Desde a penúltima década do século XIX, quando teve início o colecionamento etnográfico no Alto Xingu, a cerâmica wauja tem sido a classe de artefatos mais coletada. Desde as duas últimas décadas, somam-se a essa antiga “diáspora” de objetos milhares de “panelinhas” que os Wauja [2] produzem especialmente para as lojas de artesanato indígena. Contudo, o que se sabe sobre a cerâmica wauja não corresponde à sua impressionante dispersão pelo mundo. Esse enorme volume de artefatos cerâmicos é bastante variado dos pontos de vista formal, estético e das economias simbólicas em que eles se inscrevem. O objetivo desse artigo é oferecer alguns subsídios etnográficos para compreender essa heterogeneidade.
Diferentes aspectos da cerâmica wauja foram descritos por Lima (1950), Schultz (1972), Coelho (1981), Hartmann (1986), Myakaki (1978), Heckenberger (1996) e Barcelos Neto (2000) [3]. Nenhuma dessas contribuições e nem mesmo o conjunto delas são exaustivos. Aliás, a cerâmica wauja é um objeto de estudo que dificilmente chegará a exaustão. Nesse sentido, é importante mencionar que a profundidade temporal de 1000 anos da cerâmica arawak no Alto Xingu (Heckenberger, 1996 e 2001) é um desafio apenas preliminarmente enfrentado. Ademais, deve-se considerar a complexa circunscrição da cerâmica em temas cosmológicos, sociopolíticos e estéticos (Barcelos Neto, 2004a, 2004b, 2004c).
Concentrei o escopo deste artigo em aspectos técno-formais. Todavia, apesar da técnica de modelagem ser uma só, os resultados finais têm significativas variações. Isso se deve às habilidades desenvolvidas por cada ceramista. Alguns deles esforçam-se durante vários anos seguidos para aperfeiçoar sua técnica. Do ponto de vista wauja, são as diferenças no resultado fabril que interessam, pois elas implicam na durabilidade da peça e no seu uso como pagamento ritual ― peças de má qualidade não podem ter esse destino.
Alguns aspectos sociais da produção cerâmica
A arte oleira wauja corresponde a mais elaborada classe de artefatos do sistema de objetos do Alto Xingu. Seus tipos variam desde minúsculas panelinhas que cabem na palma de uma mão até enormes panelas de 115 cm de diâmetro. Quando destinadas aos rituais, as panelas são recobertas com pinturas cuidadosas e refinadas que afirmam a eficácia estética que esses objetos devem ter em tais contextos. A cerâmica wauja é suporte pedagógico durante a reclusão pubertária das meninas, de brincadeiras infantis, de tradução de imagens oníricas dos xamãs, de prestígios político e econômico, somados ao seu caráter de “objeto de luxo”, e de afirmação identitária na trama xinguana e extra-xinguana.
A tradicional reunião diária que os homens fazem em frente à “casa das flautas” (kuwakuho), ao anoitecer, é um evento excepcional para o etnólogo tentar entender os fatos do dia e saber o que poderá ocorrer nos dias seguintes. Vários assuntos entram em pauta, mas nem todos indivíduos participam diretamente ou opinam nas conversas. Com certa freqüência participei dessas reuniões. Num dia em particular, no início da minha temporada de campo de 1998, o chefe Atamai transmitiu recados recebidos pelo rádio: encomendas de panelas feitas pelos Kamayurá e por outras aldeias do norte do Parque Indígena do Xingu, avisos de que alguns Yawalapíti e Mehinako visitariam a aldeia para buscar panelas anteriormente encomendadas e a cobrança de uma panela nukãi por um senhor Kuikuro, que a esperava ansiosamente, pois sua nukãi de cozinhar o caldo venenoso da mandioca tinha se quebrado, semanas antes. Os Wauja ficaram por alguns minutos comentando sobre os recados e discutindo sobre o despacho das encomendas. Nessa mesma reunião, perguntei a um dos meus informantes qual o nível de importância das panelas para os Wauja. Sem pensar muito ele respondeu: “panela é nossa vida”. No dia seguinte, abordei o assunto das encomendas de panelas com o meu anfitrião, o chefe Atamai, rapidamente ele começou a falar dos ceramistas que ele julgava mais competentes e da importância das panelas: “panela é escola mesmo. Panela é escola do Waurá”.
Para os Wauja, a “panela” é um tipo de “escola” estratégica no complexo jogo das identidades “étnicas” no Xingu e no panorama do contato com a sociedade nacional. As panelas são uma metáfora da identidade Wauja. O aprendizado da modelagem ensina os Wauja a serem Wauja. Esse discurso pode ser depreendido em vários contextos, seja quando os Wauja oferecem exegeses míticas ou quando valorizam suas exímias habilidades como ceramistas.
