Você é uma das maiores pesquisadoras de cerâmica no Brasil, com dois doutorados e um pós-doutorado sobre o tema. Além disso, é autora de vários livros e artigos sobre cerâmica, editados em vários países, colecionadora com mais de 2.500 obras e professora no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. De onde vem seu interesse pelas artes plásticas, pela cerâmica e como se desenvolveu sua trajetória nessa área?
A minha formação acadêmica inicial foi em Psicologia, onde estudei em Brasília. Contudo, na década de 1970, fui para os Estados Unidos fazer um curso de arte-terapia aplicado à psicologia e, felizmente, a primeira aula ministrada foi sobre cerâmica. Desde então, fiquei apaixonada pela temática e me surpreendi por nunca ter estudado nada sobre a questão até aquele período.
Portanto, a partir daquele momento, eu comecei do zero. Fui fazer Bacharelado em Artes com especialização em cerâmica na Universidade de Washington, e depois continuei as minhas investigações realizando o mestrado, o doutorado e o pós-doutorado na área de cerâmica.
Por isso, posso dizer que a minha relação com o tema deu-se por meio de uma paixão. Parecia que a cerâmica estava no meu DNA e que eu precisava procurar mais dados sobre a sua produção. Assim, entrei a fundo nas investigações, tanto no campo teórico como também no fazer artístico, aprendendo diversas técnicas de se trabalhar com o barro. Cheguei inclusive a ir para a Ásia, onde fiquei por um ano no Japão e na Coreia do Sul realizando pesquisas. Porém, parecia que quanto mais eu investigava, mais eu não sabia nada. A abordagem do tema é infinita.
Nesse momento também descobri que nos Estados Unidos, desde os anos iniciais da Educação Infantil, é obrigatório o ensino da cerâmica nas escolas. No país toda grande universidade possui seu programa de mestrado e doutorado em cerâmica. E eu pensei: por que é que no Brasil o mesmo não ocorre? Por fim, passei a acreditar que isso ocorre pelo fato da cerâmica estar ainda muito próxima da vivência do brasileiro. Quando você vai para o interior, por exemplo, sempre encontra a panela de barro – ela faz parte do dia a dia das comunidades. Nos Estados Unidos, pelo fato das produções tradicionais da cerâmica já terem sido encerradas, eles começaram a buscar as suas origens. Então, eles começaram a aplicar isso em estudos e pesquisas para resgatar o que foi perdido. No Brasil este processo ainda é muito reduzido. Esse foi um dos motivos para que, depois de quase dezoito anos nos Estados Unidos, eu voltasse para o Brasil e investisse na pesquisa em cerâmica.
Na minha opinião, se você não abre pesquisa para uma área, você não cria novos alunos. A academia é fundamental para a preservação de memorias. A preservação dos saberes tradicionais só se perdura com publicações. Então, enquanto acadêmicos, esta é a nossa responsabilidade: preservar memórias.
Quando estava nos Estados Unidos, lecionando na Universidade de Berkeley, pensava: eu aqui não sou importante do ponto de vista da pesquisa. Aqui já existem muitos pesquisadores sobre o tema. Mas eu poderia colaborar mais se eu voltar para o Brasil, mesmo não sendo fácil publicar e conseguir verba para pesquisas. É no Brasil que deveria estar o foco da minha pesquisa. A cerâmica brasileira e latino-americana possui uma riqueza incrível. E pela extensão do Brasil, é muito difícil fazer o levantamento de tudo o que há no território. Então, a pesquisa é meu maior enfoque, sempre procurando divulgá-la.
Quais são os principais cursos universitários sobre cerâmica no Brasil?
Tem o curso de bacharelado em arte cerâmica da Universidade Federal de São João del Rei, em Minas Gerais. O Rogério Godói, um dos responsáveis por este bacharelado, me propôs a criação do curso e, portanto, auxiliei desde a elaboração das ementas do programa até a contratação dos professores. Este curso tem uma característica única no Brasil, pois todas as disciplinas são realmente sobre arte cerâmica. O programa conta com professores especializados em esmaltação, tornos, construção de fornos, esmaltes, características químicas, a história da cerâmica. No total são oito docentes. Mas existe também o curso de bacharelado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul que é exclusivamente de cerâmica, que possui aproximadamente onze professores da área. São os dois únicos cursos de graduação em cerâmica no Brasil.
