu até brinco que os designers passam a vida fazendo o projeto para chegar a um objeto ideal. Nós arqueólogos fazemos o contrário: temos o objeto “ideal” e queremos recuperar o projeto.
Por fim, acho que tem um diálogo muito interessante que pode ser feito entre o design e arqueologia. Na verdade, temos que entender a performance do objeto, compreender o que vai além da funcionalidade e do apelo estético. Então, fazemos tudo aquilo que os designers também fazem e tenho conversado com alguns deles. Talvez, a maneira mais interessante de entendermos a arte indígena fosse analisá-la como se ela fosse design, e não arte. Enfim, mas essa é uma outra história.

Na sua opinião, quais são as maiores dificuldades enfrentadas pelas comunidades indígenas atualmente?
Como já disse, a situação é muito variada. Mas acho que, atualmente, o grande problema é manter os seus territórios, principalmente nessas áreas da Amazônia que estão sendo impactadas fortemente. E, de uma maneira geral, outro grande problema é o preconceito generalizado na sociedade nacional, de que índio é um ser empobrecido, que não tem as coisas. Eu canso de ir em escola dar palestra no dia do índio. E o que se vê sendo repassado para as crianças é aquela mesma ideia que qualquer criança de cinco anos já tem, que índio vive pelado, índio não tem carro, o índio não tem computador. É só coisa negativa.
E quanto mais baixa a classe social, quanto mais no meio rural, pior é este estereótipo. A ideologia da colonização ainda está muito arraigada neste Brasil profundo, no sentido de que o que é bom é o moderno, é o contemporâneo, é o branco. As pessoas não querem se identificar com essas origens indígenas. Ao invés de tentarmos absorver das sociedades indígenas o que elas têm de melhor, ainda há muito preconceito. 
E no ponto de vista até das políticas públicas do governo, acredito que tem muito preconceito também. As populações indígenas são consideradas um atraso, pois dificultam o agronegócio ocupando áreas férteis, a implantação de infraestrutura, pois moram bem onde se precisa inundar para fazer as hidroelétricas, e são até mesmo uma ameaça à segurança nacional quando estão em área de fronteira. É uma visão desenvolvimentista atrasada, da década de 1960. 
As políticas públicas de hoje, dos últimos anos, principalmente no governo Dilma, tem sido muito ruim para as populações indígenas. Foi o governo que menos reconheceu terras indígenas e que mais avançou nessa política de não consultar as populações para invadir os seus territórios com esses projetos de desenvolvimento. O PAC, por exemplo, atuou consideravelmente nesse sentido. Isso tem criado muitos conflitos. E, lógico, os índios sempre saem perdendo nesses conflitos.
Apesar da legislação exigente em relação aos licenciamentos para os empreendimentos, o que vemos é que as empreiteiras já desenvolveram estratégias sofisticadas para chegar nessas comunidades indígenas e dividi-las, atrair os mais jovens e conseguir autorização deles contra as vozes mais tradicionais. Existem muitas maneiras de se passar por cima de tudo o que é de direito, garantido na Constituição.  
Tenho certeza de que quando você garante a territorialidade e o direito de fato do índio ser índio, essa cultura material vai florescer de uma maneira incrível. Isso ainda está por vir, acredito.

Nessa questão de política pública, você acredita que muito dos problemas que os indígenas sofrem com tem relação com uma sub-representação nas esferas de representação política? Porque, vemos que a bancada ruralista ou outros segmentos que defendem uma visão mais desenvolvimentista possuem uma representação muito forte no Congresso nacional, por exemplo.
Com certeza. São muito poucos os parlamentares que defendem as causas indígenas. Esse novo Congresso que foi eleito é um dos piores nesse sentido. E é lógico que existem interesses econômicos fortíssimos por trás disso. Estamos vendo hoje a quantidade de milhões que essas empreiteiras gastaram só com propina. Imagina o que elas não lucram. 
E a comunidade indígena não vale todos esses milhões na cabeça de um parlamentar. Quer dizer, isso é uma prática política e econômica que já está contaminada no congresso. Infelizmente, são poucos os parlamentarem que defendem as causas indígenas hoje; e os índios, na verdade, têm muito poucos instrumentos de representação. A Funai que deveria ser um órgão forte, defensor dos direitos indígenas, é muito controlado pelo Ministério da Justiça. E agora estão até propondo que a tutela dos índios saia da Funai e vá direto para o Ministério da Justiça.
Há um descaso, há um descuido proposital com as populações indígenas. O que é uma pena, porque a gente está naquele turning point em que poderíamos ainda nos tornar uma nação diferente dos Estados Unidos, que acabou com seus índios, dizimando-os ou inserindo-os à força no sistema capitalista. No Brasil, não seria tanto esforço assim achar um modo de convivência com as populações indígenas que garantissem sua identidade e autonomia. Mas os interesses econômicos falam mais alto do que a moral.  

Existe algum país no mundo, na sua opinião, que tenha trabalhado essa questão indígena de forma mais respeitosa que o Brasil?
Olha, a Bolívia é um país muito interessante. Primeiro, por ser o país com a maior proporção de população indígena da América Latina. E, segundo, por eles trabalharam isso justamente do ponto de vista jurídico e constitucional. Hoje, a Bolívia é um estado plurinacional com territórios indígenas que têm a sua própria Constituição e representação no Estado Nacional, embasados justamente no conceito de autonomia. Acho que temos muito a aprender com a Bolívia. Muita coisa ainda é discurso, não está funcionando na prática. Mas eles estão milhões de anos-luz mais avançados em reconhecer os direitos indígenas e deixar os indígenas se organizarem da maneira como eles acham melhor do que o Brasil.