Boa noite, obrigada pela presença. Todos vocês são muito bem-vindos. Este é o nosso XI encontro e, neste ano, decidimos ampliar nosso programa, convidando alguns representantes da América Latina. Para tanto, contamos com a presença da Lilian Samar, da Argentina. Essas palestras são editadas e inseridas em nosso museu virtual, cujo endereço é www.acasa.org.br. O evento também gera uma exposição que se encontra na CASA. Para quem ainda não a conhece, vale a pena visitar. Gostaria de passar a palavra para a Adélia Borges, para que ela apresente os convidados dessa noite.
Adélia Borges
Boa noite. Hoje temos aqui muita gente nova, que está vindo na CASA pela primeira vez. Para quem não conhece nosso trabalho, esta é uma seqüência de encontros chamados “Encontros de Design e Artesanato”, cujo objetivo é discutir a intersecção entre esses dois mundos. Desde o primeiro encontro, temos conversado a respeito da identidade brasileira no design e no artesanato.
O encontro de hoje é sobre o Circuito Identidades Latinas, um projeto que envolve o Brasil, a Argentina, o Uruguai, o Chile e a Colômbia, e sobre o qual eu tomei conhecimento em um evento que aconteceu em Buenos Aires. Na ocasião, conheci uma das participantes desse grupo, que é a Laura Novik, uma designer argentina que mora em Santiago do Chile. Tempos depois, conheci em Jaraguá do Sul (SC) a brasileira Celaine Refosco, coordenadora do Identidades Latinas no Brasil.
Por conta de um problema de saúde, a Laura não pôde vir a esse encontro; no entanto, temos o prazer de estar hoje com a Celaine Refosco, que vai nos contar um pouco da pesquisa que tem sido feita sobre identidades latinas, especialmente no campo da moda. A Celaine é a coordenadora do Curso de Moda do Centro Universitário de Jaraguá do Sul (Unerj), sediado na cidade catarinense de Jaraguá do Sul, um pólo incrivelmente dinâmico, vibrante e interessante. Tive a oportunidade de conhecer essa cidade há cerca de duas semanas e o que encontrei por lá foi uma grata surpresa.
No encontro de hoje, teremos também o depoimento de nosso querido Ronaldo Fraga. Acho que este renomado estilista mineiro é conhecido de todos nós e dispensa apresentações.
Gostaria de dar a palavra para a Celaine e em seguida teremos a fala de Ronaldo Fraga.
Celaine Refosco
Boa noite. Antes de tudo, gostaria de agradecer a oportunidade de estar aqui.
Para começar, eu gostaria de retomar a apresentação da Adélia Borges e contar para vocês um pouquinho sobre a cidade de Jaraguá do Sul, na qual vivo. Localizada no norte de Santa Catarina, a cidade é um grande parque industrial, que reúne, entre outros segmentos, a área têxtil. Apenas para situá-los, a área têxtil é hoje responsável por 20% da geração de renda de Santa Catarina, o que dá uma idéia clara da importância desse setor para o estado.
No ano de 2003 foi fundada uma escola de moda em Jaraguá do Sul, que veio a ser a sétima escola de moda de Santa Catarina. Ela não teria razão de existir, a menos que se posicionasse numa nova perspectiva e tentasse trabalhar com itens normalmente pouco explorados, pouco valorizados no estado, como memória e iconografia. Quando fui incumbida de dar este diferencial para a faculdade, fiquei um pouco assustada, mas logo imaginei que deveríamos ir atrás do que faltava, que era, na minha opinião, reconhecimento de identidade e de cultura. Para iniciar este trabalho, chamamos acertadamente o Ronaldo Fraga. Com ele, demos início a discussões pedagógicas, pensando no encaminhamento que daríamos para a questão. O Ronaldo foi muito generoso em aceitar trabalhar numa coisa que ainda não existia. Depois dele, chamamos docentes de alguns países vizinhos. Vale citar que tempos antes eu havia conhecido em um curso a Laura Novik (designer argentina residente no Chile) e alguns profissionais de moda uruguaios e chilenos.
Nosso projeto nasceu da discussão sobre coisas que nos faltavam em Santa Catarina. Inicialmente, constatamos que havia um baixo nível teórico nas questões relacionadas a moda – no estado, em geral se lê pouco e se tem pouco contato com o mundo externo. Apesar de a grande indústria estar mudando isso em ritmo acelerado, a população média e os estudantes ainda têm poucas referências. Decidimos, portanto, realizar algumas trocas com companheiros de outros países. À medida que eles nos dariam contribuições teóricas, nós lhes mostraríamos nosso grande impulso de execução, uma condição de realização menos ativa na realidade deles – tanto na escola (que era a nossa realidade), quanto no parque industrial. Muitas de nossas empresas são bastante jovens (tendo de cinco a dez anos) e têm desempenhos incríveis, não só em termos econômicos, mas também em relação a produtos, desenho, etc.