No âmbito da pós graduação nós temos outros cursos, como o mestrado e doutorado em cerâmica da USP e da Unesp – que, inclusive, foram os primeiros a serem criados na área, se não me engano.
Durante as pesquisas desenvolvidas para a exposição Cerâmicas do Brasil, percebemos que a produção de cerâmica no Brasil é caracterizada, por exemplo, pela diversidade na aplicação dos usos, formas e técnicas de trabalho com o barro. Nesse sentido, quais são as características, valores e manifestações que despertaram o seu interesse pela produção de cerâmica no Brasil?
A cerâmica brasileira e latino-americana é como todas as outras que surgiram na história: elas passaram por etapas. A primeira geralmente envolve formas que imitam as sementes duras da natureza, como a semente da cuia e da sapucaia. Elas imitam essas formas para reproduzir suas peças.
As primeiras formas são as utilitárias, usadas para servir água e para comer os alimentos. Partindo daí vem as peças ritualísticas, geralmente mais elaboradas. Nós temos esse exemplo na cerâmica tapajônica, marajoara, com ornamentos lindíssimos. E no Brasil nós temos praticamente só uma comunidade indígena que trabalha o figurativo, que são os índios Carajás.
Nós não temos no contexto brasileiro uma cerâmica figurativa que mostra a figura humana. As cerâmicas tapajônicas e marajoara têm elementos da figura humana aplicados à forma do vaso, mas não a escultura em si da figura humana. Ela está muito associada à figura do vaso. E o container é constituído para conter o líquido amniótico da mulher, o útero, além de ser o pote que serve a água, que serve a comida. Vejo muito esta cerâmica como uma deusa da fertilidade, aquela que produz o objeto para alimentar e que ao mesmo tempo pare uma figura para o mundo, aquela do container do pote.
As peças da Dona Isabel, do Vale do Jequitinhonha, são interessantíssimas também porque elas representam figuras de mulher, de 1m a 1m20s. Mas a peça é um pote – ou seja, é oca por dentro. É raríssimo alguém no mundo fazer uma escultura que seja oca. As do Vale, ao repetir a forma de um pote, acabam por ser vazias e escultóricas.
Nesse sentido, observo que a cerâmica brasileira, pela diversidade de culturas que passaram por aqui – o índio, o negro, o português – passou por um processo relevante de mistura. Assim, a variação da nossa produção nacional de cerâmica acaba sendo infinita, praticamente. Temos a cerâmica do norte da Amazônia, extremamente forte na forma do pote; as peças do Povo Suruí, expostas no museu A CASA e que trazem uma simplicidade, um minimalismo e um design surpreendente; e também as peças dos Asurinis, também da Amazônia, que já tem um grafismo belíssimo; e, por fim, temos também a produção do Vale do Jequitinhonha, das Paneleiras do Espírito Santo, e muitas outras.
E você só consegue garantir a persistência dessas produções quando você pesquisa e publica. Numa comunidade indígena ou popular, a comunidade só insiste em fazer aquela peça se o produto vende no mercado. E para ela vender, precisa ocorrer o escoamento daquele produto. E isso não vai ocorrer se o resto do Brasil não sabe que ela existe, entende? Daí surge a necessidade da pesquisa e publicação nessa área.
Atualmente você desenvolve a sua pesquisa de pós-doutorado em artes pela Universidade de Lisboa, em Portugal, investigando alguns vestígios e memórias lusas aplicadas na arte brasileira. Durante o desenvolvimento desta pesquisa, quais foram as principais relações já encontradas entre as cerâmicas portuguesa e brasileira?
Para minha surpresa, para conseguir descobrir maiores informações sobre a cerâmica de Portugal, tive que descer para o Marrocos, no norte da África. Foi a partir dali que surgiu um ciclo que percorreu a Espanha, Portugal, e depois chegou ao Brasil. Todos os alguidares que existem na Bahia, que são geralmente utilizados nos rituais da umbanda, da macumba e nas oferendas que se colocam em cruzamentos de ruas, vieram do norte da África – passou via Portugal e veio para o Brasil.
