“Quando uma cultura tem corpo, pode exercitar e trocar com outras sem correr riscos”
Ronaldo Fraga é estilista.
Você costuma dizer que virou estilista “no susto” e que nunca desejou essa carreira. Como se envolveu com a área da moda?
Nasci em Belo Horizonte há quarenta e alguns anos atrás – eu sempre esqueço. Para ser mais preciso, há quarenta e três anos atrás. Realmente, nunca pensei: “Quando crescer, vou ser estilista, vou mexer com moda”. Sempre gostei de desenhar, e numa oportunidade em que me indicaram um curso gratuito de desenho de moda no Senac, eu fui e fiz. Logo na seqüência, me foi indicado um trabalho, e eu não parei mais. Mas um lugar em que eu sempre me senti muito confortável eram as áreas relacionadas à história e cultura. Na verdade, o meu sonho era ser professor de história, pelo fato de estudar história. E por isso eu acho que, até hoje, o que eu faço a cada coleção é contar uma nova história.
O que é moda? Qual a diferença entre “fazer moda” e “fazer roupas”?
Existem poucos setores hoje tão diversos quanto o setor da moda. Em moda você fala de economia, em moda você fala de registro de um tempo, em moda você fala de história, em moda você fala de cultura, em moda você fala de inclusão ou exclusão. Mas, acima de qualquer coisa, moda, pra mim, é interpretação de texto. Esse texto pode ser o tempo em que a gente está vivendo, pode ser o texto do olhar particular de uma pessoa, pode ser o texto de uma época. Vivemos num momento muito especial da moda, e isso no mundo inteiro, porque existe, sim, essa moda dos blockbusters, da produção em série, do fast fashion, mas existe, cada vez mais, uma moda que venda mais do que roupa, uma moda que venda a cultura de um lugar, a história de um lugar, histórias de pessoas. É nesse lugar que me sinto à vontade.
Qual a importância de buscar referências na cultura brasileira e, especialmente, na cultura popular brasileira, no desenvolvimento de projetos de moda?
Poucos países têm uma cultura tão rica como o Brasil, e não tiramos nenhum proveito disso. Sofremos da falta de apropriação de uma cultura que, como poucas, teve essa mistura mágica do branco, do negro e do índio. Eu seria capaz de fazer – e é o que procuro fazer – cem, duzentas, trezentas coleções até o fim da minha vida em que eu esteja olhando para o Brasil e sempre seja uma coisa nova. Poucos países têm a música como nós temos, poucos países têm a literatura como nós temos, poucos países têm a arte contemporânea como nós temos e poucos países têm o artesanato como o artesanato brasileiro. Seja pela colonização, seja pela ditadura – mais recentemente –, acho que herdamos um problema de apropriação dessa cultura. Superar esse problema é o grande desafio. Quando fizermos isso, nossa moda vai ser a melhor do mundo, nossa comida vai ser a melhor do mundo, vamos dar um banho. Já caminhamos muito, mas acho que ainda temos muito que caminhar.
O Brasil precisa mudar a maneira de enxergar a si próprio? É preciso enxergar de dentro para fora? Esta mudança já está ocorrendo?
Acho que já evoluímos muito, sobretudo nessa década, com a valorização da marca “Brasil”. O problema é que isso sempre vem de fora para dentro. Como o momento internacional do Brasil é bom, ficamos um pouco mais confortáveis ao olhar isso, mas não deveria ser assim. Temos produtos muito bem resolvidos, como a música, o cinema e o artesanato, que demanda um envolvimento maior dos designers para que a gente tenha um produto redondo. Olhando para 20 anos atrás, é claro que evoluímos bastante na relação temos com essa cultura, hoje há todas as pessoas ligadas ao artesanato. Mas é necessária uma apropriação maior disso, sobretudo das classes de extremos, a elite dominante e a classe C, por exemplo. Ainda há problemas de apropriação dessa cultura brasileira.
Como se desenvolveu sua relação com comunidades artesanais do Brasil?
Isso começou em 2004, com a coleção Cara do Sertão, quando fui convidado para desenvolver muito mais do que os produtos, mas um projeto, ou seja, criação de marca, coordenação de produtos, conceito, algo que ultrapassasse mesmo a história do produto, para que, independentemente do designer que coordenasse, as artesãs tivessem muito claro qual era a alma daquilo que elas faziam. De lá pra cá, não parei mais. Fui um dos mentores do Talentos do Brasil, que é um projeto do Ministério do Desenvolvimento Agrário, e desenvolvi projetos em São Borja, na divisa com a Argentina, com lã e crina de cavalo, no Pantanal, com couro de peixe, na Paraíba, com bordado cheio, renda Labirinto e renda Renascença, e agora, mais recentemente, em Passira, no agreste Pernambucano, com o bordado, que foi tema da minha última coleção.