Foi então que começamos a considerar a possibilidade de realizar encontros de forma efetiva e sistemática. Conversando com Laura Novik, pensamos que muita coisa poderia surgir se as pessoas desses mercados, de moda e design, tivessem oportunidade de conversar com freqüência e potencializar o que tinham: juntando o melhor de cada uma das partes envolvidas, todos sairiam ganhando. Para nós, o projeto Identidades Latinas seria em princípio uma espécie de festa. Conforme expúnhamos nossas idéias a outros profissionais, não havia meio termo: uns imediatamente se apaixonavam pela proposta, ao passo que outros a consideravam de difícil realização, achando complicado reunir pessoas de vários países (mesmo porque não tínhamos um orçamento para isso – nem na Faculdade de Jaraguá do Sul, nem em outras instituições).
Felizmente, nossas vontades e condições de realização sempre estiveram à frente das dificuldades que se impunham e fomos aos poucos encontrando pessoas dispostas a abraçar a idéia. Nossa primeira preocupação foi encontrar em diferentes países profissionais com motivações similares às nossas. Em alguns casos, as pessoas souberam do projeto por terceiros, interessaram-se e acabaram nos procurando. Passamos, então, a trabalhar com maior metodologia, tentando levantar as condições necessárias para realizar algo que ainda não estava muito bem definido. Vale apontar que desde o início achamos que o Circuito Identidades Latinas deveria se organizar em torno de instituições de ensino: entidades com certa mobilidade, capazes de digerir rapidamente situações e servir de “barriga” para o projeto. E foi exatamente o que aconteceu.
Os cinco países que por enquanto participam do Circuito são o Brasil, a Argentina, o Uruguai, o Chile e a Colômbia. Um aspecto interessante é verificar as diferenças entre eles do ponto de vista industrial. No Brasil, mais especificamente em Jaraguá do Sul, o forte parque industrial desperta o interesse dos argentinos; a Colômbia, também vigorosa nesse aspecto, se interessa em entender melhor o funcionamento desse correlato vizinho; o Uruguai já foi forte industrialmente e está hoje com um parque industrial têxtil destruído, só contando com uma maravilhosa fábrica de lã – o que justifica, inclusive, a discussão do motivo de tamanha transformação; e, enfim, o Chile não tem indústria,cisindinha o questionamento de por que ele deixar de existir nessa situaa id mas se organiza muito bem em torno da compra e da venda, em torno do negócio em si (e não da fabricação).
Reunir os cinco países que hoje participam do projeto não foi fácil. Em primeiro lugar, entramos em contato com algumas instituições educacionais que conhecíamos. No Uruguai, por exemplo, tínhamos uma relação muito interessante com o CDI (Centro de Diseño Industrial), que acabou não se solidificando por conta da dificuldade econômica que o Uruguai vive no momento. Na Argentina, da mesma forma, tivemos algumas tentativas frustradas de parceria.
Apesar disso, felizmente tivemos sucesso com algumas instituições e hoje o mapa do projeto possui o seguinte aspecto: o Uruguai ficou com uma participação muito pequena, com uma instituição de ensino chamada UDE (Universidad de la Empresa) e a participação de um designer; no Brasil participa a Unerj (Centro Universitário de Jaraguá do Sul), que de alguma forma deu início a tudo isso; na Colômbia, estamos com a Universidad La Salle College; na Argentina temos a Universidade de Palermo e, no Chile, o Inacap (Instituto Nacional de Capacitação Profissional).
Pensando nas cidades que representam os países do projeto, temos Jaraguá do Sul ao lado de metrópoles do porte de Bogotá, Buenos Aires e Santiago do Chile. Algumas pessoas já questionaram sobre nossa cidade e sobre nossa presença em meio a este grupo de cidades de porte bem maior. O fato é que independentemente de sermos ou não os “primos pobres”, fomos trabalhando e construindo esse sonho que dependeu exclusivamente da participação de pessoas que apostaram em uma idéia, sem contar com praticamente nenhum tipo de remuneração. Durante toda a montagem do projeto, fomos movidos pela constatação de que ele despertava interesse muito grande de outras pessoas, de que tínhamos muita mobilidade e de que, por conta dele, pequenos contatos poderiam virar grandes contatos. Conforme avançávamos com as idéias, o Circuito Identidades Latinas foi ganhando viabilidade.