Mas o meu interesse principal era mais na cerâmica popular. E foi aí que eu fiquei mais surpresa: muito do que eu descobri das figurações das cerâmicas de Barcelos e de Estremoz, que são bem coloridas, tiveram origem com as Figureiras de Taubaté, em São Paulo. Toda aquela tradição das flores e dos presépios de Natal foram levadas por portugueses que estiveram no Brasil e depois retornaram. As representações de “O amor é cego”, “A Primavera”, que são bem floridas e com cores bem vibrantes, sofreram influência da produção realizada em Taubaté. Num primeiro momento eu pensei que fosse o inverso, que essa tradição tivesse vindo de Portugal para o Brasil, mas durante as investigações percebi que o intercâmbio ocorreu do Brasil para Portugal.
E outro caso bem interessante é o do
Antônio Poteiro, um ceramista e escultor português que veio para o Brasil, onde morou em Goiás e que, infelizmente, morreu há alguns anos. Ele é um ceramista que eu admiro muito. Ele também diz que a obra dele sofreu grande influência da arte brasileira.
Quando fui para Portugal para o meu pós-doutorado, primeiro senti que precisava descobrir o que é que tinha naquele país de cerâmica popular, porque de cerâmica contemporânea existem muitos artistas eruditos que foram para a universidade, que estudaram e que agora estão desenvolvendo trabalhos. Agora, sobre o artista popular mesmo, nós não sabíamos nada. Então, em 2011, que foi o ano de Portugal no Brasil, nós trouxemos uma belíssima exposição de cerâmica portuguesa para o Brasil. Expomos um artista bem contemporâneo, um bem tradicional e a outra que misturava um pouco esses elementos, para mostrar para o brasileiro um pouco da produção cerâmica portuguesa.
Nesse sentido, imagino que o mais importante para vermos nessa pesquisa é que o norte da África possui uma influência extremamente forte sobre a cerâmica portuguesa. E que existe sim uma ida do Brasil para Portugal que misturou alguns dos elementos da tradição ceramista portuguesa com o vigor das cores e com a questão da floresta, que para eles é um enigma muito grande. Dessa forma, esse tropicalismo das nossas peças acabou indo para lá, onde eles exageraram no uso das flores e na representação do amor, mas com trabalhos muito conectados com a cultura portuguesa. Espero ter uma publicação mostrando aspectos desse vai e volta da arte, também levando em conta que o popular no Brasil é diferente do popular europeu.
E no Marrocos, onde fui para as montanhas Atlas, conheci as mulheres berberes, que pintam um grafismo no rosto e depois pintam os mesmos padrões na panela. Eu fiquei absolutamente fascinada com essa cerâmica. A cerâmica dos povos do deserto do Saara também é interessante; encontrei uns potes belíssimos na região.
Contudo, sinto que ainda há muita coisa para se pesquisar. Como essas tradições chegaram ao Brasil? Por quê? Ele era usado em quê? Eu, por exemplo, descobri que os alguidares, que nós usamos ainda hoje – em qualquer loja de macumba que você for é possível encontrar – eram originalmente bacias, porque não existia plástico e alumínio. E o tipo dessas obras foi mudando com o passar dos anos, mas elas perduram.
Se você pensar bem, verá que a cerâmica é uma das primeiras obras do homem – ou, para ser mais preciso, de uma mulher, porque o ato de trabalhar com a cerâmica sempre foi associado ao feminino, dado que ela ficava em casa, próxima das crianças e do fogo, e portanto poderia trabalhar com essas peças.
Em sua segunda tese de doutorado, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP), você analisou, especificamente, aspectos da produção em cerâmica no Brasil e no Paraguai. Quais foram as principais semelhanças e diferenças encontradas no trabalho com o barro nesses dois países?