Conta esse povo de língua arawak que, há muito tempo, todos os tipos de artefatos cerâmicos chegaram navegando e cantando sobre o dorso de uma grande cobra-canoa chamada Kamalu Hai [4]. Nessa ocasião, a cobra ofereceu-lhes a visão primordial desses artefatos, o que conseqüentemente lhes conferiu o conhecimento exclusivo sobre a arte oleira da cobra-canoa. Além disso, antes de ir embora para o oceano, Kamalu Hai defecou enormes depósitos de argila ao longo do médio e baixo rio Batovi, para que os Wauja pudessem fazer sua própria cerâmica. Os Wauja afirmam que a Kamalu Hai apareceu apenas para eles, por isso nenhum outro povo do Alto Xingu sabe fazer cerâmica [5].
Na aldeia Wauja, toda casa tem um ou mais ceramistas. Aproximadamente 60% da população adulta fabrica ou têm, pelo menos, conhecimento dos processos técnicos de fabricação da cerâmica e de sua pintura. Nalgumas casas, há até cinco ceramistas ativos. Ao fazer o levantamento de cada unidade residencial de produção cerâmica, notei que os ceramistas considerados, pelos Wauja, os mais competentes e mais produtivos concentravam-se nas mesmas unidades residenciais ou tinham laços de parentesco consangüíneo. A investigação das genealogias dos ceramistas aponta para o fato de que nesse grupo arawak a transmissão dos conhecimentos artísticos mais sofisticados tendem a associar-se às altas “linhagens” de chefia. Desse modo, a “escola da panela” tende a acompanhar as hierarquias internas wauja.
Mesmo tendo muitos ceramistas na aldeia Wauja, apenas alguns são, de fato, considerados exímios. Os melhores em atividade agrupam-se respectivamente em dois núcleos de parentelas consangüíneas.
O aprendizado da cerâmica começa na reclusão pubertária, que funciona como a primeira “escola da panela”. Noto que essa “escola” só é operativa dentro do grupo de substância do aprendiz, pois ninguém sai do seu grupo de substância para ficar recluso em outro grupo. A transmissão de conhecimentos artísticos específicos nesse período da vida de uma pessoa restringe-se às relações de natureza consangüínea mais imediata, e isso não é válido apenas para a cerâmica: os poucos aprendizes de músicas de flautas Kawoká também são da parentela consangüínea do seu professor. Entre os Wauja, nenhum tipo de conhecimento artístico é difundido indistintamente, ele tende a ser reproduzido dentro do mesmo grupo de substância ou no máximo dentro da mesma parentela consangüínea do seu conhecedor. Desse modo, é de se esperar concentrações de indivíduos talentosos, ou incompetentes também, de acordo com esta “segmentação” do conhecimento. No entanto, isso não garante que todos os aprendizes de um determinado grupo conservarão o conhecimento e a destreza em certas artes.
Existem os ceramistas que modelam bem, mas que desenham relativamente mal, os que modelam e desenham bem, e os que são incompetentes em ambas as técnicas. No entanto, há alguns homens que desenham bem, mas que não sabem modelar. Aparentemente, seria impreciso afirmar que a modelagem é uma arte “mais” feminina e o desenho ornamental “mais” masculino, visto que ambos os gêneros dominam tanto uma técnica quanto a outra. Contudo, num panorama mais amplo da cultura material, o desenho ornamental é mais masculino na medida em que os homens produzem uma diversidade muito maior de artefatos ornamentados, além de terem uma pintura corporal mais complexa que a feminina. Há uma lista extensa de artefatos de cultura material que apenas os homens sabem (ou podem) fazer: a composição de desenhos ornamentais no trançado é, por exemplo, uma arte exclusivamente de conhecimento masculino.
Etnoclassificação
Os artefatos cerâmicos wauja extrapolam uma classificação enquanto equipamento meramente doméstico. Muito do que é produzido atualmente destina-se ao mercado de artesanato indígena, em especial as panelas zoomorfas. Há também uma panela (yanapo) usada exclusivamente no ritual de iniciação masculina (Pohoká) e vários artefatos feitos com interesses puramente estéticos ou lúdicos. Imagens oníricas dos xamãs podem, por exemplo, orientar a forma de uma panela, a qual muitas vezes não integrará o equipamento doméstico de nenhuma casa, trata-se nada mais do que um objeto de deleite. A “panela-arara” (kajujutokana, figura 1) e a “imagem do veado-monstro” (kautá-kumã opotalapitsi) são exemplares da tradução plástica para a cerâmica de sonhos do xamã visionário-divinatório (yakapá) Itsautaku [6].
Além das propriedades utilitárias e formais que informam o sistema de classificação da cerâmica, agregam-se aquelas de caráter cosmológico. Uma abordagem mais detalhada da relação entre a cosmologia e o sistema visual já foi realizada alhures (Barcelos Neto, 2002 e 2004a: cap. 5). A mitologia wauja aponta uma relação curiosa entre as propriedades formais e sonoro-musicais dos objetos cerâmicos, a qual merece aqui algumas considerações.