Falando dos elementos facilitadores do projeto, é importante ressaltar que houve grande apoio dos setores governamentais da Argentina e do Chile, ao passo que no Brasil, apesar de termos buscado essa representatividade, não conseguimos nenhum aporte. O mesmo aconteceu com o setor de cultura, que nos outros países foi muito presente e no Brasil não teve nenhum tipo de envolvimento (talvez até por estarmos em Jaraguá do Sul e não em uma metrópole).
Enfim, a idealização do circuito
Falando especificamente da idealização do projeto, um elemento que ganhou papel essencial foi a artesania e as organizações sociais que se fazem em torno dela. A questão da identidade, a condição construtiva da artesania e a pesquisa de materiais nos pareceram sempre muito importantes. Vimos que a artesania acabava se tornando um baú de coisas guardadas e que valia a pena estudá-la ou mesmo considerá-la como um grupo social dentro do projeto.
Para nós de Santa Catarina, também julgamos importante a aproximação de pesquisadores e teóricos, já que se trata de “uma espécie” praticamente inexistente em nosso estado. Acredito que em São Paulo o cenário não seja esse, mas em Jaraguá os profissionais, os estudantes, os criadores e até a mídia relacionada ao assunto precisam de algum tipo de alimentação.
O primeiro evento do Circuito Identidades Latinas aconteceu em Santiago do Chile, em setembro de 2004. Sua idéia básica se compunha de duas ações: um ciclo de palestras ou debates – onde empresas, instituições de artesanias e criadores discutiam sua realidade em torno da questão da moda –, e uma parte prática composta de workshops, nos quais as pessoas criavam a partir de um material neutro, de idéias, etc. Em cinco dias de trabalho, aconteciam palestras pela manhã e, à tarde, era feita a parte prática. As pessoas iam para laboratórios e ateliês, a fim de desenvolver produtos com base nas discussões do período matutino. Quem conduziu esses workshops no Chile foi Ronaldo Fraga, que daqui a pouco contará para vocês como foi a experiência. Alguns dias depois do evento de Santiago do frustradas de emos dificuldades com algunsChile, tivemos o encontro de Buenos Aires. Mais algumas semanas e fizemos o encontro de Jaraguá do Sul (em outubro de 2004), seguido do de Bogotá, que aconteceu em fevereiro de 2005.
Dentro dessa dinâmica de trabalho, procuramos colocar em todos os eventos uma palestra de base, na qual se fala sobre identidade. Pensamos não apenas em termos de criação (em dimensões pequenas e individuais), mas também em relação ao macro, a países e negócios. No encontro que tivemos em Jaraguá do Sul, a palestra de abertura ficou nas mãos da jornalista Carol Garcia, especialista em moda. Ela desenhou um belíssimo panorama de onde estamos e, nas palestras ou debates subseqüentes, procurava-se sempre amarrar os assuntos por ela abordados, como relações entre indústria, escola, artesania e criação. Nesse encontro em Jaraguá do Sul, descobrimos, entre outras coisas, que a quantidade de lixo têxtil gerado na cidade é fenomenal e poderia, por exemplo, alimentar muitos grupos de artesanato urbano. Mais que tudo, tivemos a certeza de que à medida que aproximamos as pessoas, uma série de coisas começa a acontecer. Tudo isso reforçou significativamente nossa idéia fundamental, que é aproximar as pessoas.
Uma das iniciativas mais fantasiosas que tivemos para conseguir essa aproximação foi a criação de um café em Jaraguá do Sul, destinado a possibilitar encontros e vivenciar aspectos importantes da cultura, como a culinária local. Para a criação do espaço do Café Identidades, pedimos o apoio dos alunos do curso de pós-graduação de Design de Móveis da Unerj, sob a tutela do professor Geraldo Coelho, para a criação do ambiente. Trata-se de um trabalho eminentemente pedagógico, que envolveu muito estudo e, como processo didático, ainda não está concluído. Um detalhe da ambientação que eu acho interessante citar é o fato de termos escolhido compor os móveis com chita, um elemento extremamente significativo quando pensamos em brasilidade.