O PROLAM, que é um programa de estudos sobre a América Latina, exige que se faça uma comparação entre dois países latino americanos. Alguns países, como Peru e México, já eram muito conhecidos, então resolvi escolher o Paraguai, que é um país fascinante quanto à produção e preservação da sua cerâmica através do Museu do Barro, em Assunção. Este é um dos museus mais bonitos e mais organizados que eu já vi, e que tem uma função extrema de preservar os saberes cerâmicos do país porque as novas ceramistas vão ao museu para observar as peças que seus avós e bisavós faziam, com o intuito de resgatar essas memorias.
No Brasil concentrei minha análise no Vale do Jequitinhonha. Assim, entre a produção brasileira e paraguaia, pude constatar que as duas cerâmicas são feitas por mulheres e que normalmente elas não têm marido. No Vale do Jequitinhonha, por conta da seca absurda – principalmente na década de 1970 – muitos homens foram para o plantio de cana no norte de São Paulo ou para a construção civil nas grandes cidades. Essas mulheres, portanto, tornam-se no arrimo da família, criando seus filhos sozinhas. Não tem um homem com mais de doze anos morando na comunidade. E no Paraguai perdurou um grande problema durante o período da Guerra da Tríplice Aliança, onde grande parte dos homens morreram. Assim, essas mulheres também criaram seus filhos sozinhas, muitas vezes utilizando a cerâmica para conseguir aumentar a renda da família.
Os temas trabalhados na cerâmica também são os mesmos nos dois grupos: a mulher, o filho, o casamento - que é o objeto de desejo das mulheres, ou os animais que circundam o ambiente. E são comunidades onde a mulher vive ao redor do fogo. Isso é muito interessante. Elas nunca saem ou vão a outro lugar porque estão a todo tempo produzindo, buscando o barro, triturando-o e confeccionando as suas peças.
Em relação às diferenças, no Vale do Jequitinhonha nota-se que elas trabalham a figura humana em oxidação; entra bastante oxigênio dentro do forno para expulsar o gás carbônico. As peças são puras e limpinhas, sem manchas pretas. Já no Paraguai o objetivo é a carbonização, tanto que elas chamam as peças de fumigado. A beleza da peça vem do negro. Quanto mais negra, mais belo. Se restar uma manchinha do barro, elas voltam e carbonizam aquele local.
A estética da obra também é diferente entre as duas comunidades. No Vale do Jequitinhonha as artesãs sempre miram a proporção ideal do rosto, o olho azul, a pele branquinha e os vestidos de florzinhas com babadinhos. As bonecas estão sempre vestidas, como diz a Dona Isabel, em “roupa de domingo”. Elas nunca são mostradas feias, sujas, pobres, mas sempre em roupas limpas. Tanto é que o designer de moda, Ronaldo Fraga, desenvolveu toda uma coleção inspirada nos vestidinhos de boneca de Dona Isabel. Ela foi homenageada e esteve na primeira fila do São Paulo Fashion Week, inclusive.
Já no Paraguai, as bonecas são nuas, negras, com o pé no chão e órgãos genitais mostrando. E também são imensas, com aproximadamente um metro e meio. É uma escultura bem tradicional da América Central, da Mesoamérica e dos Maias. E elas fazem isso sem nunca ter lido um livro. Tanto é que, quando eu vi pela primeira vez aquelas peças rotundas, gordas e pé no chão, eu falei para a ceramista Ediltrudes Noguera: “Nossa, suas obras me lembram Fernando Botero”. Ela disse: “Sim, sim. Disseram que tem alguém copiando o meu trabalho”. Contudo, estas peças paraguaias vieram do inconsciente coletivo dos indígenas americanos que passaram por várias gerações. Mas Botero é um erudito que pesquisou suas origens para criar suas obras. Ele disse que toda a vida foi encantado com a estética da fartura que existe nas esculturas da América Central. Os cachorros eram gordos. As figuras eram gordas, bem saudáveis. Então, ele foi pesquisar para produzir as suas famosas obras de mulheres gordas. Mas Ediltrudes não. Ela se baseia nesse inconsciente coletivo que foi passando de geração em geração e chegou nas suas obras.