Conta um mito que todos os tipos de artefatos cerâmicos chegaram originalmente navegando sobre o dorso de uma grande cobra chamada Kamalu Hai. As panelas [7] chegaram cantando o nome de Kamalu Hai numa escala de tons agudos e graves, sendo os primeiros cantados pelas panelas menores e os segundos pelas maiores. A chegada mítica das panelas dá-se como uma dramatização musical da sua natureza físico-formal, a escala tonal correspondendo à sua escala dimensional, a qual por sua vez está ligada às propriedades utilitárias de cada panela. Porém, é importante mencionar que a ligação entre essas escalas não é feita de uma maneira taxonômica.
O som próprio de cada panela é percebido com leves batidas em seu fundo externo, a ressonância permite ao Wauja examinar a boa ou má consistência da manufatura. Além disso, procede-se a verificação ocular e tátil do polimento e de possíveis fissuras ocorridas durante o cozimento da panela. O canto mítico das panelas é um índice de sua forma. Na atualidade, esse canto é transformado num modo êmico de perceber a qualidade dos objetos cerâmicos, portanto não devendo ser confundido como um modo classificatório dos mesmos.
As listas abaixo obedecem aos critérios nativos que classificam a cerâmica por classe e dentro de cada classe por tamanho decrescente. Existem 5 classes (kamalupo, makula, héjé, tsaktsak e panelas “zoomorfas”) e outros 5 tipos de artefatos cerâmicos isolados, ou seja, não agrupáveis em nenhuma das classes acima.
1. Kamalupo
Kamalupo (figuras 2 e 8) é a classe de panelas de borda extrovertida e arredondada geralmente empregada no processamento da mandioca. As grandes dimensões do fundo externo das kamalupo (algumas chegam a 115 cm de diâmetro na base, como a kamalupo weke) permite a elaboração de composições gráficas complexas com motivos variados, algo raro de ser encontrado em panelas com diâmetro externo inferior a 50 cm. A altura média das kamalupo varia entre 35 e 55 cm.
Nome da panela Usos Dimensões médias da base em diâmetro
1.1 Kamalupo weke Cozinhar caldo venenoso da mandioca, armazenar polvilho, farinha e água Entre 90 e 115 cm
1.2 Kamalupo ahãpupuku (ou majatãpo) Cozinhar caldo venenoso da mandioca, armazenar polvilho, farinha e água, espremer e lavar a massa da mandioca. Entre 80 e 95 cm
1.3 Nukãi Ralar mandioca, cozinhar caldo venenoso da mandioca, pequi e sementes de urucum Entre 65 e 80 cm
1.4 Kamalupo mayayapo Cozinhar caldo venenoso da mandioca Espremer e lavar a massa da mandioca Entre 65 e 80 cm
1.5 Kamalupo tapapuku Cozinhar caldo venenoso da mandioca Espremer e lavar a massa da mandioca Entre 65 e 80 cm
1.6 Kamalupo kurisepun Cozinhar caldo venenoso da mandioca Entre 65 e 80 cm
1.7 Misapo Espremer e lavar a massa da mandioca Entre 60 e 70 cm
1.8 Witsopo Ralar mandioca Entre 60 e 70 cm
1.9 Heitein Carregar água Entre 50 e 70 cm
1.10 Nunukatsãi Armazenar e servir mingau Entre 50 e 60 cm
1.11 Nunukatsãitãi Armazenar e servir mingau Entre 30 e 50 cm
2. Makula
Makula (figura 3) é a classe de panelas de borda extrovertida e achatada de uso diverso. Algumas são tão grandes quanto as kamalupo, com o detalhe de que podem ter maior altura e/ou menor espessura das paredes e bordas. A altura média das kamalupo varia entre 20 e 40 cm.
Nome da panela Usos Dimensões médias da base em diâmetro
2.1 Makula weke Cozinhar grandes quantidades de peixe, sementes de urucum e pequi, espremer e lavar a massa da mandioca, cozinhar caldo venenoso da mandioca na falta de uma nukãi. Entre 75 e 85 cm
2.2 Makula tapapuku Cozinhar peixe Entre 70 e 75 cm
2.2 Makula tapapukutãi Cozinhar peixe Entre 65 e 70 cm
2.3 Makula Cozinhar peixe, torrar farina Entre 45 e 65 cm
2.4 Makulatãi Panela pequena usada para comer peixe individualmente, normalmente pertence a homens adultos casados Entre 20 e 45 cm
2.5 Makulatãitsãi Panela muito pequena usada para comer peixe individualmente, normalmente pertence à crianças e pré-adolescentes Entre 10 e 20 cm
3. Héjé
Héjé (figura 4) é a classe de artefatos cerâmicos correspondente ao torrador de beiju, um dos poucos objetos do equipamento doméstico que continua insubstituível pela tecnologia de artefatos de metal.