Além de design e moda, pretendemos falar também de cultura e identidade – o projeto, inclusive, tem como subtítulo “Design, Cultura e Identidade”. Gostaríamos de ter no circuito uma maior participação das artes-plásticas, da música e de outros tipos de manifestações artísticas e culturais. No encontro que tivemos em Jaraguá, vale lembrar, tivemos a oportunidade de divulgar dois artistas plásticos: o Agostinho, de Florianópolis, e o Juliano, de Schroeder (um município vizinho de Jaraguá do Sul). Eles têm trabalhos incríveis feitos a partir de lixo: o Agostinho usa plástico e o Juliano, sobras de marcenarias.
Muitos aspectos dos eventos aconteceram como prevíamos, mas, ainda assim, também tivemos boas surpresas. A parte prática do evento de Jaraguá do Sul, por exemplo, foi coordenada por dois criadores latinos: o designer argentino Martin Churba, que já participou do São Paulo Fashion Week e tem um trabalho mais voltado para pesquisa da matéria do que para o design de roupas, e o uruguaio Fernando Escuder, que atua como docente e trabalha no mercado com uma marca própria. Em determinado momento do evento, o Martin – que deveria apenas coordenar os trabalhos – foi tomado por uma fúria criadora e saiu trabalhando, criando. Isso nos indicou um caminho muito interessante! Havíamos mapeado situações, imaginado coisas que provavelmente aconteceriam, mas ocorreu muito mais do que esperávamos.
Finalizando, eu diria que o Circuito Identidades Latinas aconteceu de maneira bastante orgânica e de certa forma até desordenada. Ainda assim, percebemos que houve um grande resultado concreto e palpável, baseado especialmente no encontro entre as pessoas. Houve também um forte resultado emocional: os participantes saíram do evento tendo descoberto coisas a respeito de si mesmos e dos outros, fortalecidos por tudo que viram e pelo que tiveram condições de realizar. Agora, parece que chegou a hora de trabalhar com isso de maneira mais construtiva, de ver de fato o que foi alcançado, o que se realizou e o que está por se realizar.
Ronaldo Fraga
Boa noite.
Antes de começar a falar do projeto Identidades Latinas propriamente dito, eu gostaria de relatar para vocês a sensação que tive ao assistir seu nascimento, no final de 2004. Primeiramente, pensei na América Latina como um grande Singapura – não como Singapura país, mas como o grande conjunto habitacional popular desenvolvido pelo prefeito Paulo Maluf em São Paulo... Fiquei pensando como nos parecemos com aquelas pessoas que não têm dinheiro para comprar um apartamento num local mais interessante, conformam-se em comprar uma unidade no Singapura e têm a idéia firme de que será provisório, de que logo vão melhorar de vida e se mudar para um lugar melhor.
Como se trata de uma moradia provisória, pensam que não precisam se envolver e nem mesmo dar bom dia aos vizinhos. Mudam-se para o Singapura, no início novinho, decoram o apartamento, pintam as paredes, recebem os amigos e continuam não dando bom dia pra ninguém. Mas um dia começa a cair a casca do imóvel e vêm os problemas relacionados a esgoto, fornecimento de água ou mesmo ao jardim que não existia inicialmente... As pessoas então acabam chegando na reunião de condomínio, o momento crucial em que vão ficar cara a cara com os vizinhos por tanto tempo negados, dos quais desviaram na escada por tantos anos. Pois bem: é essa a sensação que eu tenho em relação à América Latina.
Somos todos países auto-suficientes e temos uma cultura fortíssima – sendo assim, por que vou me envolver com a Argentina, arrumar confusão com o Chile, Colômbia, Bolívia, ainda mais no que se refere a moda? Pra que isso? Pensando nesse paralelo, revi um curta-metragem feito pelo Wim Wenders, sobre o estilista japonês Yamamoto, chamado “Caderno de notas sobre roupas e cidades”. Quando Wenders foi convidado pelo centro George Pompidou para produzir o curta, ele disse que sabia apenas que o Yamamoto era um estilista japonês. No início do curta, ele dá o seguinte depoimento: “Pelo menos vou conhecer Tóquio. Não me interesso por moda, não me interesso por roupas; me interesso por pessoas”.
Wenders vai além e questiona identidade: “Qual é o sentido de falar sobre identidade no mundo moderno? Num mundo onde não falamos mais de negativos, mas de imagens digitais?”. Segundo coloca, vivemos em um mundo de cópias, onde não existem mais originais, não há mais registro de nada. E eu concordo. Se quisermos falar em identidade, falemos da cidade que cada um carrega dentro de si; cidades que estão o tempo inteiro sofrendo mutação, cidades em que se vê a construção de novos prédios, a queda de outros, a construção de novas praças e o crescimento de novas árvores. Identidade na realidade são as cidades que carregamos dentro de nós.