E no Paraguai, por exemplo, o forno utilizado para as queimas chama-se tataquá, que tem o formato idêntico a de um iglu (é parecido com um forno de pizza). O forno só tem uma boca e não possui porta, o que o torna mais fascinante. Agora, esse forno chegou ao Paraguai com o colonizador espanhol, mas a ceramista foi adaptando-o para queimar as suas obras. E um detalhe interessante é que os fornos são bem menores que as peças, então ela põe uma metade da peça para dentro até o pé, queima, tira, e depois põe a cabeça. Já no Vale do Jequitinhonha os fornos chegaram com os portugueses, vindos da Mesopotâmia, que hoje em dia são os mesmos usados por Dona Isabel no Vale do Jequitinhonha e que a Dona Irineia, lá de Alagoas, utiliza para fazer as suas cabeças. Esses fornos foram adaptados pelo Brasil inteiro.
Sobre esse aspecto da queima e dos fornos, Lévi-Strauss tem um livro lindíssimo que se chama A Oleira Ciumenta. É um livro que fala sobre as três Américas (do Norte, Central e do Sul), analisando o ciúme do conhecimento das ceramistas através de uma perspectiva antropológica. E nesta obra ele menciona que uma das coisas que mais se preserva e que mais se tenta segurar ou esconder numa comunidade ceramista é o modo como ocorre o processo da queima. Afinal, você pode fazer peças durante um ano todo, mas se não fizer a queima bem feita, as peças estouram dentro do forno e se perde toda a produção.
Então, esses são os pontos de encontro e de desencontro das comunidades analisadas na minha pesquisa. As duas são extremamente diferentes esteticamente, mas quando você olha uma cerâmica do Vale do Jequitinhonha e uma cerâmica do Paraguai, mais ao fundo, percebe que as duas vêm de um mesmo lugar: de mulheres que foram buscar suas raízes, que foram buscar suas técnicas de tradição.
Fazer esse tipo de pesquisa é muito interessante, porque, quando você começa, logo vê que só descobriu um milésimo de tudo o que realmente ocorre. É por isso que surge a necessidade de sempre voltar para o local e fazer novas documentações. É necessário observar a próxima geração e verificar o que ela continua fazendo – o que ela adaptou da nova “moda” do momento, ou o que que ela preservou dos seus antepassados. Essas pesquisas simplesmente me fascinam.
Na mesma tese de doutorado, você menciona a importância da existência do apoio a entidades que defendem o artesanato e cultura popular – como o Museu do Barro, no Paraguai, por exemplo. No Brasil existem instituições ou museus que desenvolvem um papel semelhante na valorização e preservação da cerâmica nacional?
Aqui no Brasil nós temos o Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro, que é um espaço maravilhoso e fascinante. Contudo, tudo começou por um colecionador particular e estrangeiro que tinha paixão pela arte popular. No mesmo sentido, temos o Museu do Memorial da América Latina, com o Pavilhão da Criatividade, constituído pela Maureen e pelo Jacques Bisilliat, também dois estrangeiros. Algo semelhante ocorre no Museu Emílio Goeldi, em Belém do Pará. Assim, imagino que o olhar do estrangeiro, que chega e vê novidade em tudo, acaba por valorizar coisas que nós, por vermos aquilo todos os dias, não damos a devida atenção ou valorização. Ainda mencionando algumas instituições, há o Museu do Barro de Caruaru, que é bem pequeno, mas tem as obras de Mestre Vitalino e de outros importantes ceramistas da região.
Porém, precisamos relembrar que grande parte destas instituições partiram não de uma iniciativa do governo em resgatar tradições, mas surgiram por interesses particulares de colecionadores que tinham paixão por um tema e, por isso, montaram as suas coleções com seus próprios recursos, muitas vezes passando dificuldades para mantê-la e preservá-la.
