Artesanato x indústria, rural x urbano, cultura tradicional x diversidade cultural, cultura popular x cultura erudita: o confronto das diferenças culturais constitui a base do projeto Design Solidário, realizado por A CASA, Museu Virtual de Artes e Artefatos Brasileiros, em parceria com diversas entidades, entre as quais a Design Academy Eindhoven, tradicional escola holandesa de design (veja ARC DESIGN nº 15). O projeto teve início em novembro de 2000, quando professores da Design Academy estiveram no Brasil pela primeira vez, para conhecer a realidade das comunidades com as quais iriam trabalhar. Vídeos com imagens do cotidiano das comunidades e amostras dos materiais tradicionalmente utilizados foram levados para a Holanda e transmitidos aos estudantes. Universos extremamente diferentes, senão opostos, foram alvo deste projeto: Serrita, sertão de Pernambuco, e Monte Azul, favela da cidade de São Paulo. A diferença mais marcante entre ambos é a base cultural que referenciou a produção dos objetos. Em Serrita, onde o artesanato em couro – produção de vestes e acessórios para vaqueiros – era uma tradição sólida, passada de pai para filho, o trabalho referenciou-se na cultura local Além disso, os artesãos tinham completo domínio do material: sabiam tudo o que ele poderia oferecer e como trabalhá-lo para obter o efeito desejado. Em Monte Azul, como os artesãos já lidavam com a madeira de forma elementar, o trabalho baseou-se em referências (técnicas e formais) externas: o uso da madeira laminada colada na produção de objetos com formas orgânicas. |
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Os objetos resultantes dessa experiência foram expostos no MAM-Higienópolis, São Paulo, e, apesar da diferença de contextos, materiais e técnicas com os quais foram produzidos, traziam um denominador comum: o design. Durante dois meses, os estudantes participaram de oficinas na Design Academy, nas quais desenvolviam protótipos de objetos com os materiais especificados (papel, tecido e madeira, no caso de Monte Azul, e couro, no caso de Serrita). Esses protótipos foram trazidos para o Brasil e, com base neles, estudantes e artesãos chegaram aos produtos finais. “Trouxemos cerca de 20 idéias e escolhemos umas cinco para trabalhar”, explica a designer Hella Jongerius, coordenadora do Het Atelier (ateliê de artesanato) da Design Academy. “O fato de trazermos objetos tornou a discussão mais fácil; é muito difícil falar ‘no ar’: quando você traz algo concreto, pode-se discutir em cima e dizer ‘sim’ ou ‘não’”. As oficinas preparatórias também funcionaram como uma seleção para escolher os 15 estudantes que vieram ao Brasil. “Apenas os mais capacitados poderiam vir, pois o tempo era muito curto” (os estudantes passaram entre três e quatro semanas no Brasil), diz Liesbeth in’t Hout, diretora da Design Academy. Desse grupo, cinco estudantes trabalharam em Serrita e dez em Monte Azul. |
Dentre os objetos desenvolvidos no módulo Serrita, três recursos se destacam: a furação e a moldagem do couro de cabra e a introdução da pele de porco. Na produção do gibão, veste tradicional do vaqueiro do sertão pernambucano, a furação era seguida da passagem dos fios, era uma etapa da costura das peças. Nos produtos do projeto Design Solidário, essa furação ficou aparente, passando de elemento construtivo a elemento formal. A pele de porco, embora seja abundante na região de Serrita, quase não é empregada nos utensílios tradicionais. Fascinados com a beleza do material, estudantes e professores holandeses sugeriram sua utilização na produção de um par de sandálias, nas quais os pêlos surgem como elemento marcante. O couro de cabra, por sua vez, é um velho conhecido dos artesãos locais, que dominam todas as técnicas de manufatura envolvendo o material. A moldagem do couro de cabra, que já era empregada pelos artesãos locais na fabricação do gibão, foi utilizada para revestir moringas metálicas. |
Em Monte Azul, o projeto também utilizou materiais já trabalhados anteriormente pelos artesãos – papel reciclado, tecido e madeira –, pois o intuito era o de revitalizar os objetos artesanais sem interferir na tradição local. O papel reciclado, antes utilizado para confeccionar cadernos e artigos de papelaria, dessa vez deu origem a brinquedos e utensílios domésticos (tigelas e fruteiras). Com o tecido, os artesãos construíram bonecas, desenvolvidas com base na proximidade existente entre a boneca e sua dona. Todas as bonecas podem ser “anexadas” às roupas das crianças por meio de botões, casas, laços, ou ainda por uma pequena bolsa. Seus braços são longos, podendo ser amarrados em torno da criança, e as mãos são quase “argolas”, na medida exata para envolver o punho: as meninas podem sair “de mãos dadas” com suas bonecas. Além disso, as bonecas exploram o sentido do toque: são feitas em tecido aveludado – o qual é pespontado para que sua “maciez” se torne mais evidente – e seu vestido se transforma de longo em curto com um simples gesto. No que se refere aos trabalhos em madeira, grande parte da matéria-prima utilizada – doada por empresas próximas à comunidade – é formada por “restos”, embalagens reaproveitadas. Objetos com formas elegantes, executados em finíssimas lâminas de compensado moldadas e coladas são excelentes exemplos do uso racional e sustentável da madeira. | ||
