Toda a nobreza da chita
Mirtes Helena Editora-adjunta
Renata Mellão não se lembra mais de seus primeiros contatos e de suas lembranças da chita. Mas sabe muito bem quando decidiu transformar este tecido em arte e e livro, uma idéia de resgatar a cultura de um certo Brasil ingênuo e esperançoso. 'A chita na moda', inusitada mostra em cartaz no DiamondMall, revela bem como este material tão popular pode se transformar num verdadeiro objeto de desejo de mulheres de todas as classes sociais. Convidados por Renata, onze estilistas de renome foram instigados a criar peças de luxo mostrando a versatilidade da chita e as peças estão rodando o Brasil, despertando curiosidade e encantamento. O que era pobre virou fashion. Os vestidos estão expostos ao lado de painéis com fotos da top Carolina Ribeiro usando a respectiva peça e podem ser vistos até o próximo dia 14, das 10 às 22 horas, na galeria montada no piso L2 do shopping. As roupas foram criadas por Ronaldo Fraga, Reinaldo Lourenço, Amapô, André Lima, Glória Coelho, Karla Girotto, Lino Villaventura, Madalena, Marcelo Sommer, Neon, Raia de Goye e a designer de acessórios Sonia Kiss. Depois de Belo Horizonte, seguem para Paris, Rio, Curitiba, Campinas, Volta Redonda... Esse tecido de origem indiana, cuja história se confunde com a do Brasil _ e cuja definição no dicionário Aurélio é 'tecido ordinário de algodão estampado em cores' _ ganhou de Renata Mellão, além da mostra, o livro, 'Que chita bacana', onde ela e Renato Imbroisi contam, entre outras curiosidades, que Minas é, hoje, o único produtor brasileiro de chita e que este pano simples, de cores alegres e preço popular, tem ancestrais ilustres, pois surgiu na Índia medieval há mais de 500 anos. O livro, uma pequena obra de arte, tem texto de Maria Emília Kubrusly e ensaio fotográfico de Lena Trindade.
Qual é a lembrança mais remota que você tem da chita? Que difícil! Acho que há tanto tempo que já não me lembro. Pensando em Minas, quando é que se começa a gostar do doce de leite com queijo ou das canções de Natal? Acho que é amor à primeira vista, mesmo que então, não nos apercebamos disto. Na minha cidade, São Paulo, somos todos de uma geração ainda muito próxima do interior do Estado. Tivemos oportunidade de conhecer a chita nas lojas das vilas e nas moradias. Acho que é isso.
Qual foi o clic para a realização deste livro? Quero saber o que desencadeou a idéia, o que motivou, originou o projeto. Aí sim, teve data e hora. Aconteceu quando, dispostas as chitas no varal, o sol se punha por trás delas iluminando-as. Antes deste dia, a chita sempre representou um enigma para mim. Por que se chama assim e por que se apresenta com esta cara?
E o que veio primeiro? O livro ou a exposição? Como estes dois trabalhos se complementam? O livro veio bem antes. E quando a pesquisa nos informou do declínio da produção de chita e de seu estigma pop, surgiu a idéia de revitalizá-la de maneira glamourosa.
Onde e como pesquisou para realizar estes trabalhos? Soube que Renato Imbroisi também queria realizar um livro sobre a chita. Nos encontramos e, na semana seguinte, já tínhamos um time pronto que se deslocou principalmente para Minas Gerais e estados do nordeste, nas festas juninas, para o Rio de Janeiro, Bahia e outros.
De onde vem a palavra 'chita'? Seu radical, Chint, que significa 'pinta ou mancha', em hindi, derivado do sânscrito.
Onde nasceu este tecido e o que você já aprendeu sobre sua origem? Esse tecido nasceu na Índia, onde houve grande desenvolvimento da sua produção, principalmente do século XI ao século XV. Como religiões, prevaleciam o hinduismo e islamismo, e esta última proibia representações figurativas, daí a predominância de motivos florais, arabescos e desenhos geométricos...
A chita de hoje é a mesma de anos atrás? É engano meu ou a de hoje parece que tem alguma coisa de sintético? A chita tem como suporte o morin, tecido de algodão rústico, com acabamento engomado. Depois dos anos 50, os motivos florais aumentaram, coincidindo com a chegada da televisão, que então apresentava outros materiais, renovando o estigma da chita. Hoje em dia, o algodão, esse morin, associado a fibras sintéticas, como a viscose, torna o tecido mais macio e com melhor caimento. Na exposição 'A Chita na Moda', existe um look da Madalena, que trabalhou com um tecido de popeline e motivo de chita refazenda, criação de Mônica Debiasi, para a Horizonte Têxtil em 2004.