Em relação ao universo da moda, acredito que desde o início dos anos noventa utilizamos a palavra identidade de modo promíscuo. Tanto identidade quanto conceito eram usados de maneira extremamente superficial e sem conteúdo. A moda falava de identidade, mas ninguém sabia que identidade era aquela. E quando íamos verificar, a identidade era uma referência baseada em qualquer coisa que foi interessante, que seria um must buy, ou mesmo em uma cartela de cores lançada pelos bureaus europeus. E acreditávamos estar falando em identidade.
Mais de dez anos depois, nesse cenário canibalístico da globalização, uma prática diária tem nos mostrado que a identidade se tornou uma grande moeda de ouro e, com a sensação de tempo perdido nesse aspecto, temos que construir urgentemente alguma coisa. Hoje, quando escuto em Minas Gerais – com muita preguiça – a discussão da moda mineira, logo digo que perdemos o bonde, que passou o tempo dessa discussão. E às vezes tenho a sensação de que a moda brasileira também é um bonde que já se foi.
Acho que a idéia do Circuito Identidades Latinas vai para além do olhar poético sobre a América Latina. Até numa questão econômica, estamos falando de um caminho inevitável, que é o caminho da formação de um bloco. É natural que se resolvam as questões econômicas imediatas sobre o Brasil e a Argentina. Acho absolutamente pertinente essa discussão, procurando verificar se existe espaço para troca e, em caso afirmativo, descobrir que troca pode ser essa.
Fui então para o evento no Chile, pensando sobre esse conceito de que não existe mais o “original”, que vivemos no mundo da cópia e que, se existe espaço para falarmos sobre identidade, que seja a identidade do indivíduo e não do grupo, como um dia acreditamos. Nos anos 80, pensávamos numa identidade de massa, achávamos que a massa pensaria da mesma forma, iria se vestir do mesmo jeito, teria o mesmo gosto. Hoje, acredito que essa identidade parte do desejo do indivíduo: é o olhar individual, a opinião de cada um que vai formar esse grande mosaico, que enfim chamaremos de desejo de grupo ou desejo de massa.
O fato de os eventos do circuito terem começado no Chile foi bastante interessante. O Chile é bem mais politizado que os centros acadêmicos brasileiros de moda e, a meu ver, a escolha da roupa é também uma escolha política. Para mim, portanto, foi uma excelente experiência. Quando falo de roupa como opção política, é bom frisar, não estou falando de política partidária, nem de roupa só como forma de protesto. Estou na realidade falando como forma de definição de qual cidade é o indivíduo, a que espaço ele pertence. Ao se vestir, a pessoa pode, por opção própria, derrubar determinados parâmetros.
Sobre o evento que aconteceu no Chile, acho que um ponto ficou muito claro: o que falta em um país do circuito, existe no outro. Segundo os participantes chilenos colocam, o Brasil está a anos-luz do momento vivenciado por eles. Apesar de que, quando fazemos uma comparação dessas, pensamos em São Paulo. E eu acho difícil falar em Brasil tomando São Paulo como referência, pois a cidade é sem dúvida muito diferenciada em relação a outras partes do país. De qualquer modo, nessa grande metrópole há acadêmicos e alunos extremamente politizados e interessados na construção de uma imagem de design e moda que os chilenos ainda não têm. Em Buenos Aires, há também um posicionamento político na construção do design e da identidade do grupo, mas eles têm grande dificuldade de desenvolver de projetos, de transformar as idéias em produtos.
A realidade de Santa Catarina, por sua vez, é muito especial. Acho que o estado está passando por um momento de virada de página na história. Eles têm uma indústria extremamente organizada e eficiente e isso para mim é uma grande surpresa, especialmente se comparo o cenário catarinense com o de Minas Gerais, que já foi o berço da indústria têxtil nacional e tem hoje essa indústria em frangalhos... Em Santa Catarina, os profissionais já não se restringem a confeccionar produtos – eles querem agora construir idéias e têm grande agilidade para a execução dos produtos.
Posso dizer, enfim, que o Circuito de Identidades Latinas nos levou a um ponto muito interessante e previsto inicialmente, que é um grande mosaico e necessidade de troca. O que tenho colocado para um próximo programa, uma nova edição do projeto, é a necessidade de um envolvimento maior da comunidade, de modo que o projeto não se restrinja ao meio acadêmico, ao ambiente das universidades. Acho importante ter um envolvimento maior com a culinária, com a artesania, com o “fazer a mão”, e que isso se estenda a outras cidades do país. Estamos realmente entusiasmados com essa idéia.