Nome do artefato Usos Dimensões médias da base em diâmetro
3.1 Héjé weke Torrar beijus muito grandes, em geral aqueles servidos durante as festas inter-aldeãs Entre 90 e 105 cm
3.2 Héjé ahãponapuku Torrar beijus grandes Entre 80 e 90 cm
3.3 Héjé ahãponapukutãi Torrar beijus para unidades familiares de 10 a 12 pessoas Entre 65 e 80 cm
3.4 Héjé ahãkapuku Torrar beijus para unidades familiares de 7 a 9 pessoas Entre 45 e 65 cm
3.5 Héjétãi Torrar beijus pequenos Entre 35 e 45 cm
4. Tsaktsak
As panelas tsaktask são bastante conhecidas por terem no interior bolinhas de cerâmica que as tornam semelhantes a um chocalho. Atualmente perderam a função, tendo sido largamente substituídas por caldeirões de alumínio.
Nome da panela Usos Dimensões médias da base em diâmetro
4.1 Tsaktsak weke Servir mingau de pequi e mandioca Entre 45 e 50 cm
4.2 Tsaktsak Servir mingau de pequi e mandioca Entre 25 e 45 cm
4.3 Tsaktsaktãi Destinada ao mercado de artesanato indígena Entre 15 e 25 cm
4.4 Tsaktsaktãitsãi Destinada ao mercado de artesanato indígena Entre 5 e 15 cm
5. Panelas zoomorfas
Esta é a classe de artefatos cerâmicos que apresenta a maior diversidade de formas. Nas panelas zoomorfas são representados um número muito extenso de animais (figuras 1 e 5), inclusive aqueles conhecidos após o contato com os brancos, como cachorros, gatos, galinhas, vacas e animais nativos de outros continentes que os índios conhecem em zoológicos. A modelagem desses animais “estrangeiros” não é freqüente. Os animais dos ecossistemas xinguanos são os preferidos para modelagem. Em 1998 e 2000, identifiquei a representação de 47 espécies de animais nativos na cerâmica, conforme a lista da tabela abaixo.
Espécies de animais representadas na cerâmica
Wauja Português Latim
Awajatualu Urubu Coragyps atratus foetens
Aluwa Morcego Chiroptera spp.
Atapoja Vespa Espécie não identificada
Autu Queixada Tayassu pecari pecari
Awaulu Raposa Dusicyom velutus
Eyusi Rã Pipa pipa
Ewejo Ariranha Pteronura brasiliensis
Ikixuno Abelha Apis mellifera
Ixeho Capivara Hydrochoerus hydrochaeris
Iyumu Mutum Crax fasciolata
Kãkãya Gaivota Larus maculipennis
Kajujuto Arara Anodorhynchus sp.
Kajutukalu Sapo-cururu Bufo marinus
Kyakya Coruja Bubu virginianus nacurutu
Kujupoja Gavião-real Harpya harpya
Kulukulusi “pássaro grande, parece urubu, come minhoca” Espécie não identificada
Kumesi Beija-flor Trochilidae sp.
Kupá Carrapato Gênero Amblyomma
Malula Tatu-canastra Priodontes giganteus
Mẽi “Formigão” Espécie não identificada
Mepelesi Sanguessuga Hirudrus medicinalis
Outala Onça parda Felis pardalis
Paho Macaco-prego Cebus apella
Puixa Matrinchã Characidae sp.
Sakalu Papagaio Amazona aestiva
Talapi Peixe-pato Espécie não identificada
Talau “Pássaro parecido com tapa-tapa” Espécie não identificada
Teme Anta Tapirus terrestris
Teme okupala “Carrapato de anta” ou “carrapato estrela” Gênero Amblyomma
Tikau “Parece rã” Espécie não identificada
Tulupi Peixe pintado Pseudoplatystoma corruscans
Tupatu Peixe Espécie não identificada
Ulako Peixe-elétrico Electrophorus electricus
Ulupu-kumã Urubu-rei Sarcorramphus papa
Yaká Jacaré Caiman crocodilus
Yalatu Caranguejo Trichodactylus fluviatilis
Yanumaka kapala Onça pintada Panthera onca
Yanumaka yalaki Onça pintada negra Panthera onca
Yapu Arraia Elipisurus strongylopterus
Yasĩyulá “Parece pato, só que mergulha” Espécie não identificada
Yuluma Piranha Pygocentrus sp.
Yuma Pirarara Phractocephalus sp.
Yutá Veado campeiro Ozotocerus bezoarticus
Wajã pássaro Espécie não identificada
Wapi peixe cachorra Raphiodon sp.
Wejeje “parece rã, mas é menor” Espécie não identificada
Weu Escaravelho Espécie não identificada
As dimensões das panelas zoomorfas variam enormemente: há algumas que cabem na palma de uma mão (figura 6) e outras tão grandes que servem para cozinhar um peixe-cachorra inteiro, como a itsakana [8](panela-canoa). No conjunto de panelas que a literatura xinguana denomina “zoomorfa” há três que não são animais: uma delas é a itsakana, que, como o próprio nome diz, é uma panela-canoa, ou seja, um “modelo reduzido” de uma canoa. As duas outras exceções são a iyãukana (panela-gente) e a yerupohokana (outro tipo de panela-gente).