Além do Brasil, quem mais produz chita no mundo? A chita teve sua matriz na Índia, espalhou-se pela Europa, recebendo o nome de 'Chintz', na Inglaterra; 'Alcobaça', em Portugal, e 'Provençal', na França. A Holanda e a Hungria desenvolveram os primeiros ateliers de estamparia, incorporando os motivos florais. Como o Brasil tinha permissão de Portugal e da Inglaterra para produzir a chita, e essa agradava muito o mercado africano, ela chegou a servir como moeda de troca por escravos da África. Todos esses países incorporaram, na sua história da indústria têxtil, características que podem ser apreciadas até hoje. Na África, encontramos os motivos de nossa chita estampados em tecidos mais finos.
Você acredita que este tecido vai mesmo fazer parte do vestuário das brasileiras? Será que a chita vai frequentar os salões, os bares, as ruas ou será apenas um modismo passageiro utilizado em detalhes como bolsas, lenços, echarpes, enfeites? Sim, é difícil achar que a nossa chita será utilizada na moda brasileira, pois o mercado já possui tecidos com tecnologia muito mais evoluída, os chamados tecidos inteligentes. A rusticidade do morin (1x1 urdume/trama) constitui um obstáculo, porém, objetos que dispensam a modelagem podem se aproveitar do seu lado decorativo, como bolsas e acessórios em geral.
Já ouvi alguém dizendo que a chita jamais cairá no gosto das brasileiras porque não se trata de um tecido nobre. O que acha? O que deve se destacar e chamar nossa atenção é a questão da identidade cultural que a chita contém. Ela será, para nós brasileiros, sempre uma referência. E acredito que possa se fazer outra dobradinha para suceder ao morin/chitão.
O texto do programa da exposição 'A Chita na Moda' fala em 'sintonizar novos caminhos para a chita'. Que caminhos são estes? A chita já se introduziu no universo de nossa cultura popular a partir de sua valorização como tal e do reconhecimento que ela vem alcançando na esfera urbana. Estamos abrindo caminho para que ela seja repensada e retrabalhada tanto em seu suporte quanto na sua padronagem.
Que critérios foram utilizados para a escolha dos estilistas que participam da exposição? A tarefa de seleção do grupo foi feita pelo curador da exposição, Dudu Bertholini. Veteranos consagrados e principiantes se alternaram, assim como representantes de vários estados do Brasil. Acredito que, se nos propuséssemos a gerar outra exposição, vários outros nomes seriam selecionados. Foi necessário pensar um limite de convidados representativos para esta exposição, que de maneira alguma representa o limite de nossos fashion designers.
Onde esta mostra já esteve antes de BH e por onde mais ela vai passar? Ela inaugurou, em São Paulo, o Museu da Casa Brasileira, e teve convite para, através da Renasce, itinerar por vários estados. A exposição, antes de Belo Horizonte, esteve em Brasília, e seguirá para o Rio de Janeiro e várias outras cidades.
Por que a chita é sempre estampada? Existe chita de uma cor só? A chita tem como características: o contorno em grafite, os motivos florais _ lírios, rosas, margaridas e orquídeas são os mais usados _ utilizando-se de cores primárias, a cor do fundo é sempre vibrante _ o que impedia de avistar as falhas _ e o acabamento tem goma para ficar mais firme.
De que é feita a chita? O que a faz tão única e característica? A chita é o nome que se dá ao suporte de algodão rústico (morin) e à estampa com motivos quase sempre florais. Ela é única porque, desde que aqui foi chegando, ela foi se transformando e adquirindo uma 'cara brasileira'. São estampas alegres, atraentes, generosas e abusadas, sem perder a ingenuidade e singeleza.
No seu livro 'Que chita bacana', há um capítulo, 'Teimosia mineira'. Do que ele trata? Durante a guerra de independência americana (1756 - 76) foi interrompido o fornecimento de algodão para a Inglaterra. Este fator propiciou o desenvolvimento das manufaturas têxteis localizadas em Minas durante o Ciclo do Ouro. A qualidade dos tecidos de Minas surpreendeu tanto que atraiu o mercado consumidor em outras localidades. Portugal não queria que a Colônia se tornasse independente dos produtos Além Mar e resolveu boicotar a manufatura de tecidos. Vieram se somar a este fato os anseios de liberdade mineiros, como a Inconfidência. Para não correr riscos e satisfazer os tecelões de Portugal, foi determinado pela Rainha D. Maria I a queima dos teares e utensílios têxteis. Minas porém, nunca parou de tecer, evoluindo sempre até se transformar num vigoroso parque industrial a partir de 1868, com a fundação da Cedro, e em 1873, com a Cedro Cachoeira.
|