Na cadeira de Design de Moda da Fumec, Escola de Design de Belo Horizonte, da qual sou consultor, propus a discussão do tema identidades latinas. Na faculdade de Jaraguá do Sul, este também foi o tema do primeiro semestre. Com isso, pude verificar como é interessante perceber as diferentes visões que cada um tem da identidade latina: que gosto ela tem, que cheiro ela tem, que caminho ela já construiu e o que tem para se construir a esse respeito. Pude concluir que a identidade latina já existe, mas sofre de um problema seriíssimo, que é a questão da apropriação dessa identidade. O tempo todo negamos a identidade brasileira, temos receio de misturar a artesania com a produção industrial ou mesmo de assumir a “sensualidade de camelô”, a exposição do corpo, a mistura até promíscua de cores e gostos que temos no país. Imagine então vencer essa negação em um espaço maior, em um continente todo...
No Chile, um professor justificou a dificuldade da América Latina em criar um link de comunicação entre os países, tomando o Chile como uma ilha, o Uruguai como um pueblo, o Brasil como um continente e a Argentina como um império. Mas eu acho que essa dificuldade está em cada país, está na dificuldade de assumir a própria identidade. E vou além: na minha opinião, essa apropriação pode ser vencida através da exposição de opiniões: somos assim, gostamos disso, não gostamos daquilo, etc.
Finalizando, eu gostaria de falar do receio que tenho de certos temas que viram moda, pois se algo se torna moda, em seu sentido antropofágico, posso prever que isso será consumido, alimentado e destruído, transformando-se, enfim, em página virada. Eu me preocupo quando vejo o Brasil entrando na moda, quando vejo marcas que até ontem tinham uma estética totalmente baseada na moda européia e que hoje resolvem assumir um tucano e chamar aquilo de moda brasileira. Acho essa discussão muito importante.
Bate-papo com os participantes
Adélia Borges
Eu gostaria de fazer uma pergunta tanto para a Celaine quanto para o Ronaldo. Como mineiro, o Ronaldo tem passagens por alguns locais bastante pobres e isolados, como o Vale do Jequitinhonha, que possui peculiaridades incríveis e um manancial indescritível de inspirações. A Celaine, por sua vez, vem do Sul do país, de uma região com forte presença da imigração alemã e italiana. Trata-se de uma região desenvolvida e rica, onde há espírito empreendedor.... Em relação aos países envolvidos no Circuito Identidades Latinas, com exceção da Colômbia e do Brasil, são todos de regiões frias, com clima temperado. Como podemos ver essa questão? Como vocês vêem isso?
Celaine Refosco
A escolha dos países não foi intencional. Fizemos parceria com os que se mostraram abertos para isso e, à medida do possível, pretendemos ampliar o grupo. E acho que a questão do contraste é interessante justamente pelo próprio contraste. O Chile e a Argentina, ao contrário de Santa Catarina, não têm uma tecnologia tão desenvolvida; por outro lado, fornecem um rico aporte teórico ao projeto. Santa Catarina e os outros estados do Sul do Brasil, apesar de serem extremamente desenvolvidos tecnológica e economicamente, são pobres culturalmente. Essa aproximação é ótima justamente para tentar preencher essas lacunas.
Venho de uma família de origem italiana e percebo que os imigrantes da nossa região trabalhavam tanto, que não tinham tempo para pensar em nada. Acho que não sabiam do que gostavam, o que faziam, o que pensavam em fazer, pois ficavam o tempo todo trabalhando. E essa é uma tarefa que também queremos levar adiante nesse momento: identificar quais são as características, os traços culturais dessas pessoas. Acredito que muita coisa pode ser identificada. Por isso, esse projeto é importante. Ele vai nos ajudar a resgatar a cultura catarinense e do Sul do país.
Ronaldo Fraga
Às vezes penso em deficiências que vivemos nos dias atuais e que, na minha opinião, devíamos ter resolvido já no século passado. A questão do Vale do Jequitinhonha, por exemplo. Quando estive nessa região para pesquisar temas para uma coleção que fiz, cheguei numa cidadezinha chamada Santana do Araçuaí. Para chegar em meu ponto final, atravessei uma área de caatinga por mais de uma hora. Durante o percurso, eu pensava, na minha ignorância, de onde os artesãos tiravam os pincéis, onde compravam as tintas para pintar as bonecas que faziam...