Você tem idéia de como estão essas comunidades de artesãos agora, após a realização dos projetos e de toda a exposição que elas ganharam com os desfiles?
Algumas delas realmente conseguiram, num espaço de tempo curtíssimo, reverter a sua situação econômica através da apropriação desse produto. O que me interessa são projetos de geração de emprego e renda com reafirmação cultural. Não adianta só gerar emprego e renda se você não faz com que isso também funcione como mecanismo de apropriação cultural desse lugar, pois é essa apropriação cultural que vai dar a elas uma coisa que nenhuma mudança de governo vai tirar: a auto-estima. Então é preciso que as artesãs entendam o produto e vejam ali seus ancestrais, a sua avó, a sua bisavó, a história da sua família, e entendam que, além disso, elas vão ganhar dinheiro, dar uma condição melhor para os seus filhos, viver melhor com a sua história. Esse é o grande canal. Na Paraíba, por exemplo, o projeto é muito bem sucedido, no Rio Grande do Sul também. Em Passira, já na primeira coleção, além de toda a repercussão, elas já estão com trabalho para entregar, que é o que importa, e estão se organizando. Mas claro que não é só a inclusão do design, a inclusão do conceito, tem também uma gestão de produção, uma gestão econômica. Na maioria das vezes, por não ser a minha formação, há sempre outro profissional que entra para fazer isso. Às vezes temos situações em que isso foi bem e teve um resultado bem-sucedido, outras não. Mas, em geral, o balanço que eu faço de todos esses trabalhos é que foram trabalhos de sucesso, porque você volta hoje e vê um outro cuidado, uma outra apropriação com aquilo que elas fazem. Ultrapassamos um abismo que era intransponível.
No campo que envolve o encontro entre designers/estilistas e comunidades de artesãos há relatos de experiências desastrosas. O que ocorre? Como fugir disso?
Há dois pontos que são as pernas bambas desses projetos no Brasil. Um deles é a gestão, a gestão de produção e entrega do produto. Vender não é difícil, o problema, para mim, é a gestão. E o outro é a concepção, que envolve a cultura do lugar. Não raro um designer chega e tenta impor uma experiência de pesquisa dele da última feira de Milão no interior da Paraíba. Ele passa por cima de todos os processos e todos os sinais de ancestralidade daquele local.
Em meus projetos, tenho muita certeza e muita clareza de que aquilo não é um produto “Ronaldo Fraga”, eu sou ali o “turista aprendiz” – inclusive, foi o nome da minha última coleção –, porque eu não sei fazer renda, eu estou ali aprendendo, estou trocando com elas a minha opinião e a minha visão sobre aquele processo. Mas elas têm que entender, absorver e se apropriar também desse conhecimento, porque eu preciso ir embora e elas precisam continuar fazendo.
Muitas vezes, o que a gente vê são projetos que tiram a magia e deixam uma coisa totalmente plana, sem brilho, procurando um caminho extremamente comercial. Me incomodava muito chegar, por exemplo, no interior da Paraíba e encontrar coleções desenvolvidas com lycra. “Ah, lycra vende”. Vende para o Bom Retiro. Eles deveriam estar vendendo outra coisa. O melhor algodão do Brasil era plantado ali, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, então, independente da estação, é uma cultura que fala com fibras naturais, que tem um bom linho, um bom algodão. Acho que tem muito disso.
Estamos todos aprendendo muito, mas acho que as escolas de design e de moda no Brasil ainda não se envolveram muito com esses lugares. Meu sonho é que, um dia, as escolas de moda usem o próprio Brasil – por ser um país continental – como um espaço de intercâmbio e desenvolvimento de pesquisas nesse campo. Um estudante de moda lá de Caxias do Sul poderia desenvolver um projeto em Recife, e um de Recife no Sul. Todos ganhariam com isso, refinaríamos esse olhar e essa linguagem.
Como conciliar o ritmo da moda, que exige novas coleções em curtíssimos espaços de tempo, e a lógica do fazer artesanal, muito mais lenta?
É preciso informar-se. Olha quanto tempo leva para uma trufa branca nascer no interior da Itália, olha o tempo de preparação de determinadas comidas. O valor delas está justamente nisso. No caso do artesanato, falta muito essa comunicação. Se você quer um bordado rápido, faça à máquina, que também tem resultados muito bons. Mas se você informa na peça que por trás de cada ponto tem história, tem gente, tem um lugar maravilhoso, tem um céu de estrelas, então o cliente está comprando muito mais que uma peça bordada, e aí a coisa muda de figura.