O Brasil, infelizmente, não tem tradição em criar museus ou políticas públicas para preservar as memórias. Eu, por exemplo, morei um ano no Japão trabalhando com os mestres ceramistas e fiquei maravilhada com a remuneração que esses artistas e artesãos recebem para poder viver com dignidade. Todos os meses eles recebem um salário do governo, e mesmo assim eles não são obrigados a produzir – pois, afinal, eles são considerados “lendas vivas”. Esta é uma iniciativa muito importante para se preservar os saberes e fazeres daquela pessoa, porque além do salário existe a preocupação em publicar catálogos sobre aquela produção e também de realizar exposições em vários locais para preservar e divulgar a memória daquelas pessoas. O Brasil, com exceção de algumas iniciativas desenvolvidas por um número reduzido de estados, não tem a tradição de resguardar o seu patrimônio vivo.
Por 45 anos, no meu caso, estou colecionando cerâmicas. Gasto o que tenho, o que não tenho e o que ainda irei ganhar com esses objetos. E o forte do meu trabalho é o popular, concentrando minhas aquisições em trabalhos indígenas e populares. Como ainda não tenho muito espaço para o acervo, nem posso aceitar as obras ofertadas por artistas eruditos e contemporâneos.
É obvio que quando vou realizar uma pesquisa num determinado local, fico mais exposta com aquela comunidade e acabo adquirindo mais peças. Fiquei durante sete anos no Vale do Jequitinhonha pesquisando, por exemplo, então posso afirmar que a maior parte da minha coleção veio daquela região. Tenho peças de várias gerações, pegando obras da avó, da mãe, da filha. Espero que eu ainda viva para pegar da neta. Tenho algumas do Paraguai também, mas que são difíceis de manusear e armazenar porque cada escultura tem mais ou menos um metro e meio. E da Amazônia tenho muitas peças também.
Assim, atualmente possuo uma coleção de aproximadamente 3000 peças. E o meu objetivo é doar todo esse acervo para pesquisa. Gostaria muito que tudo ficasse na Unesp, pois já estou há 25 anos na universidade. Eu inclusive já manifestei o meu interesse por essa doação, mas a Unesp não se organiza para receber. Atualmente há até uma aluna do doutorado que está catalogando todas as peças da minha coleção, então a universidade já receberia a coleção catalogada, cada obra com o histórico de onde veio, quando foi produzida, a história da ceramista, que tipo de forno essa peça foi queimada, qual o tipo de coloração e pigmento foi usado, etc. A coleção possui também mais de cinco mil livros de cerâmica do mundo inteiro e um arquivo de vinte mil slides e fotografias. Mas o processo de doação tem sido difícil. Um museu nos Estados Unidos já mandou três curadores para comprar essa coleção, mas na verdade ela nunca foi feita para ser vendida.
Hoje em dia a coleção existe fisicamente, mas não está aberta ao público – o que é uma pena, porque eu queria que ela ficasse associada a uma universidade e a um centro de pesquisa. Então, essa é a minha grande preocupação: criar segmentos para a pesquisa, auxiliando meus alunos a produzir e publicar cada vez mais. Recentemente eu participei da banca de uma aluna de mestrado da Universidade Federal da Bahia sobre a cerâmica de Maragogipinho e fiquei extremamente fascinada com o trabalho. Você vê que tem gente publicando, defendendo a dissertação de mestrado e tese de doutorado, mas essas obras não estão nas livrarias. Por quê? Porque não há um interesse das editoras em publicar. Na minha opinião deveria ter um segmento só para publicar trabalhos sobre a área da cerâmica. O que eu compro de livro sobre cerâmica do México e cerâmica da Índia nos EUA, por exemplo, é uma coisa absurda. E por aqui nós temos coisas tão lindas, mas que não estão sendo publicadas.
Você também já desenvolveu alguns estudos sobre a arte do barro em outros países da América Latina. Na sua opinião, em qual medida a cerâmica brasileira está conectada com outras produções semelhantes no contexto latino americano?
A conexão é muito pequena, como em quase tudo. Creio que o Brasil, por falar português e ser muito grande, se isolou um pouquinho dos outros países latino americanos. Como forma de contornar essa situação nós criamos na Unesp, em parceria com a cidade de Cunha, em São Paulo, o ICCC – Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha. Cunha é um dos principais centros de artistas ceramistas no Brasil. Neste município é possível encontrar muita cerâmica de origem japonesa, que utiliza os fornos noborigama de altíssima temperatura.