Pode o designer interferir na cultura popular? Maria Helena Estrada "O sonho precede a invenção". "A forma segue a fusão". Frases encontradas na brochura sobre a Design Academy Eindhoven, que servem de mote para um início de discussão sobre as questões que envolvem as fronteiras e contaminações entre artesanato, design e cultura popular | ||
Diz-se do artesanato brasileiro que é, sobretudo, kitsch. Mas o que estará acontecendo, qual o lapso de tempo e espaço – de cultura? – entre a riquíssima criação dos marajoaras, dos indígenas ainda não contaminados pela civilização, das carrancas do São Francisco, de mestre Vitalino, da arte sacra e profana e do barroco brasileiro, dessa cultura que foi vista – e emocionou a todos – na mostra Brasil + 500? Hoje, o que encontramos nas pequenas comunidades perdidas Brasil adentro, ou nas cidadezinhas turísticas? Temos de concordar que esse artesanato, atualmente expressão de nossa cultura popular, na maioria das vezes é de baixíssima qualidade: talvez numa tentativa de “acertar” o gosto do público, daquele público que busca “lembrancinhas”. Na definição do crítico norte-americano Clement Greenberg, “o kitsch é a arte feita para acariciar os preconceitos, o gosto passivo e acomodado”, seria como uma expressão de empatia popular, de fácil aceitação. |
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Por outro lado, em entrevista a ARC DESIGN (nº 15, julho/agosto de 2000), Hella Jongerius, em sua primeira visita ao Brasil, declarava que “um objeto se comunica com o meio ambiente e transmite um sinal emocional”, afirmação que pode ser lida como a linha condutora no processo – e no projeto – que ora se iniciava, e que partia de uma proposta delicada e perigosa, ou seja, desenvolver um projeto brasileiro – originado pela equipe de A Casa –, envolvendo uma escola de design e um grupo de professores e estudantes holandeses. O resultado é a exposição Brasil-Holanda. Mas os pressupostos envolvem questões fundamentais de postura e metodologia projetual, cuja premissa e pergunta básica seriam: como lidar com o fazer artesanal, como agregar valor,principalmente lidando com uma cultura tão diversa, como chegar às próprias mãos – e alma – do povo que o produz? Entre outros exemplos de resultados positivos da interferência do designer nas comunidades artesanais, citamos a Índia, onde há mais de dez anos o governo contrata designers italianos para atuarem junto às comunidades; a Tailândia, onde é visível o resultado obtido ao longo das últimas duas décadas; a própria Itália, que contrata designers de Milão para orientar a produção em tradicionais comunidades que trabalham com o vidro ou a porcelana, por exemplo. No Brasil, o Sebrae tomou a si o desafio, elegendo comunidades, selecionando designers brasileiros capazes de transformar aquele empobrecido fazer tradicional em peças que possam ser introduzidas – com sucesso – no mercado. |
No outro extremo, a Holanda, cuja vertente no design explora o projeto semi-industrial, valoriza os recursos naturais, fala de reciclo e re-uso, pesquisa materiais tecnológicos e os utiliza com tecnologias não-sofisticadas, privilegia o “pensar simples, viver simples”. Delicadeza seria a palavra para definir a ação de professores e estudantes holandeses nesse processo de integração a que se propuseram. Delicadeza, intuição e humildade. Aprender, apreender para poder conduzir, ou melhor, para poder chegar a uma criação conjunta. Nessa complexa missão de fazer reviver a cultura popular e o artesanato de um povo, uma vez iniciado o processo, é preciso ter em mente como escoar essa produção, como fazer com que ela chegue, com sucesso, ao mercado. Um processo no qual não cabem ingenuidade ou sentimentalismo, mas um trabalho de pesquisa bem direcionado, um marketing certeiro. | |
Essa primeira experiência Brasil-Holanda vem caminhando, passo a passo, com seu objetivo final bem-definido. Criar produtos para serem comercializados, e não apenas no Brasil, tendo o cuidado de não se tornar folclórica (no mau sentido), de não trair, como define Emanoel Araujo no catálogo da exposição Brasil + 500, “essa mão brasileira, essa alma brasileira de muitas cores e de muitas origens, que impregna com sua força a criação popular nesse imenso país”. Pelo que foi visto na exposição, os holandeses – e brasileiros – acertaram a mão, criando um universo de objetos com baixa – e muitas vezes nenhuma – tecnologia e alto valor agregado. |