Eu adoro contar a história de como a renda Renascença chegou ao Brasil. É uma história maravilhosa, quase um épico. A renda Renascença nasceu em Florença (Firenze), na Itália. A filha de uma família muito rica, quando tinha 16 anos, se apaixonou por um rapaz de uma família rival. Ela era filha única, e o pai pegou todo o dote, deu para a igreja e disse: “Resolve esse problema”. A igreja mandou a menina para um convento em Olinda, e ali ela viveu enclausurada até quase 90 anos, quando morreu. Em seus últimos 20 anos de vida, quem cuidava dela era uma paraibana. Quando ela morreu, essa paraibana voltou para a casa, mas antes passou em Pesqueira (PE) para visitar as primas, e ensinou o ofício e os pontos. Depois foi para Monteiro (PB), onde morava a família dela, e também ensinou para as pessoas dali até a morte. São os dois grandes pontos de renda Renascença no Brasil. Quando você leva essa informação numa tag, num release, numa coleção, você projeta essa peça para um outro lugar. Então essa peça tem que ser cara, tem o tempo da espera, dessa preparação. Senão eu te digo: a China tem feito bordados à máquina que você jura que foi à mão, vai para lá fazer.
Uma característica quase sempre presente em projetos desse tipo é a presença de pessoas “de fora”. Na coleção Cara do Sertão, uma coisa das referências utilizadas por você foi o céu estrelado da região. O fato de você ser uma pessoa de fora, com um olhar “não acostumado”, facilitou a percepção destes elementos locais? A presença de alguém de fora nesses projetos é recomendável?
Acho que há duas coisas aí. Uma delas eu já disse, que é o nosso problema de apropriação. Quando o estrangeiro chega e olha, ele valoriza um balaio feito com trama jogado no fundo da cozinha daquela querida que está assando os biscoitos. Normalmente, aquilo, para ela, é simplesmente um balaio para poder colocar as batatas. Outra coisa é que o dia a dia joga uma névoa sobre o nosso olhar, então você não presta muita atenção. Se você for ao Japão, as cerejeiras em flor vão te trazer um alumbramento que provavelmente não traz àquele cara que passa de bicicleta todos os dias para ir trabalhar numa rua toda coberta de cerejeiras em flor. Daí a importância dessa viagem, dessa troca de olhares e estímulos, de ser estimulado também pelo olhar do outro.
O ponto de inspiração dessa última coleção que eu chamei de “Turista Aprendiz” foi o livro do Mário de Andrade com o mesmo nome. Mário de Andrade já falava disso em 1922, da importância dos formadores de opinião, da intelectualidade paulista da época de conhecer e abraçar o país, de se apropriar e tentar estabelecer outros diálogos, de projetar esse país para um cenário urbano e vice-versa. Quando há essa troca, a cultura deixa de ser estanque. E quando uma cultura tem corpo, pode exercitar e trocar com outras sem correr riscos. Acho isso muito importante.
Hoje eu sou bem recebido nos lugares. Mas me lembro que em projetos que eu ia fazer em determinadas cidades, os estilistas do lugar iam às instituições e falavam: “Por que estão trazendo esse mineiro se aqui tem estilistas tão bons?”. Eu respondia: “Gente, ótimo, então vão lá para a minha terra fazer, porque provavelmente coisas que vão alumbrar o seu olhar já nem me alumbram tanto assim”. Acho que isso é saudável.
Em seus projetos, além de aproveitar as técnicas artesanais e os aspectos da ancestralidade e tradição cultural das comunidades de artesãos há espaço para que elas também participem do processo de criação das peças?
É um erro esperar que o artesão vá se tornar um designer ou um estilista. Pode ser que sim, pode ser que não. Pode ser que aquela criança de três anos que está ali atenta, prestando atenção em tudo o que você fala com os pais dela – eu vejo muito isso –, no futuro, venha se tornar designer. Mas eu acho que não tem que ter essa pressão. Às vezes um erro de um ponto ou uma cor que elas não entenderam e colocaram outra vai me dar um produto muito mais bonito do que o que eu imaginava. Isso é super saudável. Mas há que se ter certo cuidado com essa expectativa de que haja uma criação ali, local. Uma coisa é ter respeito e preservar a ancestralidade dessas pessoas, desse trabalho, e outra é entender que, como designer, você está ali para desenvolver um produto que provoque desejo e que é crescente a essa ancestralidade. Essa é que é a história.
Ainda a respeito do projeto desenvolvido em Salinas, você montou a coleção de pijamas “Noites do Sertão”. Nestes pijamas, havia desenhos de Santo Antônio, o que provocou estranhamento na cabeça das artesãs. Para elas, era difícil aceitar a idéia de dormir com o santo...
Hoje, noventa por cento da cidade é evangélica, nem católicos eles são mais, é pior ainda.