Então, desde 2011, o Instituto de artes da Unesp e o ICCC trabalham em parceria para promover, fomentar e divulgar a produção cerâmica. Uma das iniciativas que temos desenvolvido é a realização do Seminário Internacional para a Preservação da Cerâmica. O evento está na sua quinta edição e já foi realizado em Cunha-SP, São João del Rei-MG e em Bogota-Colômbia – provavelmente o sexto será no Peru. Com esse seminário nós buscamos reunir uma série de trabalhos escritos produzidos sobre o tema e também apresentar para o público elementos da produção em cerâmica de outros países da América Latina. Para isso convidamos muitos professores e especialistas da Argentina, do Chile, do Peru, do México e do Paraguai para participar do evento.
O Seminário busca conectar a cerâmica com a educação, com o intuito de em breve apresentar um projeto ao Ministério da Educação onde propomos a criação de um programa para implantar nas escolas o ensino obrigatório da cerâmica desde os primeiros anos do ensino básico até a Universidade. Na Europa e nos Estados Unidos desde a pré-escola a criança já aprende a fazer cerâmica, sendo todas as escolas equipadas com fornos e com professores preparados para ensinar este ofício. E se o MEC criar a disciplina “cerâmica” como obrigatória para o ensino básico, você acaba por incentivar a geração de mais programas de pesquisa nas universidades sobre a temática do trabalho com o barro.
Atualmente tem crescido no Brasil o número de projetos que buscam trabalhar a relação entre o design e o artesanato nacional. O mesmo processo tem ocorrido com comunidades que trabalham com o barro? Caso sim, como você avaliaria essas interações no caso da produção contemporânea e popular da cerâmica brasileira? Poderia mencionar aspectos positivos e negativos destes projetos?
É interessante você fazer essa pergunta porque recentemente, nesse seminário em São João Del Rey, um dos criadores do programa de artes aplicadas em cerâmica lá da universidade, o Rogério Godoy, mostrou um forno que ele gostaria de levar para o Vale do Jequitinhonha com o intuito aumentar a temperatura de queima das peças – já que na região o barro é normalmente queimado em baixíssimas temperaturas – para melhorar a venda desses produtos, criando um design mais contemporâneo.
Após a apresentação dessa ideia houve um debate muito forte sobre a questão. Eu acredito, e muita gente lá também estava de acordo, que você não deve mexer em comunidades que há séculos seguem alguma tradição. O nosso papel, portanto, seria o de preservar aquilo que já existe e de ofertar condições dignas de vida para que aqueles artesãos continuem desenvolvendo o seu trabalho. Agora, você pode sim implantar novas tecnologias, novos designs, novos fornos, mas em comunidades que não têm essa tradição. Na minha opinião não devemos mexer naquele grupo que já produz alguma coisa tradicional.
Então, só dando um exemplo, o Rogério construiu um forno lá para Dona Isabel, que é a ceramista mais tradicional do Vale do Jequitinhonha, e aí, depois de um tempo, eu perguntei a ela sobre o forno e ela disse: “Ah, aquilo ali não presta não. Virou um ninho de galinha muito bom”. E isso ocorreu porque ela queima o barro a baixíssima temperatura, num forno pequeno que cabe duas ou três peças e que gasta menos lenha. Elas não produzem em fornos comunitários. Cada mulher tem seu forninho no fundo do quintal, como no Paraguai. Desse modo, se você faz um forno grande, que possa atrair a comunidade, cada mulher vai depender de mais lenha para encher aquele forno, de ativar a comunidade inteira para produzir no mesmo ritmo dela.
Assim, não mexa onde está funcionando, porque elas não vão aceitar essa interferência. Até porque se você elevar a temperatura, por exemplo, o engobe que elas passam na peça, chamado de terra sigillata, ficará opaco se a temperatura for superior a 850º C. Então, o que era um rosado vai ficar vermelho, seco. Além disso, o processo de transformação das peças é milenar. Novos elementos serão introduzidos por toda a comunidade depois de 10 ou 20 anos desde quando a primeira artesã resolveu inovar.