O uso quotidiano das panelas zoomorfas resume-se basicamente em servir alimentos cozidos e guardar pimenta, sal, restos de comida e pequenos objetos, como linhas, agulhas, pinças, miçangas etc. As panelas zoomorfas têm um caráter lúdico inquestionável, que adquire maior saliência entre aquelas destinadas às crianças: elas são panelas-brinquedos. Tais objetos são de uso individual, cercado de muito ciúme. Toda criança tem sua própria panelinha zoomorfa, que normalmente é presenteada logo que ela aprende a comer sozinha. Quando os adolescentes saem da reclusão eles não comem mais em panelinhas, seu peixe é servido sobre um pedaço de beiju, jovens do sexo masculino só voltarão a ter seu peixe servido em panelinhas quando eles se casarem.
6. Outros artefatos cerâmicos
Nome do artefato Características e Usos Dimensões médias
6.1 Mutsukuri Pote com tampa usado para armazenamento de água Entre 35 e 40 cm de diâmetro e 60 e entre 70 cm de altura
6.2 Yanapo Panela usada no ritual iniciação masculina (Pohoká) Entre 20 e 30 cm de diâmetro e entre 20 e 25 cm de altura
6.3 Ulukati Socador de pimenta cilíndrico Entre 12 e 16 cm de comprimento
6.4 Munutai Bases cônicas de apoio para as panelas e torradores de beiju Entre 10 e 16 cm de diâmetro e entre 12 e 22 cm de altura
6.5 Kohojujuto Fragmentos da base das kamalupo e dos torradores quebrados usados na montagem dos “fornos” de casca de árvore para a queima da cerâmica Por serem fragmentos de formas circulares, suas dimensões são muito variadas e irregulares. Em geral, medem entre 50 e 90 cm de comprimento.
Matérias-Primas e Processos Técnicos
A fabricação e pintura da cerâmica entre os Wauja são ofícios que demandam um número pequeno de matérias-primas submetidas à processos técnicos bastante especializados, resultando numa cerâmica de alto padrão técnico.
A argila escura (kamalu yalaki) e o espongiário lacustre akukutai (usado como anti-plástico após um processo de secagem e queima) são as matérias-primas que compõem a pasta de modelagem. A coleta desses dois materiais ocorre no período da baixa máxima dos rios e lagoas, que corresponde aos meses agosto e setembro. O período de maior produção cerâmica é entre os meses de novembro e março, os quais marcam a estação das chuvas. Certas quantidades de argila e anti-plástico podem ficar guardadas por vários meses nas casas, sendo usadas na medida em que se faz necessária a fabricação de uma nova panela, seja por encomenda, ou para substituir alguma peça que por acaso se quebrou.
O processo de fabricação de uma panela passa por oito a dez etapas a depender do artefato que se objetiva fazer. Para a obtenção da argila e do espongiário lacustre akukutai é necessário mergulhar nos pontos do rio e da lagoa onde existem os depósitos. Como os mesmos encontram-se relativamente distantes, é preciso que a carga seja transportada de canoa e carregada até a aldeia em cestos do tipo mayapalu ou em bacias de alumínio.
Para transformar o akukutai em anti-plástico, o mesmo deve secar ao sol por uns cinco dias e depois passar por um processo de queima numa fogueira de gravetos, que o tornará um pó ocre, passando então a ser chamado de akukupe, que é de fato a matéria-prima usada como anti-plástico entre os Wauja. Antes de iniciar a modelagem de uma peça, o ceramista limpará a argila de impurezas, como eventuais gravetos, pedacinhos de madeira e cascas de frutos e moluscos. É importante notar que não há detritos líticos na argila usada pelos Wauja. O trabalho de limpeza é simples e rápido, pois ele não é exaustivo, ademais, durante o processo de modelagem pode-se aprimorar a limpeza.
Um ceramista wauja não limpa antecipadamente toda a argila que ele armazena em sua casa ao longo de uma estação de coleta, mas apenas a quantidade necessária para modelar a peça que ele deseja. Por outro lado, todo o akukutai coletado é logo queimado e o pó resultante (akukupe) é cuidadosamente guardado em fardos protegidos contra umidade. As reservas domésticas de akukupe são tão valiosas quanto às de argila. Os Wauja dizem que a mistura correta de argila e akukupe para obtenção da pasta de modelagem é percebida antes pelo tato do que pela visão. Com a mistura de akukupe, a plasticidade da argila pura (fria por definição) torna-se “quente”, ou seja, adquire a plasticidade ideal para a moldelagem. A adição de akukupe à argila não deve ser excessiva, pois com o passar dos dias a peça modelada poderá ressecar e endurecer muito rapidamente, expondo micro-rachaduras, que comprometerão a integridade da peça. Por outro lado, se a quantidade de akukupe adicionada for inferior ao necessário, a panela não suportará a pressão durante as fases de raspagem e lixamento. A resistência de uma panela ou torrador depende, em grande parte, da dosagem correta de akukupe.