Como você lidou com essa questão? Não é delicado mexer com a cosmovisão daquela população?
Existia certo fascínio delas por todo o processo. E eu tive conhecimento dessas questões mais tarde, quando já estava tudo pronto. Depois, com mais intimidade, elas me viam e diziam: “Realmente, Santo Antônio era o padroeiro da cidade, mas isso tinha certa importância há trinta anos, hoje não tem mais, porque a cidade se tornou evangélica”. É uma cidade com mais igrejas evangélicas do que igrejas católicas. Eu perguntei: “E por que vocês não me disseram isso?”. Elas responderam: “Porque você nos vendeu esse produto muito bem vendido, então resolvemos arriscar e deu super certo”. Na coleção, havia o Santo Antonio nos “pijamas para casar” e o anjo da guarda nos “pijamas para proteger”. E elas sabiam, elas falavam: “A gente tinha a certeza de que, antes de qualquer coisa, esse produto ia seduzir e vender em outros lugares que não na nossa própria cidade”. Foi mágico isso, porque não foi uma coisa que eu impus, de forma alguma. Se eu soubesse disso, não teria nem sugerido, mas o fato foi que elas aceitaram e pagaram para ver. Graças a deus, deu tudo certo.
Ao longo de seu trabalho, como foi a receptividade de peças desenvolvidas junto a comunidades de artesãos em públicos como o da São Paulo Fashion Week, acostumado a outro tipo de moda?
Meu primeiro desfile foi em 1996, no Phytoervas Fashion, depois passei para a Semana de Moda e, finalmente, em 2001, passei a ingressar o São Paulo Fashion Week, quando ele deixou de ser o Morumbi Fashion e passou a se chamar São Paulo Fashion Week. Desde o início, o feito à mão sempre ocupou um lugar de importância nos meus desfiles. Independente de estar na moda ou não, sempre insisti na importância da construção de uma vocação para o produto brasileiro pelo viés do feito à mão. Então sempre existiu um respeito da crítica em torno disso, e as pessoas sempre esperam essa minha relação – “Que projeto ele está desenvolvendo agora? Qual vai ser o resultado?”, é o que as pessoas me perguntam antes de qualquer coisa. No início, taxaram o meu trabalho de moda “regionalista”, “teatral”, “caricata”, “brasileirinha”, de forma extremamente pejorativa. E, de repente, o Brasil entrou na moda. Aí eu vi grandes marcas de produção industrial tentando fazer aquilo que eu sempre tinha feito. Hoje, vivo uma situação muito confortável, mas, para mim, falar do Brasil não é algo que esteja na moda. Eu espero que não entre. Toda vez que o Brasil entra na moda, eu falo: “Tomara que saia logo”. Porque tudo o que entra, sai. Romper essas barreiras intransponíveis entre o design e o artesanato é uma necessidade urgente da cultura brasileira. Não é só para agora.
Na busca pelos ícones culturais do Brasil, muitas vezes o que se vê é a representação daquilo que é mais óbvio, como a bandeira, o mapa, as cores verde e amarelo...
As araras, tem muita arara.
Exatamente. Como fugir disso e captar o “espírito do lugar”? O que pode ser aproveitado na construção de uma moda local?
Se você olhar as minhas coleções – eu completei a trigésima este ano –, vai ver que eu falei da Pina Bausch – a coreógrafa alemã foi o grande objeto de pesquisa –, vai ver minha versão da Disneylândia, que era a América Latina, vai ver Louise Bourgeois, vai ver Rute e Salomão, uma coleção que fala de um judeu ortodoxo e uma cristã-nova, a China etc. Eu trabalho temas e pesquiso lugares ou situações que me emocionam de alguma forma, mas sob a minha ótica de brasileiro, trabalhando com o meu playground, aquilo que, para mim, é muito caro para a nossa cultura. Quando eu pego um desses temas, a obra de Pina Bausch, por exemplo, e desenvolvo com as minhas artesãs, é até uma forma de trazer essa informação para elas. O que é nosso? O que é nosso e nenhum outro país têm? O nosso humor é uma coisa; nossa relação com a tragédia e a comédia também; nossa relação com a paixão é muito própria, totalmente diferente de um argentino ou de um francês. Quando você faz essa leitura nas entrelinhas dessas situações, você começa a entender cada povo, a diferença sutil de cada um deles. É sutil, mas drástica. Tem essa iconografia fácil, para o mundo entender – o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, a arara, o carnaval –, mas a gente sabe que o Brasil é mais do que isso. Eu adoro pensar por outro lado, por um caminho menos óbvio, e entender a essência. O que me faz diferente de outro povo? Minha referência cultural. Então preciso entender melhor essa referência.