Quando cheguei à casa de uma artesã, ela me mostrou um determinado barro que geraria a cor rosa, um outro que criaria o preto e, em seguida, colocou no forno uma boneca grafite. Junto com a peça, ela colocou para assar um tabuleiro de maravilhosos biscoitos de polvilho e, enquanto esperava, fez um café. E eu pensava: cadê a miséria que eu imaginava que veria? Aquelas pessoas eram muito pobres sim, mas não tinham nada de miseráveis. Lembro que ao tirar a boneca do forno, a artesã fez alguns retoques com pena de galinha molhada em barro aguado. Naquele momento, ficou claro para mim que colocar a deficiência para trabalhar a favor é uma das saídas dessa chamada América Latina, desse desconcerto que temos e que negamos durante muito tempo. Hoje, quando vejo deficiências em relação a um lugar, depois percebo que vou desvendando minha ignorância em relação a ele. Sobre Jaraguá do Sul, por exemplo, eu pensava que as pessoas seriam toscas, camponesas, secas e frias. E quando me aproximo dos sujeitos, vejo que a história é outra, “o fundo da humanidade” é o mesmo em qualquer lugar.
Acho importante ainda falar do desconforto de lidar com essa relação metrópole-colônia e até de uma certa inveja que existe nessa relação. Chegando ao Chile, pensamos ter chegado na Londres dos trópicos, com tudo de bom e de ruim que isso pudesse ter a respeito de identidade. Pois eu acredito em uma realidade na qual o feio não é tão feio e o bonito não é tão bonito. E por isso considero tão enriquecedoras discussões como essas que estamos tendo aqui.
Christian Ullmann
Sou argentino, moro há cinco anos em São Paulo e conheci a Celaine em Bogotá, em um encontro internacional de design. Percebo que a compreensão dos contrastes entre a capital e o interior marca a discussão da identidade na América Latina. E realmente temos um descompasso entre o interior e a capital ou entre a periferia e a capital, mas acho que esse interessante desconcerto já é conhecido e bem aceito. Pensando nos países da América Latina, vejo que somos todos muito parecidos. A realidade política e econômica do Brasil e da Argentina, por exemplo, é praticamente a mesma, assim como a reciprocidade da simpatia entre argentinos e brasileiros. Precisamos, portanto, compreender que somos quase iguais. Não importa se aqui fazem 35 e lá fazem 15 graus de temperatura, se a culinária argentina é uma e a brasileira é outra – estamos falando de diferenças não fundamentais e que podem ser rapidamente incorporadas. Por isso, concordo com a Celaine em relação aos benefícios de reunir essas pessoas.
Ronaldo Fraga
Eu gostaria de colocar algo mais sobre a noção de miséria... Enquanto discutimos a miséria do Vale do Jequitinhonha, eu me deparo com as artesãs de lá dizendo que não deveríamos tratar as coisas dessa maneira – porque elas não vêem miséria no que vivem. Elas gostam de lá e gostariam que os maridos voltassem para casa, que vivessem lá, que não precisassem trabalhar em São Paulo. Eu reafirmo, portanto, que acredito existir uma necessidade de descortinar as coisas, insistindo que o feio não é tão feio e o bonito também não é tão bonito.
No cenário em que vivemos, vejo ainda uma grande deficiência no fato de sermos urbanos: tenho que saber quem sou, segurar minha identidade, carregar a cidade. Há um poema do Carlos Drummond de Andrade chamado “Eu, etiqueta”, no qual ele fala da dificuldade de ser urbano, já que tudo no corpo dele tem etiqueta – ele carrega etiqueta nos óculos, na camisa, na calça.... No meio de tanta etiqueta, já não sabe como etiquetar a vontade dele, a vontade de dizer “não” a tudo isso. O Drummond escreveu isso em 1942 – e vejam como é atual...
Renata Mellão
Quando você fala em “carregar a cidade”, o que exatamente você quer dizer?