As vasilhas de cerâmica são sempre iniciadas pelo fundo a partir de um pedaço homogêneo de argila temperada que é achatado e esparramado para os lados até se obter o diâmetro e a espessura pretendidos. Pedaços menores de argila são sucessivamente adicionados de baixo para cima até se modelar a lateral, que é executada com movimentos sinuosos e sincronizados que configuram a lateral tradicionalmente ondulada (figura 7). Em seguida, modela-se uma borda extrovertida, arredondada ou achatada a depender do tipo de panela que o ceramista resolveu modelar. Caso ele esteja modelando uma panela zoomorfa, os apliques que caracterizarão o animal poderão ser adicionados posteriormente, mas se a panela zoomorfa for muito pequena, ou se está sendo feita sem requintes, o ceramista modelará de uma só vez a panelinha, puxando das bordas as formas zoomorfas que ele escolher.
Terminada a modelagem, a peça vai para o sol. Dependendo do seu tamanho, ela poderá ficar vários dias secando, e se o ceramista não tiver pressa de terminar a peça, a mesma poderá permanecer por algumas semanas num canto da casa ou do rancho oleiro. Entre abril e maio de 1998, durante minhas freqüentes visitas a uma das principais unidades domésticas de produção de cerâmica, eu sempre via uma kamalupo weke recém saída da secagem, que nunca tinha sua conclusão avançada. Quando deixei a aldeia wauja, a peça continuava como eu a tinha visto dois meses antes. Mas quando se tem pressa, uma panela kamalupo weke pode ser totalmente concluída em no mínimo duas semanas de intenso trabalho.
O resultado da modelagem é sempre uma peça grossa, com excesso de pasta, que depois da secagem ao sol passará por pelo menos uma dezena de raspagens e lixamentos até atingir a textura e espessura ideais. Para a raspagem usa-se tradicionalmente as conchas de um molusco bivalve chamada ulu, ou ulutãi (a mesma concha, porém de menor tamanho), a ulu é também usada para descascar mandioca. O uso dessas conchas é hoje restrito, pois desde algumas décadas elas foram substituídas por colheres no processo de raspagem da cerâmica, e por tampas de latas de manteiga no processo de descascar mandioca. As conchas têm menos eficiência técnica nos dois processos devido à necessidade de afiá-las com freqüência, pois dependendo da dureza da superfície a ser raspada o fio de sua lâmina quebra-se em diferentes pontos, chegando às vezes a provocar leves sulcos na superfície da peça. O trabalho de raspagem pode levar horas ou, a depender do tamanho da peça, até uma semana, nesse caso ele pode ser executado por mais de uma pessoa. Todo o excesso de pasta que foi retirado no processo de raspagem é guardado para ser reutilizado. Normalmente, em casas onde a produção é grande, essas raspas de argila ressecada ficam acumuladas em bacias de alumínio ou panelas inacabadas.
O lixamento é o processo seguinte à raspagem. Aqui também a eficiência técnica de outros materiais substituiu quase que totalmente o kausepése, uma folha de textura relativamente fina, que era um dos poucos materiais conhecido como lixa. Atualmente usa-se lixas industriais de várias texturas à base de areia, cola e papel ou lonita. O kausepése é empregado na fase final de lixamento, mas isso só se o ceramista não tiver a mão uma lixa industrial de textura fina. Começa-se sempre pela lixa mais grossa, passando então para lixas com texturas que diminuem gradativamente. Assim como as raspas de argila, o pó que resulta desse trabalho é guardado para reaproveitamento.
O último processo antes da queima consiste em alisar a peça com uma pedrinha redonda (figura 8), que é constantemente molhada com o sumo de uma casca de árvore chamada yapita. A qualidade final das peças depende muito dos processos de lixamento e alisamento. O torrador de beiju, por exemplo, não pode ter a superfície interna rugosa, pois o beiju poderá grudar, deitando fora toda uma laboriosa dedicação culinária. Peças com aspecto rugoso ou com texturas grossas e salientes, além de serem inadequadas ao trabalho doméstico, não correspondem ao padrão estético desejado pelos Wauja.
O cozimento da cerâmica é feito ao ar livre, no interior de uma estrutura cônica, feita de cascas de árvore (ajata, espécie não-identificada) distribuídas uniformemente e recobertas com kohojujuto (pedaços de panelas quebradas). A estrutura de queima varia entre 60 cm e 100 cm de altura. A necessidade do calor atingir de modo mais ou menos homogêneo a totalidade das peças impõe limites às dimensões das estruturas de queima. Assim, o número de peças a ser queimado numa única estrutura sempre corresponde à exigência técnica da distribuição homogênea de calor.
Num única estrutura de queima podem ser acondicionados artefatos cerâmicos de diversos tamanhos. Nesse caso, as kamalupo e makula são colocadas em posição invertida, e em cima, em baixo e/ou em suas laterais distribuem-se as panelinhas zoomorfas. Em uma estrutura de queima feita apenas para panelinhas, as maiores ficam em baixo e a menores em cima. Tais estruturas comportam apenas uma kamalupo ou uma makula por queima.