Tendo a ser muito crítica em relação a essas propostas de mudança, ainda mais porque trabalhei muitos anos com o Sebrae e lá eles possuem esse imediatismo de se criar rapidamente um produto que consiga ser vendido no mercado. Mas na minha visão você deve entrar naquela comunidade de forma lenta, desenvolvendo o trabalho aos poucos e sempre escutando as histórias e lendas do grupo para ver se aquilo pode ser aplicado na cerâmica ou em outro tipo de produto. Você não cria novos artistas da noite para o dia. Talvez você vá, dê um curso para aquela comunidade e no momento não saia nada de interessante, mas pode ser que depois de dois ou três anos algo novo floresça.
Na minha visão o design surge após o domínio da técnica. Primeiro você aprende a trabalhar com o barro e partir daí, quando novos elementos vão surgindo, você pode adaptar algumas coisas ao design contemporâneo. Por exemplo, no Acre há muitas pessoas que confeccionam joias utilizando sementes. A comunidade, portanto, já trabalha com aquilo. Assim, nesses casos, você pode, por exemplo, criar um workshop para trazer novas ideias. Mas o artesão tem que saber a técnica. Agora, não dá chegar numa comunidade do quilombo dos Palmares e falar para a Dona Irineia que as cabeças dela não estão bonitas. Assim você mata toda uma comunidade.
Quando fui trabalhar no Quilombo dos Palmares, a pedido do Sebrae, disse para eles: “Qualquer workshop que essas senhoras derem ali para os mais jovens, vocês compram tudo”. “Ah, mas sai cada coisa feia”. “Compre tudo, porque se esse jovem comprar um tênis com o dinheiro que veio da peça, ele já vai se sentir orgulhoso e vai querer trabalhar mais para melhorar o produto”.
Me lembro também da primeira vez que eu fui para o Piauí, a pedido de um dos coordenadores do Sebrae, onde descobri ali uma olaria que fazia tijolos e, a partir daí desenvolvemos um trabalho bem interessante. Peguei alguns carroceiros que tinham lá, discutimos algumas histórias e depois começamos a aplicar esses relatos nos tijolos. Eles são excelentes em construir potes no torno, mas antes vendiam as peças por um preço baixíssimo (dez centavos cada). Eles não se valorizavam como artistas, portanto. Porém, depois que introduzimos alguns desenhos nos tijolos, o resultado foi tão maravilhoso que as peças começaram a ser solicitadas por arquitetos, designers e engenheiros em Teresina. Hoje eles estão ganhando um absurdo em cima disso.
Portanto, acredito que um trabalho de design tem que ser feito com muito cuidado para que ele não altere profundamente o que já existe. E se não existe alguma linha de trabalho forte da comunidade que seja reconhecido, aí sim é possível entrar com melhoria de técnica e melhoria de queima.
Agora, se você utiliza um forno elétrico e tira o forno a lenha, que é o que dá aquelas cores quentes, aquelas manchas bonitas na peça, você perde a característica daquele produto ser artesanal. Ela poderia ir para um forno elétrico queimar tudo igual, já que este forno queima por irradiação de calor e, portanto, não muda a cor da peça. Já o forno a gás, que tem variações da chama do fogo, assim como o forno a lenha, dá aquelas manchas do gás carbônico – e isso dá identidade para o trabalho.
Voltando à sua pergunta: O que o designer pode fazer ou não por esses trabalhos? Ele pode fazer muito ou pode destruir a produção de uma comunidade inteira. Assim, quando chega um designer numa comunidade com o objetivo de mexer num produto, ele tem que ser muito cuidadoso. Hoje em dia o que se vende é o valor agregado do produto. Ou seja, o aspecto cultural que vai junto com aquela peça é importante – daí que surge a importância de se colocar etiquetas explicando as origens daquele produto, por exemplo. Quando uma peça se torna industrial ou semi-industrial, ele perde esse valor agregado.
O artesanato é o terceiro maior produto de exportação do Brasil, mesmo que ele seja feito de forma “pingada” em todo o país. Nossas peças estão no mundo inteiro, mas ainda tem muito brasileiro que não as valorizam.