Ronaldo Fraga
Vejo isso como carregar experiências, carregar o que é de seu pai, do lugar onde você nasceu... Saber o que você gosta e o que desgosta, o que te interessa ou não, o que é bom ou ruim para você, o cheiro que te transporta, a lembrança que te mantém de pé e o que te mantém disposto a segurar a onda das transformações que evidentemente precisam acontecer. A identidade não é imutável, isso é um conceito errôneo que muitas vezes temos, achando que a pessoa nasce de um jeito e tem que morrer igual. O que acontece nas cidades é justamente o contrário dessa estagnação. É preciso ter um terreno seguro para construir um prédio onde for preciso, para construir uma casa e mantê-la. Por isso, são importantíssimas as experiências individuais, seja na viagem ao Vale do Jequitinhonha ou nas músicas do Lupicínio Rodrigues que meus pais ouviam. Eu gostaria de voltar para o momento em que ambos se conheceram e assistir como começou essa parte da minha existência... O Lupicínio Rodrigues, portanto, é um lugar para mim. Não é um lugar palpável e nem um lugar onde existe a discussão de miséria, de pobreza. É algo que eu gosto de passar à margem.
Para montar minha coleção “Cordeiro de Deus”, lançada em 2002, observei muito o universo dos presidiários, que me serviu de inspiração. Em uma ocasião, eu estava acompanhando pela tevê as notícias de uma rebelião que acontecia em um presídio do estado. Era dia de visita e um camburão deixava o presídio para deslocar alguns detentos. Do lado de fora, havia uma mulher gritando: “Fulano, eu te amo!”. Eu achei uma imagem extremamente interessante, tendo em vista que ela não sabia se o marido realmente estava lá, não sabia sequer se ele estava vivo ou morto...
Na época, montei uma oficina de bordados em uma penitenciária de Belo Horizonte. Um tema que me inspirou muito naquele ambiente foi a mistura de religiões: no local havia crentes, evangélicos, católicos, gente do candomblé... Era realmente interessante. E também me inspirei muito observando as mulheres que aguardavam para visitar os maridos presos. Sob sol quente, elas ficavam na fila para visitação, com seus álbuns de casamento e de nascimento, com as filhas usando vestidos rodados de tafetá misto e grandes laços, a fim de mostrar ao pai como tinham se vestido para uma festa... Achei tudo isso muito poético e fui transportado para um mundo que considero “o fundão da humanidade”. Eu encarava as cenas como tão poéticas, que quando os presos ameaçavam me contar por que estavam ali, eu logo interrompia a conversa, mudava de assunto para não saber.
Havia na penitenciária um homem negro, alto e forte, um dos líderes, e ele participava da oficina de bordado. Certo dia, ele estava bordando com uma agulha e a namorada aguardava ao lado, sentada. Até que ele terminou os dizeres da camiseta: “Washington eu te amo”. Era a coisa mais surreal! Perguntei quem era aquele Washington e ele me contou que era o filho de cinco anos, que ele ainda não conhecia – e completou: “penso nele todos os dias, todos os minutos dos últimos cinco anos da minha vida”.
Voltando ao assunto identidade, penso que ela inclui certa projeção e a necessidade de descortinar uma negação... Para se proteger, você muda de canal ou vira a página do jornal, a fim de não ver uma notícia ruim. Acho que há certa proteção nessa atitude, mas ela também gera um distanciamento do mundo real, um empobrecimento da nossa experiência.
Considero importante citar que, pelo menos na minha opinião, a identidade não deve jamais ser tratada como uma espécie de DNA, ou seja, como se fornecesse ao sujeito características definitivas e imutáveis (assim ela era tratada nos anos 70). Prefiro ver a identidade não somente como uma busca (apesar de que buscar dá a impressão de que há algo escondido), mas como invenção, uma invenção que se baseia em pressupostos geográficos e históricos.
Adélia Borges
Aproveitando este comentário, acho interessante citar que a palavra “identidade” é definida no Dicionário Houaiss como algo que é idêntico, que permanece sempre igual. Para mim, “o que permanece sempre igual” está morto, não está mais vivo. O vivo está em eterna mudança. Mas o dicionário traz ainda outros três significados para o termo. O último deles é: “aquilo que faz com que alguma coisa ou alguém seja único”. Na minha opinião, é essa a identidade que buscamos. Penso que estamos em um mundo de produção industrial, em que precisamos cada vez mais recorrer à originalidade, no sentido de origem. Acho que cada um na sua origem tem que buscar suas coisas – não como um ponto de chegada, mas como um ponto de partida, como um chão sobre o qual pisamos e que define quem somos. Cada um monta sua história e essa que é a beleza da riqueza da diversidade.
Celaine Fosco
Apenas para finalizar, gostaria de colocar que se me pedissem para resumir a finalidade do Circuito Identidades Latinas, eu diria que, acima de tudo, trata-se de um projeto que vem da necessidade de descoberta e de construção. Obrigada a todos e boa noite.