O cozimento dura de 3 a 4 horas a depender do tamanho do “forno”. No auge da liberação de calor, as peças ficam vermelhas como brasa, atingindo temperaturas superiores a 450 graus centígrados. Lentamente a ajata vai virando cinza e as peças, que antes da queima eram acinzentadas, adquirem um tom ocre muito claro (biscoito). Considera-se que o cozimento terminou apenas quando as peças estão frias, ou seja, em condição para pintura. O cozimento da cerâmica wauja tem apenas uma exceção, que é a da panela tsaktsak. Por ter a parte inferior oca ela não pode ser submetida às altas temperaturas de queima com ajata, pois o fundo estouraria durante o cozimento, a solução técnica para o caso específico da tsaktsak é um cozimento brando e demorado numa fogueira de gravetos.
A última etapa do processo de produção cerâmica é a pintura, que pode ser executada segundo quatro técnicas variáveis de acordo com as tintas empregadas. Uma delas, a yuri, é feita com fuligem e com um aglutinante vegetal extraído da madeira de uma árvore homônima. Para a obtenção da tinta, a madeira de yuri deve ser raspada e macerada com água e fuligem até se obter um líquido espesso, não sendo necessário nenhum cozimento. A tinta pode ser aplicada diretamente sobre as superfícies interna e externa, aliás, tintas pretas, como a yuri são empregadas tanto na decoração externa com motivos gráficos quanto no enegrecimento interno das peças. Em algumas casas, vi ceramistas guardarem o preparado de yuri por várias semanas, e se ele secar basta adicionar água. A tinta yuri proporciona um brilho leve e uma pigmentação intensa a peça, mas tem pouca durabilidade, pois se descasca quando exposta ao sol ou se acondicionada em ambientes muito úmidos. A yuri também é empregada na pintura de artefatos de madeira como remos, máscaras, pás de beiju, desenterradores e raladores de mandioca, e no enegrecimento da fibra wixato (taquarinha), usada para fabricação de cestos cargueiros.
A mãuatã é a outra tinta usada na pintura de motivos gráficos e no enegrecimento do interior das panelas e torradores de beiju. Seu uso, porém, é exclusivo na cerâmica, e emprega uma técnica um pouco mais laboriosa que a anterior. Maũatã é um pigmento vegetal extraído da casca de uma árvore homônima. Depois de macerada a casca e diluída em água, a tinta está pronta. Com um pincel de algodão fino o pintor desenha os motivos sobre a superfície e cobre uniformemente o interior e a borda da peça com mãuatã, que é logo absorvida pela superfície seca e porosa da peça. A pintura apresenta então uma coloração marrom muito clara. Para o escurecimento e a fixação da pintura com mauatã, a peça deve ser submetida a um aquecimento numa pequena fogueira de sapé, só assim a cor negra, característica dos motivos gráficos e do interior das panelas, pode sobressair-se e fixar-se de vez.
O topepe é um pigmento mineral de cor avermelhada encontrado nas lagoas e nos rios da região, sendo empregado cru apenas no exterior das panelas, geralmente visando produzir campos avermelhados para contrastar com campos decorados com motivos gráficos pintados com as técnicas do yuri e do mãuatã . Diferentemente dessas técnicas ele é passado na peça crua, sendo apenas através do cozimento que a cor avermelhada do topepe fixa-se definitivamente, demonstrando ser dentre todos os pigmentos o mais durável. A pintura vermelha com topepe é feita esfregando um pequeno pedaço do mineral umedecido na área escolhida. Por não serem empregados pincéis na pintura com o topepe, a limitação na composição com motivos gráficos tradicionais nesse tipo de técnica é grande, pois sem pincéis é impossível executar os pequenos detalhes característicos dos motivos. Dentre todas os artefatos de cerâmica wauja que pude analisar — isso contando com centenas de peças pertencentes a vários museus (Barcelos Neto, 1999) —, a técnica de pintura com tipépe tem sido empregada na composição dos motivos gráficos yetulaga naku, puku tiwi e uwi onapula (motivo sinuoso também conhecido como kassukupé), além do motivo mohãja-mona, que corresponde aos campos avermelhados num ou noutro pequeno detalhe das panelas zoomorfas. Uma característica importante é que não há sobreposição de técnicas de pintura: sobre o mohãja-mona não se emprega nenhum outro motivo, ou seja, numa superfície pintada com topepe não se pinta com yuri ou mãuatã.
Além do topepe, emprega-se outro pigmento vermelho, o yuku (urucum) que é extraído a partir do cozimento das sementes da árvore bixa orellana. O urucum é usado na pintura, ou melhor, na unção do exterior de peças de médias e pequenas dimensões, em especial as panelas zoomorfas. Nessa técnica, ao invés dos tradicionais pincéis de algodão, empregam-se apenas as palmas da mão untadas de urucum.
Somados à destreza do pintor, os pincéis de algodão são instrumentos de precisão, meios perfeitos para a pintura da cerâmica, tanto que os Wauja desprezam os pincéis industriais, porque os mesmos têm cerdas flexíveis e o cabo rígido o que acaba dificultando ou borrando as peças. Os pincéis de algodão têm cabos levemente flexíveis e pontas macias e firmes, permitindo o mesmo deslizar de modo suave sobre as superfícies porosas das panelas. A espessura do pincel pode ser aumentada ou diminuída a depender da quantidade de algodão enrolado na ponta. O resultado da pintura com pincel de algodão é sempre satisfatório quando a proporção entre a espessura do pincel e os traços do desenho é equilibrada. Esses pincéis de algodão são usados na pintura da grande maioria dos artefatos wauja. Tendo durabilidade efêmera e sendo de fácil confecção, tais pincéis são constantemente substituídos a cada sessão de pintura.
Todos os processos técnicos envolvidos na olaria wauja são também processos estéticos. A beleza dos artefatos alcançada ao fim desses processos não é apenas um índice de sua eficácia técnica, mas também social (Barcelos Neto, 2004a: cap. 6 e 2004c). Nesse sentido, a cerâmica wauja corresponde àquilo que Gell (1992) categorizou por tecnologia do encantamento. Sua capacidade de encantamento é, do ponto de vista da cosmologia wauja, o atributo que confirma a sua posição híbrida entre o mundo dos humanos e o mundo dos seres sobrenaturais.
Notas
1 Quero registrar minha gratidão aos Wauja, em especial a Atamai, Itsautaku, Aulahu, Kamo, Yanahin, Kuratu e Hukai. Meus trabalhos de campo foram financiados pelo Governo do Estado da Bahia e pelo Funpesquisa/UFSC (ano de 1998), pelo Museu Nacional de Etnologia (ano 2000) e pela FAPESP (anos de 2001, 2002, 2004 e 2005). A CAPES e a FAPESP concederam-me bolsas de estudos em diferentes etapas da pesquisa. Agradeço a Lux Vidal, Maria Rosário Borges, Pedro Agostinho, Maria Rosário Carvalho, Michael Heckenberger, Rafael Bastos, Carlos Fausto e Bruna Franchetto os incentivos para o desenvolvimento da minha pesquisa no Alto Xingu.
2 O leitor encontrará na literatura etnológica o termo “Waurá”, que é o etnônimo difundido desde a primeira publicação sobre o Alto Xingu (Steinen, 1886). Optei grafar “Wauja” por este ser o etnônimo auto-atribuído. Os Wauja são um povo de língua arawak que, há mais de um século, habita as proximidades da margem direita do baixo rio Batovi, na região ocidental da bacia dos formadores do rio Xingu, estado do Mato Grosso, Brasil Central. No entanto, a história dos Wauja no Alto Xingu é bem mais antiga, pesquisas arqueológicas recentes apontam a chegada dos seus ancestrais à região por volta do século IX d.C. (Heckenberger, 2001). Desde o século XVIII teve início nessa região a formação de um sistema social multiétnico que integra, além dos Wauja, outros nove grupos de diferentes filiações lingüísticas ¾ Mehinako e Yawalapíti (Arawak); Kuikuro, Kalapalo, Matipu e Nahukwá (Carib); Kamayurá (Tupi-Guarani), Aweti (Tupi) e Trumai (de língua isolada). Os Wauja somam uma população de aproximadamente 360 pessoas, das quais 315 residem em uma aldeia circular com o sistema de praça central e casa das flautas.
3 Nesse artigo, abordei apenas aspectos mito-cosmológicos relativos à cerâmica. Segundo a visão perspectivista/animista que os Wauja possuem da sua cultura material, as panelas ligam-se ontologicamente a seres não-humanos (apapaatai e yerupoho), cuja agência patológica consubstancia-se diretamente na argila e demais matérias-primas usadas na fabricação e pintura da cerâmica. Em Barcelos Neto (2001), o leitor encontrará uma descrição do esquema de classificação dos seres não-humanos a partir das interpretações visuais que os xamãs fazem da mito-cosmologia wauja.
4 Vide texto completo da narrativa mítica em Barcelos Neto (2000 e 2002).
5 Há também ceramistas na aldeia mehinako, porém, os Wauja afirmam que se tratam de pessoas de ascendência wauja e que, além disso, os poucos Mehinako que sabem fazer cerâmica teriam aprendido com os Wauja residentes em sua aldeia. Essas afirmações conferem com os dados que obtive em 1998, 2000, 2001, 2002 e 2004 sobre emigrações temporárias de famílias ceramistas wauja para a aldeia mehinako.
6 Vide Barcelos Neto (2002) para uma etnografia desse processo de produção artística a partir do sonho e do transe.
7 No presente contexto, este termo inclui também os torradores de beiju.
8 O sufixo kana refere-se à forma côncava ou oca de qualquer objeto, kanatãi é a sua forma diminutiva.
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